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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Cultura do Cancelamento

Cancelar Joe Rogan e o Spotify não combate negacionismo, mas dá esse status

Joe Rogan
Joe Rogan em cena do especial de comédia "Strange Times", da Netflix: “grande demais para ser cancelado” (Foto: Divulgação/Netflix)

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Todos os dias surge uma boa alma moralmente superior defendendo que precisa banir um conteúdo ou perfil de alguma rede social para salvar a humanidade. Seria censura? Jamais. Sempre é para conter desinformação, principalmente aquela de negacionismo científico. Se a pessoa coincidentemente viraliza, vira hit na imprensa e fatura, é porque Deus está recompensando uma ação tão altruísta.

Dizem que amor com amor se paga. Mas não sei se negacionismo com negacionismo se combate. A tese do cientista Neil Young é realmente promissora. Salvaremos vidas se tirarmos o Joe Rogan, especificamente ele, do Spotify. Como este proeminente cientista de dados e especialista em contenção de epidemias falou, a mídia progressista adere.

Mas e se o Joe Rogan fosse progressista? E se, em vez de entrar no tema da vacina porque já estava mergulhado em política ele tivesse virado político defendendo parar de vacinar todo mundo? Imaginei se o Neil Young e todos os artistas e jornalistas que o apóiam fariam a mesma ação contra um progressista antivacina. Não sei se fariam ou não, mas estão confortáveis ocupando as mesmas plataformas que o mais famoso deles, Isaac Golden, com influência real em epidemias e até no Brasil.

Pessoas que deixam de tomar a vacina e são fãs do Joe Rogan tomam essa decisão por influência dele ou buscam o conteúdo dele para justificar a decisão que já tomaram? Difícil dizer. Pode ter as duas coisas e não sabemos o percentual de cada uma. Pessoas que seguem um homeopata que se apresenta como grande cientista e faz conferências contra vacinas no mundo todo deixam de tomar vacina por causa dele? Mais provável. E ele também vende "vacinas homeopáticas".

O fato é que Neil Young resolveu tirar toda a obra dele do Spotify se Joe Rogan não fosse banido da plataforma. Progressistas já me disseram que não é cancelamento. Seria se ele tivesse exigido que Joan Rogan fosse banido do Spotify. Mas ele só foi à imprensa anunciar que tiraria as próprias músicas de lá caso o outro permanecesse. É uma diferença tênue que só pessoas bem mais inteligentes que eu enxergam.

Eu sinceramente achei que o Spotify ia seguir a toada das demais Big Techs, banir o antivacina conservador e conservar na plataforma os antivacina gratiluz. Fiquei surpresa com a decisão por outro caminho, que é novidade e fez a empresa perder R$ 11 bilhões na bolsa. Não vai cancelar ninguém, vai fazer uma política para reforçar a responsabilização dos produtores de conteúdo e investir em produção própria de conteúdo cientificamente válido. Vai funcionar? Teremos de observar, mas é uma senhora virada de chave.

Houve perda financeira agora, mas a questão é no médio e longo prazos. Não pense que empresas de streaming são jihadistas da liberdade de expressão porque não são. São negócios que precisam dar lucro e ter sustentabilidade.

Suponhamos que o Spotify cedesse ao Neil Young que, segundo alguns jornalistas brasileiros, iniciou uma "luta contra o negacionismo". Quantos outros jihadistas de questões morais iriam chantagear a empresa publicamente? Não é sustentável. Justificativa o povo arruma. E sempre vai ter quem dê apoio porque enquanto houver otário, malandro não morre de fome.

A cantora Joni Mitchell anunciou que vai se unir ao protesto de Neil Young e também retirar suas músicas do Spotify. Fez declarações emocionadas sobre médicos e cientistas que lutam contra a pandemia e pediram que o podcast de Joe Rogan saísse do Spotify. Jornalistas publicaram que Neil Young perdeu 60% de seu faturamento com direitos autorais. Pode ser e pode não ser, ninguém viu documento disso.

