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Lá pelo meio de 2013 o gigante acordou. O Brasil foi às urnas por causa de 20 centavos. É como está registrado com maestria em toda a obra de ficção de Nelson Rodrigues. O cidadão aguenta as piores humilhações, é passado para trás todos os dias até que uma hora explode porque o caixa da padaria dá balinha de troco.
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No caso, a padaria passou a dar o troco em moedas por alguns meses, voltou à balinha e agora nem troco dá mais. O caixa diz "de boa faltar só 5, né?". Os clientes não ligam, vida normal. Estão chocados agora com coisa bem mais empolgante. Eu, por exemplo, com uma empresa de software que faz pegadinha com os clientes e eu caí. Deve ter gente nesse minuto tentando comprar um só rolo de papel higiênico no mercado, como nos ensinou Celso Russomanno.
Estamos viciados na sensação de catarse daqueles 20 centavos, daquele "eu não aceito balinha de troco". Estamos na rua até hoje, sem ter concretamente resolvido quase nenhum dos problemas que levaram os cidadãos às ruas. A passeata virou nossa micareta com justificativa moral. É seguida da alta literatura da nota de repúdio, um clássico dos últimos tempos.
Desconfio que ir à passeata já virou esporte para muitos. Nos grupos de amigos, a pergunta sempre é a qual passeata você vai. Aposto que tem gente que vai nas duas, dada nossa vocação de não querer desagradar a gregos e troianos. O bom é que o pessoal está organizado agora, anuncia com antecedência e você pode ir a todas as passeatas para agradar diversas turmas.
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Vou confessar que nem sei mais de que são as passeatas. Às vezes me parece como aquelas clássicas manifestações do PSTU no início dos anos 2000 na avenida Paulista. Eu ouvia o carro de som durante uma hora e continuava sem saber contra quê era o protesto. Falavam de classe trabalhadora, corrupção, burguesia, imperialismo e, de repente, aparecia uma coisa de Iraque ou Palestina no meio.
Obviamente quem organiza passeata e quem realmente segue política tem objetivos concretos nas manifestações. Mas, sinceramente, a gente não está acostumado com gigante acordado e alerta. Tenho vários conhecidos passeateiros que só olham a cor da camisa e se é ou não do MBL. São todos os dados necessários para decidir unir-se ou não ao grupo.
Ah, mas as pessoas não têm o direito de se manifestar livremente. Claro que têm e estão exercendo. A gente tem direito até de se jogar da ponte, não quer dizer que nos trará benefícios só por ser o exercício de um direito. Lembram das passeatas dos cara-pintadas na Era Collor? Todo mundo que viveu aquela época lembra nitidamente.
Minha birra com a passeata dos 20 centavos foi quando descambou com passeata a favor de autoridade. Fernando Haddad baixou a tarifa, deu os tais 20 centavos e subiu no caminhão da passeata para agradecer. Os manifestantes deixaram. Nós temos mesmo a vocação de esculhambar qualquer coisa, até protesto e desobedicência civil.
Passeata é uma coisa contra autoridades estabelecidas. É quando o povo decide ir às ruas contestar decisões daqueles que não precisam ir às ruas porque têm o poder. Mas vivemos uma polarização tão emocional que entramos em um piloto automático de passeata a favor seguida de passeata contra desde o impeachment de Dilma Rousseff.
Essa coisa de impeachment é muito trabalho, incluindo aí a chatice de ter de conferir toda hora se a gente escreveu certo. Houve tempos em que eu adotei impicho para poupar o esforço. Sou parlamentarista há muitos anos. Presidente bom, para mim, é feito carro japonês: funciona direito, em silêncio e não te dá problema. Não queria nem ter de saber nome de presidente.
Agora a gente é obrigado a saber o nome de toda a família real e também de todos os adversários. Tudo virou uma história de projeto pessoal contra briga pessoal e o povo no meio tendo o maior cuidado para não vestir uma cor errada em dia de passeata. A seguir com o presidencialismo, sou favorável ao modelo em que o presidente já recebe o impicho com a posse, para facilitar as coisas.
Isso de ter toda hora uma passeata contra e outra a favor tem como principal efeito colateral ninguém mais se assustar com passeata. Semana passada, botaram fogo na estátua mais odiada de São Paulo e isso ofuscou no noticiário e nas redes passeatas pelo impeachment em todo o Brasil. Esta semana, a passeata era pela questão da urna eletrônica e os adversários pensam que era de apoio a Bolsonaro.
