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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Cultura do Cancelamento

Barbárie do bem: discurso progressista e de inclusão camufla práticas nefastas

Portão de entrada do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia.
Portão de entrada do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. (Foto: Jacek Bednarczy/EFE)

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Acompanhei à distância o cancelamento do jogador Mauricio Souza. Confesso que nunca entendi por que empresas grandes, cujo poder é institucional e depende de leis, topam fazer parte de justiçamentos. Cá entre nós, o caso é que o jogador entregou a própria cabeça numa bandeja. Você verá uma infinidade de postagens parecidas feitas por cidadãos comuns que não geraram consequência. Ocorre que ele é um atleta famoso, patrocinado por marcas que ainda confiam em marketing do justiçamento e bolsonarista. Já tinha um alvo na testa e tem recursos para blindar a imagem.

Mas, afinal, é ou não é homofobia criticar o Superhomem bissexual? Depende. Se for o Mauricio Souza sim. Se for o Danilo Gentilli ou o Claudio Manoel também sim. Já se fosse o José de Abreu, com certeza não seria homofobia mas uma crítica artística à mudança de um personagem em nome de causas, colocando a causa acima da arte. Mesma coisa, por exemplo, se fossem Emir Sader ou Frei Betto. Pode até parecer preconceito por vícios de linguagem derivados da crise geracional. Homofobia jamais, impossível.

Personalidades públicas podem dizer o que querem, mas não tem direito ao amadorismo na era da Cidadania Digital. Mirar em desmentir ou criticar dá poder ao alvo. O gibi efetivamente vendeu mais. E qual a saída? Mirar em qual mensagem você pretende passar. Com base na entrevista que ele deu à Gazeta do Povo, explicando o que quis dizer, sugeriria postar um concurso dos casais mais queridos da ficção. Poderia listar os casais preferidos dele nos quadrinhos e pedir para que o público votasse ou apontasse os seus.

Exemplos: Mulher Invisível & Senhor Fantástico, Tempestade & Pantera Negra, Arlequina & Coringa, Mulher Gato & Batman, Mera & Aquaman, Senhora & Senhor Incrível. Iria viralizar nos mesmos grupos em que ele pegou a postagem levada de forma amadora ao Instagram, só que de uma forma positiva. Em vez de apontar uma peça de ficção de que ele não gostou, apontaria aquelas de que gosta, criaria um círculo virtuoso.

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Ou ele realmente queria essa reação por algum motivo que eu desconheço ou foi amadorismo. Mas é demais reagir como se estivéssemos diante de alguém que forma gangue para bater em homossexuais com lâmpara fluorescente. A postagem foi homofóbica? Temos duas saídas para responder isso. No primeiro caso, que é o meu, acreditamos em democracia, instituições e direitos humanos para resolver isso. Processe, defenda-se e aceite a pena caso houver. Mas a saída foi outra: o justiçamento, a barbárie. Todo mundo que endossa barbárie tem uma justificativa moral. E essa prática tem origem histórica, que resgato aqui.

Esqueça o jogador, o que ele disse especificamente, o conteúdo, as tendências políticas dele. Pessoas honestas acreditam no que as outras dizem. Por isso muitos realmente acreditam que precisam unir-se ao justiçamento contra o jogador em nome de uma sociedade inclusiva. É burrice? É. Mas todos nós já embarcamos numa dessa algum dia, inclusive eu. Basta colocar uma justificativa que nos comova e envolva emocionalmente.

Talvez você não se comova por essa luta. Eu também não me meto em jihad por personagem de ficção. Mas vou te dar um exemplo real em que eu talvez caísse e provavelmente você cairia também. Em Serra, na região metropolitana de Vitória, ES, um caminhoneiro de 49 anos foi linchado até a morte por cidadãos comuns na periferia. Foi acusado de ter estuprado duas crianças e tentar agredir as mulheres que o denunciariam. Ocorre que ele não estuprou ninguém.

