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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Breque dos apps: estamos entendendo o novo mundo do trabalho?

(Foto: Big Stock)

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A briga dos apps de entrega com motoqueiros e motociclistas foi reduzida a um debate supérfluo, inútil e apaixonadíssimo nas redes sociais. A cada novo dado ou novo capítulo, parlamentares, comunicadores, economistas e experts no mundo digital tiram uma casquinha para dizer que estavam certos na última opinião que deram sobre o tema. Não fazem isso porque são superficiais, mas para ganhar popularidade e animar os seguidores sem ter de se meter a resolver um problema chatíssimo que ainda baterá à sua porta: o mundo do trabalho mudou rápido demais.

No mundo todo, inúmeros especialistas discutem o futuro do trabalho, levando em conta o avanço tecnológico e as novas necessidades dos seres humanos. Nas diversas teorias, um ponto é comum: os que mais perdem são os que nem percebem a mudança.

Os dois lados da disputa apaixonada nas redes sociais simbolizam formas diferentes de fingir que tudo voltará a ser como antes. De um lado, há os que defendem um vínculo empregatício entre aplicativos de entrega e entregadores. De outro, há os que defendem cegamente esse modelo de negócio como solução da nova economia para entregas. Quem tem razão? Nenhum dos dois times, ambos pensam num mundo que já não existe mais.

O erro fundamental da discussão está em estabelecer qual é o "business" dos aplicativos. Não é entrega. O business é coletar dados dos usuários dos apps e traçar padrões de consumo de grupo e individualizados. É por isso que recebem aporte de bilhões dos investidores, não porque entregam pizza.

A tecnologia trouxe uma mudança radical dentro das empresas e em todas as relações humanas, incluindo obviamente as relações de consumo. É esse o novo mercado capaz de, por meio de inteligência artificial, criar maravilhas como o software que faz petições judiciais ou recorre de multas sozinho e tem mais sucesso que humanos treinados na tarefa. Nós sabemos quais são os detalhes que precisam ser observados para bem cumprir uma tarefa, mas não somos máquinas, deixamos escapar alguns. É por isso que aprendemos a programar máquinas, para que façam sem errar.

No caso dos aplicativos de entrega, o objetivo é entender como, quando e por que as pessoas consomem. E quanto estão dispostas a pagar a mais por pequenas comodidades. Ter essa informação, individualizada por perfil, e padronizada da forma que o cliente desejar muda completamente a pesquisa de mercado e dinâmica de consumo. E como são coletados esses dados? Fazendo entregas. O objetivo é gastar o mínimo possível com a entrega em si, até porque daqui a pouco surgem formas tecnológicas de fazer essa entrega e vão prescindir de pessoas. Mas os dados continuarão a ser coletados, agrupados e vendidos, isso é o que importa.

Segundo o último PISA, no Brasil, só 2% das pessoas têm capacidade para distinguir um fato de uma opinião. Num mercado de consumo mediado por coleta de dados pessoais, algoritmos e percepção de padrões, que postos de trabalho teremos para os outros 98%? É esse o nó: o mundo andou e nossa educação ficou para trás.

Por isso empresas que trabalham com dados, como é o caso dos apps de entrega, conseguem pagar tão pouco a quem faz boa parte do trabalho mas não tem preparo para ocupar outra função. São muitas pessoas nessa situação, gente demais, um número que só aumentou com os últimos anos de crise econômica e explodiu durante a pandemia do coronavírus. O trabalho que não exige dominar um ofício é a única alternativa de uma multidão. Há quem acredite que o pagamento deve levar em conta a dignidade humana e há quem acredite que é só questão de oferta e procura, não existe patamar mínimo.

Onde há miséria e falta de educação básica, esse esgarçamento começará a ficar cada vez mais evidente. Hoje, ainda há espaço de destaque, social e político, para pessoas que se orgulham de entrar na tal briga dos aplicativos de entrega falando como se o business deles fosse entregar coisas. Durante quanto tempo ainda haverá postos que comportarão pessoas paradas no passado, que ainda não enxergaram a necessidade de se aperfeiçoar? Serão eles os novos integrantes da fila de motoqueiro de aplicativo? Não sabemos.

