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Madeleine Lacsko

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Reflexões sobre princípios e cidadania

Cidadania Digital

Barroso vai mesmo imitar o Irã e proibir o Telegram no Brasil?

Internautas têm feito montagens maldosas com diversas autoridades, inclusive o ministro Barroso. (Foto: Internet)

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Antes de tudo, preciso confessar a vocês uma teoria maluca que formulei a respeito da fixação do ministro Barroso com o Telegram. Hoje, para ser moderna, a pessoa tem de saber usar figurinha nos apps de mensagem. Só que isso já virou carne de vaca, todo mundo faz figurinha de todo mundo.

Anos atrás, não era assim. Havia poucos pacotes de figurinhas. Numa dessas decisões judiciais que tiraram o Whatsapp do ar, o Telegram fez o pacote de figurinhas de ministros do STF. Isso abriu uma porteira que, para quem se leva a sério, pode ser insuportável. Claro que eu aderi à moda. E a gente sabe que não tem figurinha elogiosa sobre o ministro Barroso em nenhum pack de stickers. A não ser que ele próprio tenha criado algum que eu não sei.

Eu poderia passar o dia todo montando historinhas com as figuras de ministros e ex-ministros que eu tenho aqui. Infelizmente, tenho de trabalhar. Então fui pesquisar a história do Telegram com o TSE, o ministro Barroso e outros países. A empresa é russa, mas não cedeu ao Putin, como fazem nossos anticomunistas tupiniquins. As operações já foram proibidas em 11 países, nenhum deles democrático. O Telegram nem liga para as determinações legais do Brasil mas atende, por exemplo, a Alemanha.

"Como já se fez em outras partes do mundo, eu penso que uma plataforma, qualquer que seja, que não queira se submeter às leis brasileiras deva ser simplesmente suspensa", disse o ministro Barroso em entrevista ao jornal O Globo neste final de semana. Num primeiro momento, a afirmação pode fazer sentido para muitos. Para estar aqui precisa obedecer nossas leis. Mas chamo a atenção para dois pontos.

Quais são essas outras partes do mundo em que o Telegram foi suspenso? China, Irã, Rússia, Belarus, Azerbaijão, Bahrein, Cuba, Paquistão, Tailândia, Indonésia e Índia. O ministro diz que seria necessário banir o app porque ele ameaça a democracia brasileira. Eu até concordo com essa parte de ameaçar a democracia, meu ponto é outro. Dá para defender a democracia copiando as práticas desses países que baniram o Telegram? Não me parece um bom caminho.

O outro ponto é a teoria de banir plataformas que não se enquadram nas leis brasileiras. Daí eu pergunto: as outras se enquadram? Vai banir todo mundo então? A partir de amanhã não vai ter mais YouTube, Twitter, Facebook, WhatsApp, TikTok, Twitch, Discord, nada disso. Essas plataformas diariamente desobedecem nosssas leis, a diferença é que bajulam o TSE e prometem ser boazinhas. O Telegram nem atende, parece que só atendia a Angela Merkel.

Outro dia, pensando já nesse tema, decidi ver um seminário internacional de investigadores digitais forenses falando sobre os impactos do banimento do Telegram no Irã. Que conclusões eu tirei? Nenhuma, só reforcei a ideia de que o cenário democrático no Irã é muito diferente do que vivemos no Brasil. Embora sejamos uma democracia eleitoral - e não liberal, como as democracias plenas - o nosso cenário é diferente demais em todos os sentidos.

Em primeiro lugar, o único aplicativo de mensagens que funcionava no país era o Telegram mesmo. Os outros já haviam sido banidos antes, é um regime muito fechado. O medo do compartilhamento digital de mensagens surgiu naquela região do mundo durante a Primavera Árabe, passou a ser um foco importante para os governos. Muitos aplicativos clandestinos surgiram desde a proibição.

Em 2018, o Telegram foi banido no Irã sob acusação de ameaçar o regime, já que permitia a organização de subversivos. O Irã queria a mesma coisa que a Rússia, berço do app, tentou e não conseguiu: a identificação dos subversivos que usavam a plataforma. A decisão de suspender o Telegram foi tomada pelo governo. Segundo o próprio governo, no entanto, 45 milhões de iranianos ainda usam o Telegram. É mais da metade da população do país. Me parece o tipo de decisão política que brasileiro adora.

O atrito do banimento do Telegram na Rússia levou a empresa a procurar outro país, os Emirados Árabes Unidos. É, curiosamente, a mesma escolha de Ronaldinho Gaúcho depois de ser preso no Paraguai. Ocorre que o dono do app, Pavel Durov, não esnobava Putin. Dois anos depois, em 2020, o Telegram voltou a funcionar na Rússia. É capaz que jamais tenha deixado de funcionar e que a declaração do governo elogiando os esforços de combate ao terrorismo da empresa seja apenas uma saída honrosa.