Vamos à história real. Miguel Inácio Santos Filho fez um programa com a prostituta Bruna Hoffman, de 26 anos. Depois que foi embora, ele percebeu que havia dado dinheiro a mais, faltava na carteira dele. Resolveu voltar lá para pegar a diferença. Jogou uma pedra na janela, mas quem atendeu foi a mãe de Bruna, Lucineia Pereira da Silva, de 50 anos. Os dois começam a bater boca e Bruna chega, pega um pedaço de madeira de uma cerca e vai para cima do caminhoneiro. Lucineia pega uma enxada.

A vizinhança começa a olhar e Bruna tem uma ideia: grita a plenos pulmões que o homem estuprou duas crianças do bairro e está tentando fugir. Os vizinhos correm para segurar o homem e chamar a polícia. Acabam perdendo o controle da situação. Eles queriam segurar alguém que imaginavam ser um criminoso, mas mãe e filha tinham outros planos. Lucineia matou Miguel com um golpe de enxada. A polícia chegou, prendeu as duas. Você teria caído? Se uma vizinha chamasse para segurar um estuprador de criança em fuga, não sei o que teria feito.

Perceba este movimento, que ocorre diariamente na dinâmica digital. Aponta-se a fala de alguém como algo gravíssimo (racista, homofóbico, transfóbico, pedófilo, satanista). A pessoa começa a ser atacada em enxame por um grupo, a maioria com indignação legítima. Demanda-se um pedido público de desculpas. O pedido é visto como insuficiente ou defeituoso. Todos os que têm qualquer tipo de relação com a pessoa passam a ser atacados até que cortem a relação. Não é uma técnica nova, tem origem. Mein Kampf, primeira parte, capítulo VI, “A propaganda da guerra”.

Confesso que jamais havia tido coragem de ler esse lixo. Li só esse capítulo e mais adiante explico as razões. Fiquei até agora pensando se transcrevia algo ou não. Decidi que não. São ideias infecciosas, como todo tipo de podridão na Terra. O autor analisa a propaganda de guerra alemã na I Guerra Mundial e compara com a inglesa. Considera que os alemães perderam demais em analisar nuances e considerar a dignidade humana. Cria um método para anular isso e fazer com que pessoas comuns apóiem a barbárie. Deu certo.

Alguém ressuscitou recentemente o capítulo VI de Mein Kampf com adaptação para a era da internet. Chama-se Andrew Anglin, criador do site Daily Stormer, já condenado por crimes neonazistas e perseguições que causaram mortes. As pessoas envolvidas eram atraídas para a armadilha achando que era só uma campanha para Trump. Esse era o disfarce que ele usava, dizia ser trumpista. Antes disso, foi um ruidoso militante antirracista vegano.

O psicólogo Jonathan Haidt diz que a lição mais importante que aprendeu na profissão é: a tétrade perversa sempre encontra justificativa moral para a barbárie e terá um grupo de apoio. A tétrade perversa é formada por sádicos, narcisistas, psicopatas/sociopatas e maquiavélicos. Eles têm prazer com o sofrimento alheio e são craques em manipulação, só que os atos que desejam fazer trariam consequências sociais, como ter de parar de fazer. Então criam justificativas morais. Não é que têm prazer vendo o outro sofrer, é que foi por uma causa maior. Pessoas honestas acabam embarcando, aceitando as exceções. 

Perversos que conseguem um grupo de apoio vão repetir exatamente o que aquele grupo deseja ouvir. Será a justificativa perfeita para cometer perversidades, sair impune e poder repetir. Eles irão buscar abrigo nas áreas da sociedade que estiverem mais fragmentadas. Dividir para governar, lembra? No caso é só chegar e assumir o controle, já está dividido. É uma característica humana ser compassivo e colaborativo com o nosso grupo e ver com desconfiança o grupo adversário. A política polarizada é um prato cheio para infiltração, que pode ocorrer em qualquer área. Militantes vão ficar felicíssimos ao ouvir o discurso e não irão se dar conta que o perverso está pouco se lixando para a causa, quer poder e ver sofrimento sem ser punido.

