Que tipo de dados um governo pode armazenar sobre seus cidadãos e o que exatamente ele pode fazer com esses dados? Antes da era da internet e da inteligência artificial, isso não era uma preocupação. Agora é porque muitas coisas podem ser feitas com esses dados - e algumas delas a maioria da população nem imagina.
A proteção dos dados é uma preocupação em todos os países democráticos, já que a questão envolve muito dinheiro. As maiores empresas do mundo hoje são as que coletam constantemente nossos dados e, na maior parte do globo, não têm nenhuma regulamentação decente de suas atividades. Empresas como Facebook, Twitter, Instagram, Google e Whatsapp respondem com frequência a acusações relativas ao uso de dados.
Aqui no Brasil, houve uma tentativa de proteger o cidadão à maneira que já se faz na Europa: mantendo a noção de que cada um é dono dos próprios dados e quem os armazena tem de dizer para quê e por quanto tempo. Mas havia uma brecha jurídica.
Enquanto apreciamos o picadeiro político em que se transformou o país, acabamos perdendo decisões importantes, como o Decreto 10046, assinado pelo Presidente Jair Bolsonaro no dia 9 de outubro. Com uma canetada, sem discussão popular e sequer consulta ao Congresso Nacional, ele decidiu que agora o governo vai poder armazenar muito mais dados do que têm armazenado. Quem terá acesso a eles? Como será feita a segurança? Qual a finalidade disso? O decreto não diz.
Achei estranho o poder de, com uma assinatura, decidir quais partes da nossa vida privada passam a pertencer ao Estado Brasileiro - neste e em qualquer outro governo futuro - e resolvi procurar um especialista. Uma amiga pôs em contato com único brasileiro que obteve as 6 certificações sobre privacidade e proteção de dados da IAPP - International Association of Privacy Professionals. Coincidentemente, é formado em Direito.
Felipe Palhares explicou que a lei brasileira realmente dá ao ocupante da Presidência da República poderes para decidir que dados armazena dos cidadãos sem ter de consultar ninguém. Isso tem abrigo na Constituição Federal sob um olhar interessante: faz parte da organização da Administração Pública Federal, que é de competência do presidente. Outra questão é que existe uma hierarquia entre normas no Brasil e já há uma norma de grau mais alto que decreto, uma lei, sobre o assunto.
"O que a gente tem de levar em consideração, obviamente, é que a gente tem agora uma Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - que ainda não entrou em vigor, entra em vigor em agosto do ano que vem - e, por uma questão de hierarquia de normas, uma lei vem acima de um decreto. Então, se porventura nós tivermos algum confronto específico, algum tema específico que está agora nesse decreto e que contraria a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, o natural é que a lei prevaleça sobre a disposição do decreto", explica o especialista. Atualmente, mesmo antes do decreto, o governo já armazena muitos dados nossos.
"O que vai mudar agora é que vai passar a incluir dados adicionais, inclusive dados biométricos, dados sensíveis como aqueles relacionados à sua íris, à palma da sua mão, à sua voz ou mesmo o jeito que você anda." - diz o advogado Felipe Palhares.
Sim, isso está explícito, palavra por palavra no próprio decreto. E para quê o governo quer isso? O que acontece se os dados vazarem? Quem tem acesso? "O que causa maior preocupação em relação a esse decreto é a falta de uma explicitação específica com relação a quais são as finalidades para as quais serão utilizados esses dados pessoais e como é que eles serão protegidos.", questiona o especialista em proteção de dados. Ou seja, nem ele que está mergulhado no assunto entendeu o que será feito com os nossos dados e como seremos informados disso, conforme prevê a Lei Geral de Proteção de Dados, que está acima desse decreto.
Entenda exatamente o que o governo brasileiro pode, a partir de agora, passar a coletar e armazenar:
- Reconhecimento da Palma da Mão ( Vein Geometry Recognition ) - Analisa cerca de 5 milhões de pontos de referências da mão + Fluxo Sanguíneo
- Reconhecimento das Digitais dos Dedos (Finger Recognition)
- Reconhecimento da Retina ou Iris dos Olhos (Iris/Retina Recognition
- Reconhecimento do Formato da Face ou Taxonomia Facial (Facial Recognition) - Análise Geométrica do rosto + análise de vários Pontos de Referências + 10 mil Micro-Expressões Faciais dos estudos do Dr. Paul Ekman.
