Por esse plot twist você não esperava. Mas fique tranquilo que nessa coluna eu sempre trago dessas. O bafafá está circulando na bolha identitária trans mais radicalizada dos Estados Unidos e do Reino Unido. E o que eu estou fazendo lá? Depois que entendi em qual bolha eu estava, entrei em várias outras para entender como as pessoas pensam.
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A intelectual nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie está sendo celebrada como perfeita por todo o universo lacrativo brasileiro após sua participação no Roda Viva. Enquanto isso, quem não aguenta mais a patrulha identitária está desde segunda-feira tentando achar defeito no que ela falou para dizer que também não é isso tudo. E a escritora nem estava no radar dessa turma antes, pousou de repente.
A patrulha identitária resolveu idolatrar Chimamanda não pelo que ela é, pensa ou escreve, mas porque se diz feminista. É exatamente por isso que também ela já ganhou cara virada da outra metade dos militantes de internet. Hoje, as duas turbas autoritárias começaram a aprender a lidar com uma aristocrata nigeriana que não tem medinho de lacrador. Ela fez um longo texto dissecando as atitudes de quem se crê monopolista da virtude.
Ver o mundo apenas a partir da própria experiência desumaniza os outros. Recentemente, houve outro episódio em que isso ocorreu muito claramente, o do médico assediador de vendedora no Egito. Vi reportagens completamente abiloladas falando do movimento feminista egípcio como algo semelhante ao que temos no ocidente. Não é, lá é sobre ações e conquista de direitos efetivos, não de patrulhar os outros para se dizer superior.
O mesmo ocorre na Nigéria, de onde vem Chimamanda. É um país muito conservador e religioso, mas também uma cleptocracia assombrada pelo terrorismo de grupos como o Boko Haram. A intelectual está no topo da pirâmide social, é filha de intelectuais reconhecidos no país e professores universitários, foi criada para o ambiente acadêmico e a liberdade de pensamento. Começou a escrever romances aos 7 anos de idade. Além de tudo, é bonita, gosta de moda e de beleza. Claro que ia ser cancelada uma hora.
Vamos ao caso concreto de agora. Ressuscitaram uma entrevista de 2017 em que perguntaram se mulheres trans são mulheres. Chimamanda respondeu que mulheres trans são mulheres trans. E explicou que a experiência de vida de nascer mulher é diferente da de ser criado como homem e depois transicionar, não há como equiparar. A patrulha identitária já acha que isso é discurso de ódio e transfobia.
Ontem, Chimamanda Ngozi Adichie jogou uma bomba atômica no parque de areia antialérgica da patrulha identitária com o ensaio "É obsceno: uma verdadeira reflexão em três partes". A última é a que viralizou. Nela, a intelectual explica em detalhes que repetir discursos lacradores como um papagaio tem sido escudo para se livrar das consequências de oportunismo, crueldade e falta de qualidade humana.
A patrulha identitária está acostumada com celebridades que se agacham diante do enxovalhamento público. Agora está diante de alguém que, além de não estar disposta a se agachar, sabe escrever e defender as próprias posições sem ser no grito e chamando nem chamando a turma para ajudar a bater. A escritora não se notabilizou internacionalmente por suas posições políticas, mas por sua obra.
A forma como ela conta histórias é poderosa, mergulha no emocional, nas circunstâncias e no conhecimento das características humanas. Grande parte da produção de Chimamanda é sobre sua terra Natal. Estudou para isso. Formou-se em Escrita Criativa na Universidade Johns Hopkins com excelência acadêmica e acumula prêmios acadêmicos e por livros. Avalie a força do tapa.
Essa baixaria toda de chamar de transfobia e discurso de ódio o que não é foi localizada numa história específica, a de uma jovem escritora que frequentou um curso de Chimamanda em Lagos, antiga capital e maior cidade da Nigéria. No ensaio, ela revela que não se aproxima muito das pessoas porque é famosa no país e já teve experiências amargas com oportunistas, mas resolveu abrir uma exceção.
Ficou amiga de uma jovem escritora feminista que esteve em seu curso, abriu sua casa para ela, tinham longas conversas, jurava haver uma amizade mesmo. Quando da entrevista em que disse que "mulheres trans são mulheres trans" a iniamiga mostrou seu lado falsiane. Foi para as redes sociais esculachar Chimamanda, dizendo até que ela era um perigo de vida para pessoas trans. Era só o começo. A intelectual fez que não viu, a patrulheira dobrou a aposta.