A imprensa internacional cita declarações emocionadas dos músicos dizendo atender pedidos de médicos e cientistas que lutam contra a pandemia da COVID. Fui procurar quem pediu para tirar Joe Rogan do Spotify especificamente. Não achei. Talvez seja uma espécie de Chico Buarque, que toma decisões e diz que foi atendendo a pedidos. O pessoal da música aprendeu direitinho com os políticos a fazer isso. No entanto, achei pedidos sobre outro antivacina, o homeopata progressista. Foram solenemente ignorados.

O Spotify anunciou uma política contra toda desinformação sobre COVID. Você pode gostar ou não e nem sabemos se vai ou não funcionar, mas pelo menos é contra todos. A ação dos músicos diz ser contra a desinformação, mas é especificamente contra um apresentador de podcast conservador e defensor de Trump. Ele pode ser o mais famoso, mas não é o antivacina que mais incomoda os médicos e cientistas.

Ou seja, a questão central dos músicos não é ciência. Se fosse, teriam ouvido médicos e cientistas antes de tomar decisões e fazer declarações públicas. As declarações não foram feitas no embate científico sobre vacinação, mas no embate político, que engaja muito mais. Ao mirar em Joe Rogan, Neil Young teve uma inversão de sua trajetória de queda de buscas na internet, além do apoio de toda a mídia progressista. Veja o gráfico desde 2004.

É um recurso retórico mirar em um único adversário político e atribuir a ele toda a responsabilidade sobre algo ruim. Mas funciona na era das redes sociais porque a sociedade está polarizada. Haverá o time Neil Young e o time Joe Rogan e Spotify. Ocorre que é uma falsa oposição de valores. Se Neil Young diz querer combater desinformação, por que não mira em todos, independentemente da cor ideológica?

Buscar uma estratégia para evitar que a desinformação prejudique a contenção da pandemia pode até passar pelas Big Techs. Mecanismos de avaliação de conteúdo e responsabilização de produtores, curadoria, inteligência artificial, contato permanente com cientistas envolvidos nas políticas públicas, ações afirmativas educacionais, testes empíricos de ciências de dados. Enfim, um mundo de coisa chata para caramba que dá um trabalho do cão e não rende o engajamento de cancelar alguém. Melhor ligar na imprensa e mandar um "ou o Joe Rogan ou eu".

Eu entendo o Neil Young e o Chico Buarque. Enquanto houver cavalo, São Jorge não anda a pé. Se podem ter promoção de graça, falando qualquer coisa sem ter de provar nem ter coerência, por que não? Tem político fazendo isso o dia todo, pelo menos os caras fazem umas músicas legais também.

E se o antivacina não for conservador? Os cientistas que se danem.

O seu médico está preocupado com o Joe Rogan? A Anvisa está preocupada com o Joe Rogan? As associações médicas e governos estão preocupados com o Joe Rogan? Não. Aparentemente, só a imprensa progressista está. E eu luto para entender isso porque é todo mundo a favor da descolonização mas basta um americano suspirar que o povo dá o mesmo suspiro, apóia e noticia.

Ocorre que tem um antivacina com quem médicos, cientistas e autoridades de saúde pública no Brasil, Índia e diversos outros países estão preocupados há mais de 10 anos: Dr. Isaac Golden. Ele está no Spotify? Claro! E também na Amazon, em outras redes e até vendendo "vacina homeopática" pelo Facebook. Nesse caso houve médicos e cientistas apelando às redes para barrar o conteúdo pelas consequências reais, inclusive no Brasil. O que não teve é solidariedade de artista progressista.

Provavelmente você nunca ouviu falar do Dr. Isaac Golden e até ache que o Joe Rogan é mais importante. Na política sim, na vacinação não. A vantagem de ter sido educada na esquerda é conhecer todos esses personagens fascinantes, como pensam e como são sistematicamente protegidos.

Quando meu filho nasceu, há 10 anos, muita gente da elite paulistana levava os filhos a médicos homeopatas. Eu não levei porque minhas tias são muito amigas de uma benzedeira porreta que cobra bem menos. Infelizmente, o plano de saúde não reembolsa. É uma injustiça, já que reembolsa os homeopatas. Mas o mundo não é justo.