- Reconhecimento da Voz (Voice Recognition)
- Reconhecimento da Maneira de Andar (Gait Recognition)
Estamos em uma democracia e esse tipo de regime tende a ter um limite na sua criatividade para mandar na vida dos cidadãos. Numa ditadura comunista como a China, vale tudo. Por lá, sem fazer muito alarde nem precisar do uso da força, o governo convenceu seus cidadãos a entrarem em um jogo de pontos por bom comportamento. Os dados que o governo brasileiro quer coletar à revelia da LGPD já são coletados pelo governo chinês há muitos anos, a evolução deles agora é a tal da pontuação - que pode te trazer facilidades ou inviabilizar sua vida.
A vida imita a arte ou a arte imita a vida? O programa de "crédito social" do governo chinês é quase igual a um episódio da série Black Mirror: Nosedive (Queda Livre), que mostra a perda de importância do elemento humano, da espiritualidade e da liberdade diante de projetos do tipo.
Se você viu esse episódio, provavelmente não imaginou que isso já estivesse ocorrendo no mundo. Eu, pelo menos, não imaginei que as pessoas abrissem mão da liberdade individual nesse nível. Acontece que abrir mão de liberdade não tem nível, é sim ou não, ou se luta incansavelmente por ela ou ela é tomada dos indivíduos pelo poder constituído. O site Visual Capitalist, famoso pelos infográficos falando de negócios, fez um trabalho mostrando como funciona o sistema de monitoramento das pessoas na China, que transformou a vida em um jogo. (Achei um blogueiro brasileiro que fez a tradução, caso você prefira em Português.)
O sistema funciona assim: quando adere ao programa, cada cidadão ganha automaticamente 1000 pontos. Ele pode subir ou descer o score dependendo do próprio comportamento. Ganha pontos, por exemplo, doando sangue, doando dinheiro, ajudando os pobres ou falando bem do governo nas redes sociais. Atitudes que causam perda de pontos são, por exemplo, trapacear em jogos online, não visitar os pais idosos ou "espalhar boatos" na internet. O governo chinês considera, por exemplo, que o massacre que faz atualmente nas ruas de Hong Kong é um "boato" da imprensa internacional.
Os pontos não são um jogo. O cidadão chinês com mais pontos pode ser promovido mais rapidamente no trabalho, conseguir uma escola melhor para os filhos ou mais facilidades em empréstimos. Poucos pontos dão punições como proibição de sair do país, voar de avião, andar de trem e vergonha pública.
No ano passado, 128 pessoas foram proibidas de sair da China porque estavam nesse sistema de "crédito social" e deixaram de pagar seus impostos. Não é nada comparado ao veto de locomoção interna. Foram 5 milhões e 500 mil negativas de compras de passagens de trem e outras 18 milhões de vezes em que se proibiu a compra de passagem de avião porque a pessoa estava com pontuação baixa no jogo social.
É um cenário apocalíptico, de eliminação das qualidades individuais ou relações interpessoais e substituição da dinâmica das relações humanas por um programa de computador que vigia as pessoas o tempo todo e exige total lealdade a uma ditadura comunista. Gostaria de acreditar que outros não chegariam tão longe, mas isso depende de mobilização popular.
Em 22 de maio de 2018, fiz uma entrevista exclusiva com o especialista digital inglês Paul Hilder, que depois lançou o blockbuster da Netflix "Privacidade Hackeada". Ele defende que devemos nos posicionar de forma intransigente a favor da liberdade e do fato de que nossos dados pertencem a cada indivíduo, não ao Estado nem a uma empresa. Depois disso, o Brasil fez a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, instrumento importantíssimo para garantir essa liberdade. Ela foi afrontada por uma canetada e pouca gente percebeu: estávamos hipnotizados por uma versão bem mais interessante da realidade, criada nas plataformas e telas que monopolizam nossas atenções.
Precisamos despertar.