A gente faz passeata, as autoridades fazem notas de repúdio, formadores de opinião fazem um carnaval nas redes, influenciadores ganham fama. De concreto mesmo, o que muda? Nada, afinal as passeatas parecem ter entrado numa dinâmica de umas contra as outras. O foco maior é em ridicularizar o grupo oposto, não cobrar que se dê efeito à pauta pedida aos políticos.
Estamos no meio de uma pandemia e parece que político agora só trabalha movido a passeata. Vai meio mundo às ruas pedir mudanças na urna eletrônica. Tem uma comissão do Congresso vendo isso que não deu em nada. O Poder Executivo teria de colocar isso na LDO, prever quanto vai custar e como executaria. Não há nem esboço de um eventual plano ou viabilidade. Não importa, o que vale é xingar o outro grupo e desmerecer a passeata dele.
Fiz ontem um artigo sobre a diferença entre questionamentos técnicos sobre urna eletrônica e esse uso político manipulador e patético de uma pauta séria. Não é a única. Quem faz piada com o questionamento sobre mais segurança desconhece aspectos técnicos necessariamente. Quem propõe o modelo que viria com impressora esconde que ele já foi usado e deu errado. Chama circo, não política.
Um lado trata como terraplanistas os que questionam a segurança da urna. E faz justamente por negacionismo científico e pensar que pensamento mágico é ciência. O outro lado vê uma enorme conspiração para evitar a eleição de um político eleito trocentas vezes com esse sistema. E realmente a única explicação é a fantasia conspiratória, mais razoável que o tanto de mentira espalhada pelos políticos que inspiram o grupo.
Sistemas de segurança precisam evoluir porque não basta funcionarem tecnicamente, têm de dar a sensação de segurança a quem os usa. O debate técnico é como fazer isso. Aparentemente no grito e oferecendo soluções que já deram errado como panaceia. Dizem por aí que não dá muito certo. É preciso saber quais são os questionamentos e inseguranças do cidadão e tratar deles, em vez de ficar fazendo duelo de versões e performances muito iradas.
Hoje, um amigo indicou um fio feito por um técnico no Twitter mostrando toda a história da passagem do voto impresso para a urna eletrônica. Também explicou a experiência já feita com a urna que imprimia o voto para conferência e por que deu errado quando implantada no início do século. Sugiro que você leia porque nem políticos nem TSE vão contar isso para você.
Já houve uma eleição em que utilizamos a urna que imprime o voto para você conferir. Segundo os técnicos (veja no fio as reportagens) da época, o saldo de confiabilidade foi positivo, apesar do caos nas zonas eleitorais de teste. Houve dificuldade do eleitor com as máquinas, muitos esqueciam de validar o voto impresso e só validavam o eletrônico, houve filas e horários estendidos. Surgiu briga entre o TSE e os TREs.
Estamos presos numa discussão sem sentido. Um grupo dá 100% de certeza sobre o que não é possível ter certeza porque a tecnologia evolui e precisamos evoluir com ela e os impactos que causa na sociedade. Para o outro grupo, basta criar uma dúvida atrás da outra sem discutir nada seriamente. A sociedade só perde com isso, mas continua indo em passeata. Afinal, o que importa é atacar o outro lado.
Do outro lado pede-se o impeachment, sempre pressionando o presidente da Câmara dos Deputados da vez, que fará uma senhora nota de repúdio para quebrar tudo nas redes. Daí o presidente dará mais uma declaração que chegará a todas as manchetes de jornais. Basta ir até o cercadinho para emplacar. Então outras autoridades farão notas de repúdio. E tome passeata.
E o que a gente faz então? Não protesta mais? Sugiro que voltemos a ser adultos. Nos organizamos por redes para as primeiras passeatas e hoje transformamos as passeatas em redes sociais. Já não se sabe direito o que queremos, como será feito e o que acontecerá se conseguirmos. Mas sabemos que queremos atacar o grupo oposto, fazer uma passeata melhor que a deles e ter certeza de que somos melhores.
Não é possível um país passar 8 anos só funcionando na base da passeata. Precisamos repensar esta dinâmica porque, se ainda não acabaram com isso, é porque os políticos beneficiam-se. Durante anos fomos o gigante adormecido e os políticos acharam um jeito de aproveitar. Agora somos, há 8 anos, o gigante ensandecido e também não tomamos pé da situação. Talvez desse certo tentar ser um país.