Não sei se você conhece o influencer Felipe Castanhari. Quem tem filho pré-adolescente nerd provavelmente sim. Ele é o apresentador do Mundo Mistério da Netflix e do Canal Nostalgia do YouTube, que trazem conteúdo de história de uma forma muito interessante. Ele resolveu contar a história da relação entre Ucrânia e Rússia. Claro que acabou cancelado pelos Doistoiévski de Osasco, fiéis defensores da União Soviética que se acham militantes de esquerda e eruditos.
Hoje houve mais uma reunião na ONU a pedido de diversos países para apurar crimes de guerra cometidos por soldados russos na Ucrânia. É uma tragédia humana que me deixa sem palavras. Meu coração para só de pensar naquelas pessoas todas ali, até outro dia levando a vida e agora no meio do inferno. A humanidade se desenvolveu tanto e ainda não temos outro jeito de resolver conflitos sem ser com sangue de gente inocente.
Tenho visto adultos tratando um tema tão importante como se fosse um filme da Branca de Neve. Um lado tem de ser o bonzinho e o outro lado é o mauzinho. Se a Rússia é sua Branca de Neve, então a Ucrânia é a madrasta má, cheia de nazista e tem que esquartejar os bebês todos. Se a Ucrânia é sua Branca de Neve, então a Rússia nunca fez nada de certo na história, tudo de lá é podre, vamos cancelar o Tchaikovsky. É o intelectual nível Dollynho, um sucesso nas redes sociais.
O divisionismo, a crueldade e a desumanidade são a marca desse tipo de pensamento maniqueísta. Você pode confundir com política porque essas pessoas se dizem militantes políticos. Não são. É como se fosse uma seita. Na política, você sabe que tem uma ideologia mas outros tem outra que não é a melhor na sua visão, mas é tão legítima quanto. Nesse caso, a pessoa se acha moralmente superior por aderir à ideologia de esquerda, então coloca a política no lugar que seria da religião e age de forma sectária.
E aí chegamos ao vídeo do Castanhari, que cometeu o crime de falar de um fato histórico, o Holodomor. Como assim Stálin matou milhões de pessoas se ele é o santo padroeiro da União Soviética na qual a esquerda cirandeira vive até hoje? De jeito nenhum! Nunca ele cometeria um genocídio, genocidas são só a PM e o Bolsonaro. Pronto, cancelaram o Castanhari.
É canalha a ação de atiçar gente cruel e perversa em cima de alguém simplesmente pelo prazer de ver outra pessoa sofrer. Mais canalha ainda é a tentativa de dizer que este é um processo virtuoso. Existe um truque quase perfeito que foi usado aqui: pedir as fontes primárias de tudo. É exatamente o que a esquerda cirandeira fez, saiu pedindo as fontes do vídeo e dizendo que, sem as fontes, ele não tem credibilidade.
Por que essa tática é perfeita para justificar moralmente ataques típicos de menina má de colégio ríco? Porque parece legítima. Para algo ter credibilidade, precisa ter fontes seguras. Se você me apresenta as fontes primárias, eu posso analisar se é ou não algo de credibilidade. Caso você não apresente as fontes primárias, significa que as fontes são as vozes da sua cabeça. Eu vou te explicar por que essa falácia é tão apelativa e sedutora.
O primeiro ponto da sedução é dar a sensação de elitismo ou de erudição a gente tão burra que nem consegue saber o quanto é burra. Que tipo de fonte primária você é capaz de analisar para saber se é legítima ou não? Aquelas da área para a qual você tem um treinamento formal. As outras você não vai saber analisar, não adianta pedir. E isso não é elitismo, é cada um no seu quadrado, não serve para saber universitário apenas.
O vídeo do Castanhari tem como fontes o trabalho de um jornalista e um historiador. Eles provavelmente buscam uma multiplicidade enorme de fontes para produzir um vídeo. Fosse um trabalho acadêmico, analisado por pessoas da mesma área, com a mesma formação, faz sentido listar as fontes todas. Como todos têm o mesmo treinamento formal, a avaliação tem um padrão. Mas é um vídeo. Você vai botar bibliografia em tudo quanto é vídeo de YouTube agora? E, mesmo que coloque, como a pessoa vai usar?
Um exemplo simples, do meu dia a dia. No início da pandemia, tive acesso a vários estudos sobre Covid porque já trabalhei com comunicação na área de contenção de epidemia. Exatamente porque estudei sei do tamanho da minha ignorância e do quanto alguém precisa estudar para realmente entender o que está ali. Eu compartilhava o estudo com alguém da área e tirava as dúvidas. Simples assim.
Ler processo, por exemplo. Todo mundo tem um amigo que acha que entende de processo mais que o advogado. O advogado dá uma instrução, ele diz "deixa que eu mato no peito, doutor", faz o que ele acha que era o certo e se ferra.
