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Muito do faturamento da Globo com espetáculo foi abalado nos últimos anos. A emissora perdeu, por exemplo, os direitos de transmissão do Brasileirão e da Fórmula 1. Vai perder Faustão logo mais, Luciano Huck vive nesse chove-não-molha de entrar na política. Esporte, novelas e shows são o grosso do faturamento de um projeto de comunicação. É nesse contexto que o Big Brother, formato antigo que já não fazia tanto barulho há muitos anos, renasce.
A inovação do BBB 21 é mergulhar de cabeça no clima arena romana, onde a destruição e o sangue são os objetivos principais. Não há ganhadores. Alguns são trucidados por outros participantes e estes serão trucidados pelo público. Repetindo estereótipos e práticas que vivemos sem perceber nas redes sociais, temos a celebração do sofrimento humano em toda sua glória nas nossas casas.
O clima vivido na sociedade desde que as redes sociais começaram realmente a se popularizar e agregar trocas de fotos, vídeos e likes é repetido ali. Só que tudo se eleva à enésima potência. Além disso, não há para onde correr, estão ali todos juntos, o tempo todo, sendo estimulados a pisar cada vez mais fundo no acelerador da agressividade. E é exatamente isso o que o povo quer e está recebendo, seja do BBB, da Globo, da comunicação, da política e até do jornalismo.
O ser humano é gregário, nossa evolução é sempre em grupo, em sociedade. Faz algum tempo que a convivência à distância existe, ainda não o suficiente para antever as farsas que ela produz. Uma das maiores é a confusão entre liderança e capacidade de produzir humilhações públicas, algo que se espalhou como uma metástase pela sociedade.
Na convivência diária, o líder não pode tornar o grupo mais fraco porque deseja que ele seja mais puro. Além disso, as atitudes são importantes para manter a coesão. No mundo digital, palavras bastam. Confunde-se agressividade com força, desequilíbrio emocional com coragem, sociopatia com liderança. E temos nos alimentado dessa distorção continuamente, estimulando todos os dias o lado mais sombrio da alma humana.
O militante não é mais o que trabalha por uma causa, é o que humilha outras pessoas publicamente para justificar a causa. O político não é o líder que tem projetos concretos, é aquele capaz de humilhar publicamente pessoas poderosas. O comunicador não é o que respeita seu público e tem compromisso com a verdade, é aquele capaz de humilhar publicamente quem o contrarie. O telespectador não é aquele que exige entretenimento, é o que tem prazer de humilhar publicamente quem considera mau.
A combinação de humilhação pública, desumanização e violência é o segredo da arena romana. O sofrimento é transformado em circo para aplacar a culpa de gostar do torpe. É da natureza humana sentir prazer com o sofrimento de quem não gostamos. A civilização nos obriga a ter disciplina e não agir guiados por estes sentimentos. Não na arena romana, lá tudo é possível porque todos somos inebriados pelo clima do espetáculo. Não há mais mocinhos e bandidos no BBB 21, somos todos bandidos. O sucesso do programa é a prova do triunfo da arena romana sobre a civilização.
Quem já conviveu com a militância identitária ou com qualquer outra, até vegana, sabe que a imolação se tornou necessidade desses grupos nos últimos 10 anos. Lutar por uma causa feminista, por exemplo, requer humilhar publicamente não os machistas, mas aqueles que não sejam feministas do jeito certo. Precisa interromper a pessoa, dizer que ela não entendeu nada e explicar a ela porque ela está errada. Não há diálogo, se deixa o outro falar para caçar aquele detalhe errado na frase e esculachar publicamente.
No BBB 21, os militantes antirracistas, feministas e contra a homofobia ultrapassam todos os limites da crueldade e são estimulados a pisar cada vez mais fundo pela produção. Já estão acostumados à necessidade de ter um saco de pancada para justificar a própria luta, isso é das redes sociais. O público pode ter sido atraído pela indignação, mas permanece pelo prazer da fazer com esses militantes exatamente o mesmo que eles fazem com os outros.
No final de semana, um participante que foi massacrado de maneira absolutamente desproporcional por um erro cometido saiu da casa. A produção garante aos demais que está tudo bem, o problema era com quem saiu, estava descontrolado, tinha uma relação complicada com álcool. Entendendo que estão no rumo certo, eles se deixam levar cada vez mais pela maldade que têm na alma e que existe na alma de todos nós. Comecei a sentir uma vontade enorme de ver algumas pessoas se darem muito mal, mas muito mesmo.
Percebi a arena romana inebriando a minha alma. Já perdi a conta das vezes em que fui escolhida para saco de pancada de militância e tive de aguentar as consequências da boataria, ridicularização e fechamento de portas profissionais. Também já fui escolhida para saco de pancada de milícias digitais de direita e, até agora, ganhei 4 processos judiciais contra seus integrantes. Que conforto ter uma ótima desculpa para ter prazer ao ver cada um provar do próprio veneno. A desculpa me serviria para ser exatamente igual a eles, mas colocar uma fantasia de briga pela justiça.
Não são só os militantes do programa que usam causas - como racismo, feminismo e homofobia - para acobertar ações coletivas que são fruto apenas da perversidade combinada. O público também ganha essa oportunidade e agarra quem quer. Eu quase agarrei com gosto, devo confessar. Já sabemos o que os militantes fazem quando têm uma boa desculpa para atos perversos e, aqui fora, nos unimos para fazer igual. O ponto crítico é se aceitamos imolar publicamente alguém em nome de uma causa. Você aceita?
Nossa, fiquei boazinha com as militantes, né? Até parece. Erraram feio, continuam errando feio e vão ter de ser confrontadas com as consequências desses atos para mudar de atitude. Fazer com elas a mesma coisa que elas fazem com os outros não melhora o nosso grupo social, piora. Mais uma vez vem a lógica de que coragem significa humilhar outra pessoa publicamente em nome de uma causa. Acreditamos nisso ou não? Essa é a decisão.
Ninguém tem o direito de se achar melhor que a militância no estilo "menina má de colégio de filme americano". Não somos melhores, com o estímulo certo podemos fazer igualzinho. Eu senti isso em mim acompanhando os debates sobre o rapaz que pediu para sair da casa. Foi inevitável trazer à memória os sentimentos de quando vivi algo parecido. Quem bate esquece, quem apanha lembra. Provavelmente eu não me lembre das vezes em que bati.
O linchamento público das canceladoras é a vitória da arena romana e o estímulo para que mais pessoas sejam exatamente iguais a elas. A tendência dos grupos de militância será dizer que isso ocorreu por racismo, machismo, homofobia e sabe-se lá o que mais. Seria culpada a Globo, que escolheu a dedo os piores militantes exatamente para bombardear a causa. Pronto, já temos justificativa para montar sem culpa mais uma arena romana. Qual o limite? Não sei, mas os patrocinadores estão radiantes.
Assim como nas redes sociais se reduz toda a história e complexidade de um ser humano a um tweet, o BBB reduz uma pessoa a uns poucos momentos de sua vida. Deixamos de ser pessoas para ser uma espécie de cena do crime, um único recorte congelado e repetido eternamente. O grande desafio não é saber quem pune mais ou com mais crueldade aquele que se comporta de forma torpe. Nosso primeiro desafio é não ceder à tentação de nos comportarmos de forma torpe. O maior deles é sabem quem pode ser capaz de convencer pessoas que cruzaram essa linha a reparar os danos que causam pelo caminho e passar a agir de forma diferente.
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