Quando chegamos ao fundo do poço, a primeira coisa a fazer é parar de cavar. O fundo do poço moral a que chegamos parece sempre ter mais um subsolo. A nata da política e da sociedade brasileira não se conforma com a fila da vacina. Quer dizer, até se conforma desde que esteja na frente. Muitos ficaram indignados quando membros do Ministério Público, que estão em home-office desde o início da pandemia, reivindicaram preferência nas vacinas. Pois bem, tem quem ficou de bico fechado, conseguiu e ainda postou no insta.
O fura-fila de vacina mais descarado é o de Manaus. A fina flor da alta sociedade amazonense conseguiu passar na frente de médicos e enfermeiros na fila da vacinação. Como? Nomeações estratégicas a jato. Claro que fizeram stories do Instagram super do bem numa campanha pela vacina, a favor da ciência e contra o negacionismo. Deixaram ali estampada a cena em que pegavam a vacina de quem cuida dos doentes sem oxigênio.
O Brasil descobriu o escárnio pelas redes sociais das filhas do dono da maior universidade do Amazonas, a Nilton Lins. Foram nomeadas às pressas pelo prefeito de Manaus numa unidade básica de saúde apenas para receber a vacina. Gato escaldado, ele ordenou que não fossem feitas imagens e nem se falasse do caso. Mas, para as moças de boa família, ainda não foi apresentado o outro. O outro, no Brasil, é algo que não existe, como comprovam as caixas de som na praia e as pessoas ouvindo funk sem fone no ônibus. Elas não se importam com o outro, fizeram stories do insta e postaram para quem quisesse ver.
Hoje descobriram outro cidadão de bem, estudante da mesma universidade, filho de deputado, que também furou a fila da vacina. Descobriram como? Ele também postou stories no Instagram com a hashtag #Vacinado. O outro não existe. Está na moda postar campanha pró-vacina no Instagram. E daí que tem gente morrendo sem oxigênio, os hospitais estão entupidos e as equipes de saúde realmente precisam das vacinas? Prioridades, né?
O mais chocante é a forma como esses filhos da elite são criados, imaginando que não devem nada à sociedade da qual fazem parte. Os três são médicos recém-formados. Vivem numa cidade onde tem gente morrendo em casa por falta de atendimento. Têm todas as condições para agir pela comunidade nessa hora, já tiveram a bênção de nascer com a vida ganha. Não agem e só aparecem para pegar a vacina que seria de quem está trabalhando.
Há uma ala da sociedade que divide tudo em luta de classes, o rico mau e o pobre bonzinho, como se dinheiro definisse caráter. A experiência pessoal de cada um desmente isso em um minuto. Temos de fazer a separação entre dois times. De um lado está o time para quem o outro não existe. De outro está o time que é consciente de que ninguém consegue nada sozinho e que temos obrigação de devolver à nossa comunidade na medida das nossas possibilidades.
Essas duas famílias especificamente, das moças e do rapaz, eram contra vacina e foram em passeatas contra a corrupção. Apontaram o dedo para meio mundo dizendo que eram desonestos e precisavam ser extirpados da sociedade. Pense no seu círculo de relacionamentos. Quantos você conhece que são exatamente assim, o tipo nota de R$ 3? Quanta gente tem comportamentos nocivos sistematicamente e fica o tempo todo sinalizando virtude? Por quantos deles cada um de nós já foi ou ainda é enganado? Chegou a hora de enfrentar esse tema.
Gostaria de pensar que o fura-fila da vacina é um caso isolado de mau-caratismo. Não é. Só no Estado do Amazonas já foi contabilizado o sumiço de mais de 60 mil vacinas. Há fura-fila de vacinas patrocinado por políticos antivacina já detectados em Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. E haverá muitos, o tempo todo simplesmente porque eles podem e nós deixamos.
Sumiço de vacina em epidemia é comum. As pessoas se desesperam e cada um quer salvar o seu. Quem trabalha na ponta final, vacinando, sabe muito bem o desespero que é fazer a conta das doses necessárias para atender a população. Antes, eu imaginava que você calculava, por exemplo, 100 mil pessoas e eram 100 mil doses. Daí, quando precisei pegar no pesado, descobri que era bem mais complicado. Há um contingente que inevitavelmente será perdido e essa conta precisa ser feita.
Perda de doses não ocorre necessariamente por desonestidade ou falha humana. Acontecem acidentes, problemas inesperados, emergências. O cálculo depende do plano logístico para chegar até às pessoas cruzado com as necessidades de conservação da vacina. Por exemplo, uma vacina que precisa ficar gelada depende de cadeia de frio. Se você vai transportar por uma região onde falta luz, há que se fazer o cálculo. E também vai ter gente surrupiando vacina. É preciso calcular quanto se perde com isso com base no grau de vigilância e coordenação do processo.