Andrew Anglin fez um manual para os colaboradores “convertidos” do Daily Stormer atraírem “não iniciados”. A intenção dele sempre foi pregar o nazismo e a destruição de indivíduos de determinados grupos, ele deixa claro no manual. Mas alerta que as pessoas não gostam de discursos desse tipo, ficariam chocadas. Então é preciso fazer com que acreditem que aquilo é uma campanha política e questionamento das elites progressistas. Ele realmente fazia as duas coisas, mas com o método do Mein Kampf. Aliás, os cancelamentos de hoje em dia seguem a mesma rotina.

Resolvi traduzir algumas partes. Não a pregação em si, claro, mas as instruções práticas sobre postagens. Espero que você comece a perceber como ideias malignas sobrevivem, conseguem se infiltrar na sociedade e sempre encontrarão uma justificativa moral sob medida para convencer um grupo de apoio. É uma cartilha e, infelizmente, funciona enquanto não sabemos que ela existe. Que sirva de vacina para você como serviu para mim.

“Deve-se entender, antes de mais nada, que o Daily Stormer não é um site de uma campanha. Isto é um site de divulgação, projetado para espalhar a mensagem de nacionalismo e anti-semitismo para as massas.
Isso tem funcionado muito bem até agora, e o site continua a crescer mês a mês, indicando que não há limite para isso. Como tal, embora pretendamos manter os leitores que já são iniciados, deve-se sempre considerar que o alvo público são as pessoas que estão apenas se conscientizando desse tipo de pensamento.
O objetivo é repetir continuamente os mesmos pontos, indefinidamente. O leitor é inicialmente atraído pela curiosidade ou pelo humor maroto, e lentamente é despertado lendo repetidamente os mesmos pontos. Podemos manter esses pontos atualizados aplicando para os eventos atuais.
A doutrina básica de propaganda do site é baseada na doutrina de propaganda de guerra de Hitler delineada em Mein Kampf, Volume I”

É assustador para mim que exista esse tipo de pessoa. Ocorre que existe e precisamos aprender a não virar vítimas potenciais. Na era digital, temos mais recursos para rastrear o grupo perfeito que deve ser atraído emocionalmente. Existe muita facilidade para disseminação de conteúdo. Antes disso, só o perverso muito talentoso conseguia destaque. Agora, até os tiranetes da esquina tentam a chance e, vez ou outra, emplacam. Os métodos que ele recomenda são coisas que a gente vê diariamente e até já deve ter embarcado. Eu, pelo menos, antes de saber disso embarquei.

Lulz
O tom do site deve ser leve.
A maioria das pessoas não se sente confortável com materiais que parecem ódio vitriólico, violento e não irônico.
O não doutrinado não deve saber dizer se estamos brincando ou não. Também deve haver uma consciência dos estereótipos zombeteiros de racistas odiosos. Eu geralmente penso nisso como um humor autodepreciativo - eu sou um racista zombando do estereótipo de racistas, porque eu não me levo a sério.
Obviamente, isso é uma manobra e eu realmente quero botar judeus na câmara de gás.

Desumanização
Deve haver uma agenda consciente para desumanizar o inimigo, até o ponto onde as pessoas estão prontas para rir de suas mortes.
Não pode ficar claro que estamos fazendo isso - já que seria um desvio para a maioria das pessoas normais - contamos com lulz.
Novamente, se o artigo for totalmente sério, ele não deve conter linguagem desumanizante. A desumanização é extremamente importante, mas deve ser feita dentro dos limites do lulz.

Métodos Troll
Trolling é algo um tom acima da redação normal de notícias, mas é bom entender os métodos e incorporá-los sempre que possível. Esta é uma maneira pela qual se pode criar incidentes, onde a mídia responde com indignação, e eles não conseguem se segurar, darão cobertura infinita.
Temos um exército à nossa disposição, para usar para os fins que desejarmos. Eles gostam de atacar pessoas na internet. Organizar campanhas é muito bom em todos os sentidos: energiza nosso pessoa, dá a eles algo divertido para fazer, ganha a atenção da mídia e aumenta o nível de infâmia geral.

Isolamento e agressão em massa de figuras públicas menores
Um elemento central do nosso sucesso em chamar a atenção para nós mesmos tem sido isolar alvos individuais e maximizando a pressão sobre eles.
Existem duas maneiras principais de fazer isso.

