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Eleitor que decide eleição é quem tem potencial para mudar de voto. Aparentemente, continuamos em campanha eleitoral - pelo menos esse é o clima faz alguns anos. Nas discussões acaloradas, que oscilam entre o ânimo futebolístico e religioso, falta respeito e sobram apelidos de parte a parte. Qualquer um que não ataque frontalmente Jair Bolsonaro tende a ser chamado de "gado". Aliás, há diversos memes impagáveis circulando pela internet.
Mas, com base na pesquisa "Valores, Moralidade e Escolha Política", que conduziu pelo Instituto Brasilis, o cientista político Alberto Carlos Almeida afirma que "avaliar pejorativamente os apoiadores de Bolsonaro denominando-os de 'gado' dificulta a compreensão de seus valores e, portanto, bloqueia o diálogo e a eventual persuasão". Em política não se falou nisso durante muito tempo, mas é algo atual: valores morais. Todos nós os temos, às vezes dentro de nós habitam valores conflitantes, mas eles são decisivos no voto.
Para não ficar no campo da subjetividade, a pesquisa levou em conta os 5 pilares morais propostos pelo psicólogo social norte-americano Jonathan Haidt, professor da New York University, que se dedica a pesquisar a base da moralidade nas mais diversas culturas. Recentemente, ao escrever sobre política, tornou-se um best seller com a obra: "A Mente Moralista - por que pessoas boas se separam por causa da política e religião?".
Os pilares da moralidade, segundo o modelo de Haidt, são 5:
- Cuidado com os fracos
- Reciprocidade, justiça
- Lealdade ao grupo
- Autoridade e respeito
- Pureza e santidade
Embora pareçam ideias muito teóricas, cada um desses pilares pode ser desdobrado a decisões reais do cotidiano e, na pesquisa, foram trazidos a uma linguagem mais próxima do nosso dia a dia. A partir de ideias práticas com as quais concordam ou não, as pessoas se colocaram mais ou menos aderentes a cada um desses pilares morais (pesquisa completa aqui). Conforme o nível de aderência, existe a tendência de apoiar mais determinada ideologia política e quem a representa:
Na pesquisa aqui no Brasil, que representa principalmente o que pensam pessoas com nível superior, os valores morais foram relacionados a partidos e personalidades políticas. Ainda que você discorde dos resultados, temos ali a consolidação da imagem tanto dos líderes quanto das instituições. E temos também a revelação de que algumas personalidades conhecidas ainda são um mistério em termos morais.
As pessoas que se entendem como de direita no Brasil - ou como conservadoras em outros países - dão mais ou menos a mesma importância a todos os pilares. As que se consideram como de esquerda no Brasil - e liberais em outros países - dão pouca importância a dois pilares (Autoridade e Respeito, Pureza e Santidade) e muito mais importância a outros dois (Cuidado com os Mais Fracos, Reciprocidade e Justiça). O curioso é que o mesmo resultado se repete nas mais diversas culturas, inclusive no Oriente Médio.
A pesquisa é particularmente interessante por analisar com cuidado a dimensão humana em todos os seus recortes. Se você é uma pessoa muito religiosa e conservadora, deve achar bem estranho que o valor moral "cuidado com os mais fracos" esteja num pólo político diferente do seu. Seres humanos são complexos. Quando o recorte é por religião, esse valor moral é ainda mais forte para os muito religiosos (que geralmente se dizem de direita) do que para ateus (que geralmente se dizem de esquerda). Só que ele se combina com uma maior valorização da santidade e da autoridade.
Como os valores morais se traduzem em votos? À medida em que o eleitor os relaciona com políticos e partidos. Na pesquisa, o eleitorado parece ter muita certeza, por exemplo, dos valores morais de Bolsonaro e Lula, mas não entende bem Marina e Ciro Gomes.
A pesquisa não se manteve apenas a Lula e Bolsonaro, selecionou outros nomes nacionais conhecidos: Marina Silva, João Doria, Sergio Moro, Guilherme Boulos, Ciro Gomes, Fernando Haddad e os partidos PT, PSDB, PSL e PMDB. Há algumas questões específicas que o público já carimbou como características de alguns candidatos, como amor pelo Brasil, família e respeito a autoridades. A conclusão é obtida cruzando os dados das respostas de cada entrevistado sobre preferência política com opiniões específicas sobre decisões morais do dia a dia.
Por exemplo: amor pelo país divide radicalmente apoiadores de Jair Bolsonaro e Marina Silva, mas não tem impacto nas demais personalidades ou partidos políticos.
No questionamento sobre outro pilar moral, a demonstração de respeito por autoridades, não há nenhuma diferença para os apoiadores de Ciro ou Marina, mas existe para todos os demais. O mesmo acontece quando se pergunta a opinião sobre alguém agir ou não de uma forma que Deus aprovaria.
"O voto e o apoio a políticos de esquerda e de direita têm fundamentos morais, cada lado tem uma moralidade diferente. O eleitor que muda de voto – que decide a eleição – é aquele que tem uma determinada combinação da intensidade de cada pilar moral", conclui Alberto Carlos Almeida.
Consciente ou inconscientemente, os políticos compreendem os valores morais que guiam seu eleitorado. Seja em discursos ou aparições públicas, reforçam de maneira subjetiva o apoio a esses valores. Toda decisão política será embasada em um valor moral, mesmo as que parecem mais técnicas. Por isso esse tipo de análise tem se tornado cada vez mais importante.
Segundo a pesquisa, na política brasileira atual, alguns símbolos já estão intimamente relacionados com valores morais do brasileiro. A "lealdade ao grupo" está intimamente ligada ao amor ao Brasil e orgulho da nossa história, "pureza e santidade" parecem sob medida para os princípios religiosos e "autoridade e respeito" se encaixam na imagem das Forças Armadas. São conceitos com os quais Jair Bolsonaro sente-se muito à vontade. Na versão de Sergio Moro, a "autoridade e respeito" vem do Judiciário.
Na esquerda, mesmo quando as pessoas valorizam "cuidado com os mais fracos" e "reciprocidade e justiça" na mesma medida em que religiosos conservadores, não dão tanto peso aos demais pilares morais, então os primeiros acabam sendo o centro do discurso. É desses valores que nascem debates muito familiares: "em grande parte de suas falas, pronunciamentos e textos há a defesa dos direitos dos 'excluídos' e 'pobres', críticas à 'exploração' e à economia da 'uberização', assim como defesa de redistribuição de renda em favor da base da pirâmide social, taxação das grandes fortunas e medidas semelhantes", explica o cientista político Alberto Carlos Almeida.
Na era da apoteose da superficialidade, marcada pela tal da "cultura do cancelamento", quem discorda é taxado de imoral como se fosse possível haver um único padrão moral para todos. Nem dentro de nós existe um único padrão, convivemos com diversos valores, às vezes conflitantes entre si.
Mais uma vez - nunca é demais - relembro uma frase cada vez mais necessária do reverendo Martin Luther King Jr.: "We must learn to live together as brothers or perish together as fools." Nós devemos aprender a viver juntos como irmãos ou morreremos juntos como tolos. Entender a moral do outro é um dos principais desafios do debate público no século XXI.