Esta é uma reflexão muito importante que ela traz. Muita gente nos diz que "não vale a pena confrontar tal pessoa" ou que "é melhor deixar para lá" nesses casos de difamação que vira catarse coletiva em rede social. A escritora fez isso com a iniamiga, eu também já fiz com outros tantos. É um erro que volta para pegar no nosso pé.
Uma pessoa que pode falar diretamente com você mas escolhe te expor numa rede social ou num grupo não te respeita. Simples assim. Não é sem querer, é pura falta de respeito mesmo. Se é confortável desrespeitar, vai dobrar a aposta. É exatamente o que aconteceu. A história é longa e eu não conto tão bem nem com tanto veneno, indireta e alfinetada quanto Chimamanda.
Como sou uma pessoa de princípios, vou resumir o final da fofoca para você não sair de mãos abanando. Daqui a pouco eu foco no texto que é uma autópsia do comportamento padrão do patrulheiro identitário. Vamos ao desfecho. A moça começou a mandar vários emails para a escritora se fazendo de sonsa e querendo reatar a amizade. Chimamanda, que é das minhas, não respondeu e ainda botou o print no textão desta semana.
Desprezo é bem pior que ódio, mas a iniamiga não captou a mensagem e resolveu se meter a besta. Começou a espalhar nas mídias sociais que a relação entre as duas se rompeu porque não quis entrar para o clubinho que idolatra a escritora. Ainda ficou fazendo insinuações de que havia muito mais coisa por trás da história. Gente sonsa mente assim, insinuando. Cria dúvida sobre o caráter dos outros e, se cobrada, diz que não afirmou nada.
"Não, não há mais nada por trás dessa história. É uma história simples: você se aproximou de uma pessoa famosa, você insultou publicamente a pessoa famosa para se engrandecer, a pessoa famosa cortou você, você enviou e-mails e textos que foram ignorados e, então, decidiu entrar nas redes sociais para vender falsidades. É obsceno dizer ao mundo que você se recusou a entrar num clubinho quando na verdade não existe nenhum clubinho", rebateu Chimamanda. E ainda estamos na parte 1 do ensaio.
A parte 2 é a prova de que, ao encontrar gente abusada, você precisa dar um presente: limites. A moça conseguiu publicar um livro e avisou a escritora que mais uma vez não respondeu. Eu já estou amando essa história. Daí ela manda o livro para Chimamanda e finalmente recebe uma resposta. Na biografia publicada na capa, a moça cita o nome da escritora. Ué, mas ela não era transfóbica assassina? Por que colocar uma transfóbica assassina como sua referência na capa do seu primeiro livro? Espera que não acabou.
Chimamanda não poderia rodar a baiana porque não tem Bahia na Nigéria e ela é uma aristocrata. Escreveu um e-mail educadíssimo num inglês impecável pedindo que seu nome fosse retirado do livro da iniamiga. A fulana dizia na capa que ‘seu trabalho foi selecionado e editado por Chimamanda Ngozi Adichie’. Retirada a fórceps da aba da intelectual, a iniamiga ainda não estava satisfeita.
Um jornalista escreveu um artigo dizendo que a tal novata era a "protegida" de Chimamanda e ela ficou viradíssima no Jiraya. Não a Chimamanda, a novata. Tô quase mandando um radar de noção para essa moça. Novamente ela entra no bate-boca de rede social dizendo que não é protegida de ninguém, é independente e empoderada e tudo mais. Disse mais, que Chimamanda havia tentado boicotar sua carreira, tinha muito mais nessa história mas ela não ia falar.
Foi aí que Chimamanda presenteou a iniamiga com uma coisa chamada limite. É esse texto que transforma em origami a arrogância da patrulha identitária. "Pessoas que pedem que você se 'eduque' sem ter realmente lido nenhum livro, sem ter capacidade de defender com inteligência suas próprias posições ideológicas, porque com "educar" eles querem dizer , na verdade, eles querem dizer 'repetir feito papagaio o que eu digo, anular todas as nuances, afastar-se da complexidade'.", dispara a escritora.
Para nós também tem um presente, uma análise social, comportamental e moral dos grupos que transformam pautas políticas em identidade pessoal pelas redes sociais. A intelectual mergulha no universo de quem precisa saborear um cadáver por dia no Twitter e acaba criando um ambiente em que todo mundo pisa em ovos o tempo todo para não ser a próxima vítima.