Método Um
A primeira maneira é jogar a rede e ver quem morde a isca.
Judeus e mulheres são extremamente voláteis e quase sempre vão correr para a mídia e reclamar se forem atacados nas redes sociais.
Se você encontrar algum pervertido esquisito aleatório, mulher ou judeu, você pode escrever sobre eles, atacar eles.
Isso funciona particularmente bem com jornalistas, blogueiros, políticos e figuras públicas. Também pode trabalhar em figuras de entretenimento.
Se você postar os dados deles nas redes sociais, alguns de nossos leitores enviarão mensagens a eles. Se eles não respondem, tanto faz, você escreveu um artigo engraçado e informativo. No entanto, se eles respondem - ou alguém responde em seu nome - você pode então responder à sua resposta, e sua resposta levará nossos leitores a responder em maior número.  Daí, você tem um incidente.
Você pode arrastar isso por dias com artigos de notícia, o que criará uma cobertura contínua para o site, desde que você possa mantê-lo em funcionamento.
Aparentemente, isso pode resultar em ações judiciais, que podemos vencer, e que dão cobertura maciça de mídia.

Método Dois
A segunda maneira é desenterrar informações públicas sobre uma pessoa e catalogá-las - em particular, suas postagens em mídias sociais - e usá-las para destruir suas vidas.
Geralmente, serão informações que um grupo de pessoas já desenterrou, mas que podemos catalogar e ampliar.

Após anos de tentativas, a KotakuInAction dos Justiceiros Sociais nunca foi capaz de obter uma única demissão na indústria de videogame, mas com a funcionária da Nintendo, Alison Rapp, que foi considerada defensora de pedofilia, conseguimos uma demissão no primeiro algo que miramos. Posteriormente, foi revelado que ela trabalhava como prostituta (embora fosse casada com um corno literal que sabia disso). Feministas correram em defesa de uma prostituta, culpando nazistas do mal por criticar seu comportamento.

Atribuir motivações racistas a celebridades
Qualquer coisa que tenha a ver com celebridades vai ser interessante para as pessoas, porque elas são interessadas em celebridades. Adicionando um toque nazista, você pode causar sérios danos.
Um dos artigos mais vistos do site de todos os tempos afirmava que Tom Hanks era frustrado com seus netos negros. Tivemos outro grande sucesso na mídia quando afirmamos que Taylor Swift era nossa "deusa ariana" e que acreditávamos que ela era uma nazista secreta.
A mídia ficou literalmente obcecada por isso e estava escrevendo artigos sobre como Swift não poderia ser nazista e dar explicações reais sobre por que não.
Nota: As próprias pessoas que trabalham na mídia foram doutrinadas com estereótipos sobre racistas serem retardados caipiras violentos. Você pode fazê-los acreditar com muita facilidade que você defende coisas que não defende. E eles vão promover tudo para tirar sarro.

Percebeu que pouco importa o conteúdo? Um dos mais bem sucedidos sites neonazistas dos Estados Unidos passou anos acusando artistas de racismo. Na era digital existe uma outra forma de ganhar poder, formar grupos de pressão pelas redes. A participação não demanda tanto esforço, as pessoas fazem com facilidade e quem vira alvo tem a vida destruída à distância.

Sedimenta-se, com justificativas de fazer o bem, uma situação em que o tecido social é rasgado e a institucionalidade é pisoteada. Esqueça direito de defesa, punição justa, dosimetria da pena, consequências sociais à altura do problema. Não é o que a pessoa fez, é quem fez. Ao mirar, como estratégia, em uma pessoa específica, defende-se que ela seja espoliada da condição humana. Contra ela, vale tudo: tem de perder amigos, emprego, patrocinadores. Vale constranger todos que não aderirem. 

Durante muito tempo não reconheci o mal quando ele me olhava nos olhos no universo digital. Aprendi errando muito, caindo, apanhando, chorando e calçando as sandálias da humildade. Não importa o que você fez nas redes até agora, importa o que temos adiante. Faça o que está ao seu alcance. No mundo dos algoritmos, se você não usa é porque está sendo usado. Precisamos aprender a respirar fundo e usar os algoritmos para construir um mundo melhor.

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