Voltando à moda dos homeopatas, muitos deles diziam abertamente que não era para vacinar as crianças. Eu cheguei a acreditar que a homeopatia era sinônimo de antivacina. Mas uma pesquisa feita em 2016 mostra que 75% dos médicos homeopatas são favoráveis à vacinação. Muitos recomendam um remédio homeopático antes e outro depois da vacina, fórmulas que têm sido muito vendidas durante a pandemia.

Você já ouviu falar na "vacina homeopática"? Ela é chamada de nosódio e já foi testada em vários lugares do mundo, inclusive contra dengue e meningite tipo B aqui no Brasil. Não há prova científica de que funcione. Aliás, até as associações médicas e farmacêuticas homeopatas são contra. Mas o Dr. Isaac Golden divulga isso em podcasts no Spotify, em livros na Amazon e até vende pelo Facebook.

Ontem, eu vi colegas jornalistas brasileiros cancelando assinatura do Spotify dizendo ser contra negacionismo científico. Complicado. O Neil Young, o bonzinho da história, também fez declarações negacionistas sobre ivermectina. As pesquisas ainda não terminaram e o Japão anunciou que ela tem efeito contra COVID, saiu na Reuters.

Desde 2009 tem médico da USP pedindo que as redes sociais parem de promover a tal "vacina homeopática" do Dr. Isaac Golden. Aliás tem médico do mundo todo pedindo isso, principalmente os que têm os nomes usados por ele como referência mas nunca apoiaram essa história. Aliás, o Dr. Isaac Golden nem médico é, é economista. Por que ninguém atendeu o apelo da comunidade médica nesse caso? Porque não é sobre vacinação, é sobre sinalização de virtude.

A história do Dr. Isaac Golden é fascinante. Ele foi da economia para a homeopatia pelo caminho de uma seita australiana conhecida como "The Seaside Sect". Ela não existe mais porque foi dissolvida pela polícia e seu líder, Iam Lowe, foi preso por pedofilia. Ele era um policial aposentado que tinha um harém de 9 esposas com as quais teve 63 filhos. Morreu em 2012. O Dr. Isaac Golden era da alta hierarquia, mas não foi acusado de envolvimento com crimes da seita.

O culto era uma mistura de culto a extraterrestres e espiritualidade havaiana do Velho Testamento. Como assim? Veja que "vacina homeopática" até faz sentido para quem viveu nisso. O culto tinha troca de esposas, que recebiam nomes havaianos dados por Iam Lowe, chamado pelos seguidores de "The Controller". As crianças eram criadas conjuntamente, não iam à escola e eram e abusadas por ele. Muitas não sabiam quem eram seus pais.

E onde a "vacina homeopática" entra na seita dissolvida pela polícia por pedofilia? O líder Iam Lowe dizia ser reencarnação de Jesus, com visões de outros mundos. O Dr. Isaac Golden era a reencarnação do alemão Samuel Hahnemann, pai da homeopatia. Além de ser da seita, os dois seram sócios numa empresa de medicina alternativa. Golden abriu também um partido político progressista e defensor da medicina natural, foi candidato ao Senado na Austrália. Continua no Spotify.

A história dessa seita ficou famosa quando uma das crianças sobreviventes foi estrela do reality show "The Bachelor". Keira Maguire foi tirada do culto pela mãe quando tinha 5 anos de idade. A prisão do líder do culto foi no ano 2000. O Dr. Isaac Golden passou então de reencarnação do pai da homeopatia a homeopata reconhecido em todo o mundo, tendo trabalhado para os governos de Cuba e Índia. Isso segundo ele próprio.

O mais curioso é que toda a base empírica para a tal história da "vacina homeopática" vem do Brasil. Nesse podcast que está no Spotify, o Dr. Isaac Golden conta uma história fantástica ocorrida quando o Brasil precisou importar vacinas de Cuba contra a meningite B na década de 1980. A importação é verdade e também a alegação de que em alguns lugares, como São Paulo, a imunização não parecia tão eficiente. Hoje já há diversas outras vacinas, na época não havia.