"Uma frieza no apego, uma fome de receber e receber e receber, mas nunca dar; um enorme senso de ter direitos; incapacidade de mostrar gratidão; uma facilidade grande com desonestidade, pretensão e egoísmo que é expressa na linguagem do autocuidado; uma expectativa de ser sempre ajudado e recompensado, merecendo ou não; linguagem que é lisa e elegante, mas com pouca inteligência emocional; um nível surpreendente de auto-absorção; uma expectativa irreal de puritanismo dos outros; um senso exagerado de habilidade ou talento onde não existe nenhum; incapacidade de se desculpar, verdadeira e totalmente, sem justificativas; uma performance apaixonada de virtude que é bem executada no espaço público do Twitter, mas não no espaço íntimo de amizade" descreve Chimamanda como características que a preocupam entre jovens que tem recebido em seu curso.
Queria escolher mais um pedaço dessa análise, mas não consigo. Resolvi traduzir a parte 3 do ensaio inteira para você. É uma reflexão profunda sobre as diferenças entre discurso e atitude, qualidades humanas, princípios, valores, honestidade e o respeito à dignidade como irrevogável e inerente à condição humana. Não é a bandeira do militante que determina a qualidade do seu caráter, é a atitude.
"Existem muitas pessoas informadas nas mídias sociais que engasgam com própria hipocrisia e padecem de falta de compaixão, que podem pontificar fluidamente no Twitter sobre gentileza, mas são incapazes de realmente mostrar gentileza. Pessoas cujas vidas nas redes sociais são estudos de caso em aridez emocional. Pessoas para quem a amizade e suas expectativas de lealdade, compaixão e apoio não importam mais. Pessoas que afirmam amar a literatura - as histórias complicadas de nossa humanidade - mas também são monomaniacamente obcecadas com o que quer que seja a ortodoxia ideológica predominante. Pessoas que exigem que você denuncie seus amigos por motivos frágeis a fim de permanecer um membro da classe puritana escolhida.
Pessoas que pedem que você se 'eduque' sem ter realmente lido nenhum livro, sem ter capacidade de defender com inteligência suas próprias posições ideológicas, porque com "educar" eles querem dizer , na verdade, eles querem dizer 'repetir feito papagaio o que eu digo, anular todas as nuances, afastar-se da complexidade'.
Pessoas que não reconhecem que o que chamam de abordagem sofisticada é, na verdade, uma mistura simplista de abstração e ortodoxia - a sofisticação, neste caso, é uma exibição de como eles são autosuficientes na versão atual da ortodoxia ideológica.
Pessoas que usam as palavras "violência" e "weaponize" como uma forquilha manchada de velha. Pessoas que dependem de ofuscar os outros, que não têm compaixão por ninguém genuinamente curioso ou confuso. Faça-lhes uma pergunta e será dito que a resposta é repetir um mantra. Peça novamente por clareza e seja acusado de violência. (Que irônico, por falar em violência, que seja um desses dois que encorajou os seguidores do Twitter a pegar facões e me atacar.)
E assim temos uma geração de jovens nas redes sociais com tanto medo de ter as opiniões erradas que se privaram da oportunidade de pensar, aprender e crescer.
Falei com jovens que me dizem que têm medo de tweetar qualquer coisa, que lêem e relêem seus tweets porque temem ser atacados pelos seus próprios. A suposição de boa fé está morta. O que importa não é a bondade, mas a aparência da bondade. Não somos mais seres humanos. Agora somos anjos nos acotovelando para sermos anjos uns dos outros. Deus nos ajude. É obsceno", conclui Chimamanda Ngodzi Adichie.
Vale a reflexão. O jogo do autoritarismo disfarçado de bondade já perdeu nos pênaltis, precisa encerrar a partida. Há quem ainda finja por conveniência que há boas intenções ou a busca de um bem maior por pessoas que se comportam da pior maneira possível nas relações pessoais, incapazes de respeitar os outros e até de enxergar os outros como seres humanos.
Todos temos, como Chimamanda também teve, o impulso inicial de simplesmente dar a essas pessoas o desprezo que merecem. Acontece que agora, na nossa realidade digital, essas pessoas se encontram, formam grupos, arrumam uma vítima por dia e validam uma desculpa moral para o comportamento intolerante e abusivo. Quem se comporta assim não tem limite, não vem de fábrica, só terá limite se alguém der. Tomara tenhamos muitos voluntários.
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