Outro exemplo real: que tipo de tomada e fiação comprar para substituir uma que queimou aqui em casa. Eu posso receber todas as fontes primárias disso e só vou saber se comprei a coisa certa ou errada quando usar. Se explodir, estava errado. Como eu não sou tão louca assim, eu falo com o eletricista, que fez curso disso.
O segundo ponto importante da falácia da fonte primária é a possibilidade de descredenciar qualquer fonte devido ao primeiro efeito. Pouquíssima gente vai saber o que é uma fonte confiável ou não ou o que está dito ali. Então, mesmo que a pessoa mostre a fonte, você desqualifica. Quer exemplo? Mostra isso daqui, compilado em Kiev pelo Leonardo Lopes, historiador:
Basta você dizer que o Leonardo Lopes tem sido linha auxiliar da extrema-direita no Brasil e que foi à Ucrânia sem se incomodar com os nazistas do Batalhão de Azov, por isso está espalhando propaganda feita sob medida para minar o regime de Putin e promover o imperialismo "estadunidense". Gente, mas o que isso tem a ver com as coisas que ele escreveu? Nada, você nem precisa ler para desqualificar a fonte dele.
O grupo acha que é moralmente superior porque se posiciona politicamente como progressista ou esquerda, portanto, basta apelar ao moralismo de quinta categoria. Você enxerga uma intenção maligna oculta no Leonardo Lopes, o que já faz todo mundo pensar "nossa, como eu sou melhor que ele". E daí, claro, todos podem partir para o esporte de esculhambar o cara sem peso na consciência.
E se te pedirem para justificar a razão da desconfiança ou para citar uma fonte? Tem duas alternativas. A primeira é pegar qualquer link de instituição internacional e postar. Pode até dizer o contrário do que você defende. Pega o tour virtual do Museu do Holodomor em 3D e diz: "aqui está minha fonte, por que ele não mostra a dele"? Vai com fé que ninguém percebe que a sua fonte confirma o que ele disse.
Outra saída é não apresentar nada e fazer só apelos moralistas. "Qualquer pessoa séria tem de apresentar as fontes e quem lida com divulgação científica não pode reclamar quando a gente pede que apresente as fontes". É uma frase ótima, mas proponho o seguinte: qual sua fonte para dizer que a chuva é molhada? Se não tem, então é uma impressão sua, não uma verdade? Se você fala que a chuva é molhada sem saber a fonte, então você não é confiável? Não é tão simples assim o negócio.
As duas ações podem ser combinadas, mas a consideração moralista é obrigatória porque tem utilidade dupla. Ela também alivia as consciências e cria uma nova versão do que realmente ocorreu. As pessoas ficaram xingando um influencer e lotando as redes dele de baixaria. Mas elas dizem que "só pediram a fonte e ele está dizendo que foi cancelado". "Se é tão sensível assim, então faz vídeo secreto".
Daí começam outras discussões derivadas daquela, tentando achar no vídeo algo que justifique a desconfiança. A mais sensacional que eu vi, corroborada por diversos professores universitários da esquerda cirandeira é a de que o Holodomor não poderia ser genocídio porque senão a fome de Bengali promovida por Churchill também seria. A burrocracia aplaude contente porque não sabe qual é o parâmetro de definição de um genocídio, mas parecer que sabe e ainda dar liçãozinha de moral é delicioso.
O que é um genocídio?
Para a lacração e a esquerda cirandeira, genocídio é tudo que for feito pela direita. Por exemplo: a Polícia Militar está promovendo o genocídio do povo preto no Brasil porque morrem muito mais negros do que brancos em conflitos policiais. Morrem também mais policiais negros, mas deixa quieto para não estragar um conceito tão perfeito.
Outro exemplo é Bolsonaro ser genocida. Tenho um amigo de esquerda que o apelida carinhosamente de Genô mas é puro deboche de oposição, não leva a sério o negócio. Tem gente que realmente leva. A condução das políticas da pandemia seria a comprovação da aniquilação dos brasileiros e, portanto, genocídio.
Mas o Stálin não, esse não é genocida de jeito nenhum. O Stálin só vai ser genocida se o Churchill também for. Não é exatamente assim que se julga um evento como genocídio, penso que você deve ter intuído.
O termo genocídio é muito novo, foi usado pela primeira vez pelo advogado polonês Raphäel Lemkin em 1944. É a junção de genos (povo ou tribo) com cide (morte) e descreve especificamente o que Adolf Hitler fez. O advogado parte daí para criar um marco legal, uma explicação que até então não havia para um tipo específico de ataque, aquele em que todo um povo é alvo e pode ocorrer em situações de paz ou de guerra.
O crime de genocídio é tipificado em 1948 e passa a ser punido nos países-membros da ONU a partir de 1950, de acordo com um tratado assinado em 1949. Vamos à definição técnica:
Genocídio significa qualquer um dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
Matar membros do grupo;
Causar danos físicos ou mentais graves a membros do grupo;
Infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial;
Imposição de medidas destinadas a prevenir nascimentos dentro do grupo;
Transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.