Além de ser dono do Telegram, Pavel Durov inventou a rede social VK, a mais usada em toda a Rússia. Talvez entrar em acordo com ele seja muito mais fácil para o regime do que conseguir substituir a capilaridade da plataforma que os russos já usam em sua máquina de propaganda governamental. Além disso, administrar a ideia de que alguém desobedece Putin e fica tudo bem deveria ser algo bem complicado.

Ontem, o Telegram bloqueou 64 canais a pedido do governo da Alemanha. Representantes da empresa sentaram para negociar sobre o cumprimento da legislação do país. Ocorre que lá se exige de todas as plataformas, não adianta ir falar que vai ser bonzinho, tem de agir. Por exemplo: não se derruba perfil sem avisar exatamente o motivo, conseguir salvar o conteúdo e ter direito de resposta. As mesmas regras aplicadas para todas as plataformas são as que valem para o Telegram.

Temos um problema crônico de excesso de otários no Brasil. Jornalistas defendem que plataformas tenham poder de decidir o que pode ou não ser parte do discurso público. Daí vai o YouTube e derruba o canal do Tribunal de Contas da União alegando problema de copyright. O ministro Barroso fechou o YouTube? Não, ainda fez live lá com o Felipe Neto. Por que o Telegram iria ceder ao ministro? Nenhuma plataforma precisa seguir lei no Brasil, só falar bonito.

O ministro Barroso mandou, ano passado, um ofício ao Telegram lá nos Emirados Árabes Unidos. Eles não responderam. Então o ministro enviou pessoalmente uma carta ao Pavel Durov, criador do Telegram. Voltou sem ser entregue. O carteiro tentou entregar quatro vezes. Em duas não tinha ninguém e nas outras duas tinha gente, mas não atenderam o carteiro.

Nessas horas eu me pergunto se é realmente viável essa história do TSE banir o Telegram. O presidente do TSE não conseguiu fazer os caras receberem uma carta dele, um ofício, nada. Citação judicial é a base de todo o trabalho da Justiça, mas nem isso se conseguiu fazer. Será que vai mesmo conseguir impor um bloqueio ao app, caso decida?

O Irã já admitiu que, apesar do bloqueio, mais da metade da população segue tendo Telegram. Nem o Partido Comunista Chinês consegue controlar o Telegram, mas o ministro Barroso acha que vai. A China é líder mundial em inteligência artificial, controla todas as redes sociais com mão de ferro, já baniu Linkedin e Yahoo do país recentemente e não permite nada do Google e Facebook. O Telegram continua tendo milhares de downloads diários no país.

Eu ainda não entendi o que o Telegram tem de diferente dos demais aplicativos de mensagem com criptografia de ponta a ponta. Fora o fato de ter esnobado solenemente nossas autoridades, claro.

Estamos, no entanto, diante de uma realidade que desafia governos do mundo todo e ainda não tem um modelo de regulamentação. Uma empresa sediada num país que a proteja pode atuar em todos os outros países violando sistematicamente as leis. Estados têm ou não soberania para impor suas regras sobre quem opera comercialmente em seu território? O poder das chamadas "empresas-Estado" é um fator novo e um desafio para o mundo todo.

Conseguimos garantir regimes democráticos e liberdades individuais quando não é possível impor regras sobre empresas que atentam contra esses regimes e liberdades? Países pequenos passam a ter mais poder à medida em que abrigam essas gigantes bilionárias que manipulam as mentes de multidões. Talvez seja uma das mudanças mais rápidas da história. É um desafio monumental para a nossa geração e as próximas. Não será resolvido a canetada.

Numa coisa, no entanto, tenho de dar o braço a torcer e o ministro Barroso está coberto de razão. "O Brasil não é casa da sogra para ter aplicativos que façam apologia ao nazismo, ao terrorismo, que vendam armas ou que sejam sede de ataques à democracia que a nossa geração lutou tanto para construir", declarou o ministro ao Jornal O Globo.

Tem uma tonelada de aplicativo fazendo tudo o que ele disse, mas o Brasil não é a casa da sogra mesmo. Para ir à casa da sogra, a gente se arruma direito, é mais educado que o normal, cumpre as regras todas direitinho. Não é bem como as Big Techs se comportam no Brasil. Está mais para uma Casa da Mãe Joana em que o pessoal chega abrindo a geladeira e fazendo xixi de porta aberta.

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