Desconfio que há um acordo secreto para que o Brasil não valorize quem fizer coisa que presta. Mas pode ser também um efeito colateral de tantos anos praticando bandidolatria intensiva. Talvez a vocação seja antiga, mas nunca praticamos tanto quanto agora. Vimos um milagre acontecer pelas mãos dos nossos cientistas, gente que pode inspirar as futuras gerações e estamos discutindo o quê? Bate-boca de político que de dia briga e à noite se ama.
Em outras urgências de Saúde Pública, o Brasil reconheceu devidamente a capacidade e a coragem dos nossos heróis cientistas. Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Adolpho Lutz e Vital Brazil têm seus nomes escritos na nossa história. Você já ouviu falar em Luciana Leite? Deveria. Ela é pesquisadora da equipe que trabalhou em um milagre da ciência, a vacina do Butantan. Aliás, é milagreira faz tempo, já fez algumas novas vacinas.
O Instituto Butantan é um exemplo de como o trabalho duro do cidadão comum e o espírito público de quem tem conhecimento permanecem muito além dos estratagemas políticos. Em 2021, serão 122 anos de conhecimento acumulado e dividido com o Brasil. Ele foi criado para resolver o primeiro surto após a proclamação da República, a peste bubônica no porto de Santos em 1899. Só que a gente conhece o Butantan principalmente pelas cobras. Não os políticos, os ofídios mesmo.
Lá no século XIX, precisavam produzir um soro contra a peste bubônica, só que o risco de vazar material biológico era imenso. O médico Vital Brazil teve uma ideia, criar um laboratório do outro lado do rio Pinheiros, bem longe de onde ficava a cidade de São Paulo. Num lugar de menor circulação, menos chance de dar errado. Escolheram a Fazenda Butantan, na Zona Oeste da cidade. Não quero dar spoiler, mas você deve saber que não tem mais peste bubônica em São Paulo. Esperemos que não volte.
Cientista tende a ser voltado para o seu mundo. Demorou mais de 60 anos para alguém perceber o quanto seria interessante uma exposição de cobras aberta ao público. O museu foi criado em 1956 e ficava na sala da diretoria mesmo. Só dois anos depois virou um museu. Talvez as cobras sejam a garantia de vida próspera do Instituto Butantan. É por causa delas que o povo sabe o que se faz lá e criou carinho pelo lugar.
São Paulo cresceu, chegou ao Butantan, atravessou e foi sei lá quantos quilômetros adiante. Na minha geração, já era ao lado de casa, uma condução só, 20 minutos. O ônibus que eu tomava todos os dias para ir à faculdade era o Butantan-USP. Todo paulistano e muitos paulistas têm memórias de infância com as cobras, algo completamente fantástico, assustador, fora do nosso mundo cotidiano. Para o povo, o Butantan não é um instituto, é essa lembrança. Para muitos, é ainda mais lembranças, já que a fazenda fica aberta como um parque para visitação pública há muitos anos.
Quando houve um incêndio, em 2010, quase todo mundo se perguntava o que havia acontecido com o esqueleto da sucuri. As cobras estavam vivas? E os macacos? Depois é que a gente lembrava do Instituto Butantan, aquele do qual sai boa parte de todas as vacinas utilizadas no calendário de vacinação do Ministério da Saúde. Há poucos centros de excelência na ciência no Brasil, isso nós gostamos de falar bastante. Mas, quando tem algo que presta, oportunidades para os nossos filhos, pessoas que inspiram, parece que a gente não vê. Fiz questão de olhar para aqueles de quem quero me lembrar quando tudo isso acabar.
Você sabe quem era o governador na época em que Oswaldo Cruz enfrentou a peste bubônica? Sabe quem era o presidente quando Carlos Chagas descobriu a doença de chagas? Sabe quem foi o governador que chamou Adolpho Lutz de volta ao Brasil? Não. Mas sabe o nome de médicos que trabalharam com ele: Emílio Ribas e Vital Brazil. Por que então neste momento estamos falando dos políticos e não dos cientistas e médicos?