A parte fantástica é quando uma autoridade cubana vem ao Brasil para saber por que em apenas um Estado a vacinação dava tão certo e mais certo do que em Cuba. Segundo o Dr. Isaac Golden, é porque lá teria sido usada também a "vacina homeopática", que tem eficiência de mais de 90%. Ocorre que essa história só existe na cabeça dele. No site em que vende as vacinas, ele usa a técnica de citar os nomes de médicos brasileiros que realmente pesquisaram homeopatia mas mudar as conclusões.

Na pandemia, o Dr Isaac Golden veio ao Brasil tentar formar um grupo para coletar secreções de doentes e fazer uma "vacina homeopática" contra a COVID. A própria Associação Homeopática Brasileira fez um longo artigo denunciando a falta de ética e base científica para os experimentos que ele pretendia conduzir. Mas, como ele é a reencarnação do pioneiro da homeopatia e economista, continua defendendo esse absurdo no Spotify e diversas outras plataformas. Sem ser incomodado pela lacração, claro.

Este livro inventando resultados de estudos sobre vacinas está na Amazon. A plataforma vende todos os livros que o Dr. Isaac Golden já publicou. O Neil Young pediu para sair da Amazon Music caso este conteúdo antivacina que pode matar não fosse banido? Não. Tem até uma seção especial dele com oferta de 30 dias grátis. Aliás, todos os serviços de streaming concorrentes do Spotify estão promovendo com destaque os álbuns de Neil Young.

Como eu achei essa história bizarra do antivacina que realmente preocupa autoridades de saúde brasileiras e praticamente toda a imprensa só achou o Joe Rogan? Porque eu estava atrás de sabotador de vacinação, não de lacrar e sinalizar virtude me apresentando como parte de um movimento contra um apoiador do Trump.

Qualquer jornalista brasileiro minimamente preocupado com oportunista que sabota vacinação sabe a história do surto de Febre Amarela em São Paulo em 2018. Foi um pânico geral, faltou vacina, teve gente matando macaco achando que iria se defender. E quem foi um dos principais desinformadores? O Dr. Isaac Golden. As autoridades de saúde tiveram de fazer alertas oficiais informando que a vacina da febre amarela é consagrada no mundo e essa história da "vacina homeopática" é golpe.

Você vai ouvir por aí diversos jornalistas defendendo a censura de Joe Rogan alegando que só conteúdos científicos deveriam ser veiculados. Jornal publica horóscopo. A gente vê missa na televisão. Tudo quanto é terapia alternativa não comprovada tem seu lugar de fala. E até antivacina tem seu lugar de fala como "autoridade de Saúde Pública" na grande imprensa, como mostrei num artigo dias atrás.

Eu não sei se você é contra ou a favor da permanência de Joe Rogan no Spotify. Eu sou favorável, tenho pavor do controle do discurso público por grandes corporações. Quem é contra pode ter um milhão de razões, mas não pode alegar a preocupação com vacinação, vidas humanas ou ciência. Estivessem preocupados, há mais de 10 anos um antivacina que ataca médicos brasileiros já teria deixado de ser anônimo.

A economia da atenção é a apoteose da superficialidade. Basta dizer que quer combater negacionismo para combater. Antes fosse tão fácil. Tuitar dizendo que quer tirar um cara do Spotify é fácil. Emparedar o Spotify exigindo que derrube um canal é fácil. Combater negacionismo científico é dificílimo, exige trabalho persistente e muito esforço. Mas agora este status está à venda na economia da atenção. Basta você dizer que combate negacionismo para a imprensa lhe dar essa coroa.

Observação da leitora Claudia, acrescentada depois da publicação original ao artigo:

Gostei da matéria, mas na minha opinião a jornalista deixou de dar uma informação importante para o entendimento do caso, que torna a atitude do Neil Young ainda mais absurda e ridícula. A Madeleine se esqueceu de dizer que Joe Rogan é declaradamente progressista e vacinado. Neil Young deu piti apenas porque Joe Rogan entrevistou o médico e bioquímico americano Robert Malone, um dos que ajudaram na criação da vacina do RNA mensageiro, que critica a vacinação em crianças. Ou seja, Neil Young deseja "cancelar geral".

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