A Convenção para punir genocídios diz que o julgamento desse tipo de crime é obrigatório e deve ser conduzido no lugar onde os crimes foram cometidos, com a mediação de outras nações caso necessário. Agora temos em movimento um processo desses. Vários países já representaram junto à ONU pedindo investigação do que está ocorrendo na invasão da Ucrânia.
Isso já foi feito várias outras vezes na história, infelizmente. A primeira condenação formal por genocídio foi a de Jean-Paul Akayesu pelo ocorrido na cidade de Taba, em Rwanda no dia 7 de abril de 1994. A sentença foi prisão perpétua a ser cumprida no Mali. O julgamento ocorreu 4 anos depois, em 1998.
O massacre de Sbrenica, um genocídio de bósnios muçulmanos cometido por sérvios em julho de 1995 levou à condenação do presidente Slobodan Milošević e de toda a cúpula do exército sérvio por genocídio. O ex-mandatário morreu na cadeia.
Mas e o pessoal que trabalhou com o Hitler? Esses não foram julgados por genocídio porque a tipificação só foi criada depois que eles cometeram o crime. É um princípio universal que a lei só retroage em benefício do réu. Essa regra pode parecer injusta aqui porque falamos de gente muito ruim. Mas pense se ela não existisse. Você poderia fazer algo que é certo e legal hoje e ser punido por crime amanhã.
Criar regras que sejam justas para os justos mas capazes de punir os maus é um desafio enorme. Aqui falamos dos especialmente perversos e também especialmente poderosos. Por isso tanto tempo de maturação até decidir como seria o processo de julgar esses casos.
E aí eu volto à fonte. O que seria uma fonte para dizer que um evento histórico é ou não genocídio? Os Che Guevara de apartamento que estavam pedindo isso nem sabem e nem iam ver as fontes, mas vamos aproveitar para esclarecer. Depende. Não vai ficar com raiva, depende mesmo.
Oficialmente, genocídios são só aqueles reconhecidos nesses julgamentos internacionais. E isso tem uma razão específica que são as providências obrigatórias a serem tomadas nesses casos. A Convenção Internacional para Prevenção e Punição de Genocídio cria uma série de obrigações para os Estados envolvidos, tanto a vítima quanto o agressor. Uma coisa é você avaliar o que o Putin está fazendo agora, investigar e, caso se confirme, punir. Outra coisa é punir a Rússia pelo que o Stálin fez ou punir agora a Alemanha pelo que Hitler fez na Polônia.
Mas e esse pessoal não merece nem reconhecimento? Com o passar dos anos, a consciência de que aquele povo superou a tentativa de aniquilação passou a ser importante para a honra e a cultura. A ideia que sequer existia até 1944 amadureceu e agora ganha uma nova dimensão. O caso mais famoso é o da Armênia, que luta para que o massacre feito pela Turquia em 1915 seja reconhecido oficialmente como genocídio armênio.
Há diversos países na mesma situação. A rigor o que aconteceu é um genocídio, mas ocorreu antes que essa palavra fosse criada. Como solucionar? Ninguém tem ainda uma resposta. A Turquia, por exemplo, não tem problema em reconhecer que foi mesmo feita uma aniquilação étnica em Constantinopla de forma deliberada. Só não quer o reconhecimento do genocídio por causa dos procedimentos de reparação. Todos os envolvidos já morreram, os filhos deles também, qual vai ser o sentido disso? Como funcionaria?
Ninguém ainda sabe direito. O que países nessa situação fazem é tentar conseguir apoio de outros países para discutir uma solução para a questão. Armênia tenta que outros países reconheçam que houve um genocídio e já conseguiu em vários. Como não é um julgamento internacional, isso não implica a obrigação de reparar. A Ucrânia também quer que o Holodomor seja reconhecido como genocídio. Aliás, isso está para votação no Senado brasileiro atualmente.
Digamos que haja uma decisão de reconhecer como genocídio algo ocorrido antes de 1950, isso vai afetar todos os casos ou só aquele específico? Qual seria o marco temporal de início disso? Vai contar desde o início da história da humanidade ou só o que a gente ainda tem parente vivo ou lembra da história? E o principal: ficaria aberto um precedente para criminalizar condutas e pessoas que hoje estão dentro da lei?
São perguntas bem difíceis para responder consultando nossos próprios botões, avalie responder isso ouvindo gente do mundo todo, com visões e interesses os mais diferentes possíveis.
Ficar perguntando de maneira marota "qual sua fonte para dar tal versão de um massacre" é a forma mais eficiente de expor a imundície de alma e o desprezo pela dignidade humana. Ideologia não implica defender barbárie, falta de caráter sim. Deixo aqui a sugestão do professor do IDP e pesquisador do Ipea Leonardo Monasterio, um trecho de Eric Hobsbawn, pensador de esquerda e militante histórico do Partido Trabalhista do Reino Unido.
Não há como minimizar horrores e disputar detalhes estatísticos e técnicos diante da barbárie. Mesmo que não tenha santo em nenhum lado da história, há coisas que simplesmente são moralmente inaceitáveis.
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