Não precisa ser a Madre Teresa de Calcutá para verificar que as condições de trabalho de entregadores de aplicativo estão abaixo da dignidade humana. Isso ocorrerá em mais setores e não parece que estejamos próximos de resolver. Quanto mais complexas se tornam as tarefas, menos pessoas preparadas para elas teremos, então esses salários sobem. Em oposição, cada vez mais pessoas serão empurradas para tarefas de menor complexidade e essa conta não fecha. Que trabalho arrumar para toda essa gente? É possível requalificar quantas pessoas e em quanto tempo para reverter esse processo? Essas são as perguntas do novo mundo do trabalho.

Toda vez em que há uma evolução tecnológica capaz de modificar as relações de consumo, de trabalho e as expectativas da sociedade, temos dificuldades de estabelecer parâmetros de respeito à dignidade humana. O que vivemos não é novidade, é um movimento que já presenciamos na Revolução Industrial. Num primeiro momento, o encanto com a novidade é tanto que ela é a prioridade, depois nos lembramos que somos humanos.

No momento do deslumbramento com a novidade, ela é a prioridade. Diante das máquinas e da possibilidade de progresso que a indústria trazia, nem percebemos que vidas humanas poderiam ser moídas. Aliás, as próprias pessoas que tinham suas vidas moídas viam a indústria como uma oportunidade muito melhor do que o passado. É pouco a pouco que o véu do deslumbramento cai e começamos a traçar novamente os parâmetros da dignidade humana.

No mundo analógico, ficou decidido em quase todas as culturas que empresas tinham responsabilidade sobre a dignidade humana, seja de quem trabalha para elas ou de quem consome seus produtos. Fizemos leis para isso. Mas agora temos um mercado bilionário que não se entende responsável por respeitar a dignidade nem do consumidor nem do trabalhador. E as leis antigas não parecem funcionar.

Do consumidor são coletados dados sem que seja dada contrapartida ou sequer se cumpra a lei sobre o que pode ser coletado, como deve ser armazenado e que informação deve ser dada sobre isso. São direitos de personalidade, parte importante da dignidade humana, garantidos por lei, mas não respeitados. A remuneração miserável dos entregadores pode não ser o único modelo econômico possível para coletar esses dados, mas as empresas toleram a situação porque não se vêem responsáveis. A questão é que todos são responsáveis por respeitar a dignidade humana e precisamos aprender como isso será feito nesse adorável mundo novo.

A tensão dos entregadores com aplicativos é apenas o primeiro sinal de uma mudança profunda pela qual estamos passando. Reações que atribuem o atrito a uma diferença ideológica entre liberalismo e estatismo são cegas a esse processo. É algo que vai muito além. No maior país capitalista do mundo, os Estados Unidos, essa discussão já está muito à frente e sendo resolvida pelo próprio mercado.

Aqui no Brasil, parece que o respeito à dignidade humana é uma tarefa exclusiva do Estado-babá. Se não houver uma lei ou se quem teve a dignidade violada não recorrer à Justiça, indivíduos e empresas crêem que não são responsáveis por aquilo. É o oposto do pensamento liberal.

Nos Estados Unidos e Europa, bancos e fundos de investimento estão colocando dinheiro em aplicativos de cooperativas que passam a entrar nesse mercado. Há duas frentes diferentes: cooperativas de trabalho e cooperativas de consumo. Investimento não é só retorno financeiro, também é política. Já que a forma de trabalhar das plataformas tem gerado desequilíbrios sociais, o mercado está colocando dinheiro em formas de tentar um equilíbrio.

As cooperativas de consumo servem, por exemplo, para que motoristas de aplicativo consigam melhores preços de combustível, seguro e serviços. Também para que tenham melhor poder de barganha com as plataformas, já que a maioria transita entre várias. Ao mesmo tempo, é uma nova modalidade de relação comercial e um bom filão para negócios já tradicionais, como o fornecimento de combustíveis ou serviços para veículos.

Há ainda as cooperativas de serviços, que parecem ser muito bem vistas pelos entregadores de aplicativos do Brasil. Eles próprios não querem vínculo empregatício com as empresas para as quais fazem entregas. Essas cooperativas obviamente não substituem as grandes empresas de tecnologia nem os aplicativos, mas funcionam no nível local para diminuir o desequilíbrio entre oferta e demanda de trabalho não especializado. Já há cooperativas de entregadores e de serviços domésticos em vários países e elas têm investidores. Existe também o investimento em serviços menores e locais, que criam mais competição.

Seriam essas alternativas suficientes para garantir dignidade às pessoas durante a profunda transformação do mundo do trabalho? Ainda demoraremos uns bons anos para saber. O que já sabemos é da necessidade de parar de dar atenção a discussões simplistas e supérfluas, que não levam em conta a dignidade humana.

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