Não falta história interessante e inspiradora entre os 245 brasileiros que atualmente trabalham na fábrica de produção de vacinas do Butantan. Serão contratados mais 120 devido à emergência na produção da vacina contra COVID. Fui efetivamente convencida do heroísmo dos pesquisadores quando soube dos salários. Se tiverem boas notas e passarem na rigorosa seleção, estudantes de graduação podem ganhar até R$ 1,2 mil por mês para 16 a 40 horas. Claro que quem tiver um pós-doutorado - e ali tem que ser de verdade, não de político - ganha bem mais, R$ 4 mil.
Atualmente, esse laboratório já produz 80 milhões de doses de vacina da gripe por ano. Devo confessar que só soube disso agora, pesquisando para escrever o artigo. Além da vacina do coronavírus, o Butantan está trabalhando no desenvolvimento de mais algumas: Dengue (4 tipos diferentes), Influenza H7N9, Influenza tetravalente, Versão menos reatogênica da Tríplice e o adjuvante BpMPLA, que pode fazer com que essa vacina tenha resposta muito mais rápida. Toda minha solidariedade a quem trabalha com esses milagres e, quando vai contar, recebe um "e o Doria?", "ah, mas o Bolsonaro" ou "vacina chinesa" no meio da cara. O Brasil merece sofrer.
Confesso que comecei a achar até esquisito que tudo funcionasse de forma tão organizada e ao mesmo tempo, sendo no Brasil. Pesquisando é que entendi. A organização dos laboratórios foi feita por mulher. O diferencial dos laboratórios de produção de vacinas e soros, em sua organização e intercâmbio com a sociedade, foi a grande realização de vida de Jandyra Planet do Amaral, diretora do Butantan no final da década de 68. Ela começou como estagiária e se dedicou durante mais de 40 anos ao Instituto, é uma das primeiras doutoras em Medicina do Brasil.
À frente do Instituto Butantan está hoje o médico Dimas Covas. Como a prioridade do Brasil é valorizar os políticos, o raciocínio é fácil: Covas - Bruno Covas - PSDB - João Dória - parente do Covas ocupando uma boquinha. Certo? Errado. E aí também tem uma história interessante. Ele é um pesquisador conhecido no meio, estava à frente do Hemocentro de Ribeirão Preto. Seu maior desafio na infectologia foi o combate ao HIV no início da década de 80, época em que conheceu David Uip. Quando secretário, ele o convidou para assumir o Instituto Butantan após uma crise envolvendo o médico Jorge Kalil. Dimas Covas aceitou mais para ajudar o amigo do que porque queria o cargo, já que a família mora no interior.
Claro que a parte interessante da história não era aquela, vem agora. Dimas Covas é um cristão fervoroso, agnóstico convertido depois de já ser um cientista reconhecido. O interesse pela religião foi científico, começou a querer entender teologia. Da leitura das obras de São Tomaz de Aquino veio a fé, uma espécie de iluminação. O homem da vacina, aquele que capitaneia um dos maiores desafios científicos do Brasil, acorda todos os dias mais cedo para rezar. É filho de um carteiro e de uma dona de casa.
Eu falei só de algumas histórias. Não imagino quantas dessas existam por aí. Aqui não são pessoas perfeitas, donos da verdade, gente que só acerta. Nada disso. É gente como nós, que está trabalhando com erros e acertos e precisa ter suas vitórias reconhecidas. Não falo apenas pela questão de honrar os que merecem mas porque as futuras gerações precisam de esperança. Se todo mundo só vive apontando os erros dos outros, ditando regras e posando de perfeito, o que tem para o futuro de seres humanos falíveis? Nada.
Aliás, falando em jovens, vi no site do Instituto Butantan que está aberto até dia 22 de janeiro o mestrado profissional em biotecnologia e bioprocessos BEST, um programa em parceria com empresas. Vai que você conhece alguém, achei por bem deixar aqui o link. Se você não conhece ninguém, vamos esquecer um pouco de confusão e olhar para o trabalho educativo interessantíssimo dos nossos cientistas sobre vários animais, manejo e natureza. Tem para todas as idades neste link.
Imagine agora quantos "Institutos Butantans" existem no Brasil. No sentido de lugares onde brasileiros comuns conseguem fazer coisas muito interessantes e dividir com os outros em todas as áreas, não só na biologia. É isso o que nós somos e que representa a estabilidade do nosso país ao longo do tempo, a força do trabalho do homem comum e seu compromisso com a comunidade. Políticos vêm e vão, a gente tem de vigiar mas não viver para eles. Talvez seja a hora do dono voltar a mandar no cachorro.
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