Não há nenhum caso na história de enfrentamento de epidemia ou pandemia sem coordenação nacional. Nós não temos até hoje um plano nacional de enfrentamento da pandemia. Antes que reclamem, quem diz isso não sou eu, é o próprio governo. Não temos um plano nacional de vacinação. Congresso, governadores e STF não vão resolver isso com gambiarra, têm de obrigar o Poder Executivo a parar o trabalho incessante de treta e blogueiragem para trabalhar governando. Nós já pagamos.
Hoje o Ministério da Saúde resolveu reforçar seu time com o coach e hipnólogo Markinhos Show, que já viajava junto com ele informalmente. Estava presente na entrega simbólica das vacinas para os governadores. O presidente, que antes se ocupava de tretar com o governador de São Paulo, apelidar a vacina de vachina e recomendar cloroquina até para a ema do Palácio do Planalto, agora mudou de ofício. Tentou convencer seus apoiadores que financiou o desenvolvimento da vacina do Instituto Butantan.
Argumentei, com base em fatos, que era mentira. Mas a reação é a mesma de quando a gente diz à amiga querida que o boy lixo está mentindo para ela de novo. Claro que vai ficar louca da vida com você e até te atacar para defender o cara que mente para ela dia sim outro também. É como um transe do qual uma hora as pessoas acordam. Teve gente desejando que eu desapareça da mídia porque disse que o Governo Federal não deu um centavo ao Butantan. Pois bem, hoje o Ministro da Saúde aparece para dizer que não pagou nada mesmo. É que o documento mostrava que empenharam o dinheiro, ou seja, há a verba mas não foi mandada para o Butantan. É tanta confusão que muita gente pensa que isso configura trabalho. Parece, mas não é circo.
No enfrentamento à pandemia não temos um governo, temos um cunhado safado. A irmã da gente apaixonada, vamos levando aquilo em banho maria, tentando contornar, convivendo da melhor forma com ele e o bando de vagabundo que ele chama de amigo. Qual é o seu limite? Cada um tem o seu. Mas todo mundo sabe que uma hora chega o banquete de consequências para ela, para ele e para quem empurrou com a barriga. Não dá para querer o bônus do poder sem arcar com o ônus, que é também fazer coisas chatas como trabalhar.
Estamos empurrando com a barriga. A prioridade é um grupo de radicais amalgamados por teorias conspiratórias e uma linguagem própria. Para eles são feito pronunciamentos inflamados e a imensa maioria da população vê como incoerentes ou pura provocação. Essa atividade toma tempo e tem consequências importantes. Não é compatível com o exercício de autoridade pública, há que se escolher. A autoridade trabalha para todos os cidadãos, não pode priorizar as necessidades de um pequeno grupo. Aqui estamos falando de priorizar caprichos.
Não faz nenhum sentido o filho do presidente bater o pé para presidir a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados para complicar as relações exteriores com chilique em rede social. Também não faz nenhum sentido alguém querer ser Chanceler para colocar a vocalização pública das próprias opiniões acima do interesse dos brasileiros. Ambos têm o direito de fazer as duas coisas, mas não ao mesmo tempo. Se quis o trabalho, tem de trabalhar e o hobby fica em segundo plano. É assim na sua casa, na minha, na de todo mundo. Tem de ser na deles também.
Quando o Governo Federal, em vez de governar para o país, governa nitidamente para os seus, ele dá um sinal verde a todo pilantra de plantão. Dizem que o problema da tirania não é o tirano, é o tanto de tiranetes que saem do armário. Não tem como enfiar decência na alma de safado na marra e eles brotam feito mato. Assim que vêem rédea solta, dão o pinote. O sumiço e o fura-fila da vacina só começou. A demora para punir incentivará safados ainda menos corajosos, que estavam receosos até agora.
Chegou a hora de ter uma conversa séria com esse cunhado safado que chamamos de governo. A coisa já desandou num grau que não tem mais como ficar acomodando para não desagradar a irmã, precisa mesmo fazer a parte chata. Congresso, governadores e STF, não dá mais para pagar escondido mensalidade escolar de sobrinho, convencer amante do cunhado a não dar escândalo com a sua irmã, ir buscar o safado no bar e fingir que ele estava na firma. Vão ter de botar ele para trabalhar. Eu não sei como, só sei que a gente já pagou pelo serviço.
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