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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Culpa burguesa

Casamento-ostentação de Lula implode o fetiche pobrista da militância gourmet

Lula e Janja se casaram na noite desta quarta-feira (18) em uma cerimônia em São Paulo. (Foto: Ricardo Stuckert.)

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"O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual", cravou o inesquecível carnavalesco Joãosinho Trinta, famoso pelos desfiles-ostentação. Reside nessa diferença um grande drama do PT. Enquanto os trabalhadores que formam o partido querem melhorar de vida e desfrutar de luxo e conforto, os intelectuais do partido idolatram a pobreza e cultivam internamente a culpa burguesa.

O casamento-ostentação de Lula colocou esses dois mundos em choque. Ele é um homem milionário que gosta de luxo e jamais escondeu isso de ninguém. Ocorre que a militância do PT se esvaiu. Desapareceram os trabalhadores, sindicalistas, comunidades eclesiais de base. Os mais ruidosos são a militância gourmet, que tem o fetiche do pobrismo. Para esses, o casamento-ostentação virou um drama e foi preciso culpar a imprensa.

O contorcionismo intelectual para lidar com a culpa burguesa mas permitir o justo gosto de Lula por luxo contaminou até a imprensa. Uma tese muito interessante girou em torno do vinho de R$ 90. Ele é caro sim e é impossível para a maioria dos brasileiros. Mas o fetiche pobrista não pode admitir que Lula seja Lula, que goste de coisa cara mesmo e tudo bem. Foi preciso dizer que a imprensa queria um casamento com "coisas de pobre", tipo Itaipava latão.

Como filha de sindicalista do ABC da década de 1980, eu adoro luxo igualzinho a Lula. Se puder, eu quero mesmo. Fosse eu com 76 anos casando com alguém 20 anos mais novo, eu descia de paraquedas embrulhada em diamantes já bêbada de champagne Cristal. Ia ser a cafonalha mais cara que o país já viu. A diferença é que eu não fico chamando de esbanjador quem tem duas televisões em casa.

O falecido Hélio Bicudo toca num ponto que intriga muita gente: a origem da fortuna de Lula. Os luloafetivos argumentam que ele fez esse dinheiro com palestras, conta que só fecha na cabeça de quem tem as próprias contas pagas por papai. É um porte de fortuna que não foi construída nem por políticos como Paulo Maluf, que começou a vida indo para a faculdade a bordo de uma Mercedes Benz própria e depois teve todos os problemas que sabemos.

Provavelmente Lula tem uma explicação lógica para a origem de sua fortuna. Infelizmente, apesar de tanto carnaval, ninguém teve competência para esquadrinhar isso. Já ouvi todas as desculpinhas mequetrefes de gente com estabilidade vitalícia e salários nababescos sobre manobras de políticos para se safar. É uma tarefa que não admite erro nem vaidade, simples assim. Dar entrevista condenando corrupção e dar desculpa é muito mais fácil que dar resultado. Tem quem aceite.

A verdade é que o Lula rico com hábitos de elite existe há mais de 20 anos e nunca viu problema nisso. Aliás, duvido que algum pobre raiz veja problema nisso. Quem vê problema e fica com vergonha do gosto de Lula pelo luxo é a militância gourmet luloafetiva. Ela projeta a própria culpa burguesa nele. É o pessoal que paga uma fortuna para se vestir igual mendigo e vive pregando justiça social em Santa Cecília.

No documentário Entreatos, feito durante a primeira campanha vitoriosa de Lula à presidência, já se via o homem de gosto refinado e hábitos de elite. Isso foi antes de chegar ao poder, não depois e com palestras. Numa cena icônica em que prova um terno maravilhoso sob medida com Ricardo Almeida, ele ouve de Vicentinho que tinha saudades da época de metalúrgico.

Lula fica revoltado. E com razão. É hipocrisia dizer que tem saudades de usar um macacão que secou atrás da geladeira quando se está vestindo um Ricardo Almeida lã super 180 sob medida. Uma outra cena do filme mostra que Lula sabe muito bem escolher comida. Ele está num jatinho comendo o serviço de catering e manda devolver porque está ruim. Palocci não percebeu e come.

Como eu sou filha de pobre, já fiz de tudo. No departamento de marketing da holding da CCR, eu cuidava dos eventos. Era uma empresa das empreiteiras durante os governos Dilma e Sérgio Cabral. Sei bem o que esse povo come e bebe. Não entendi a escolha do buffet de Lula até anunciarem a transmissão ao vivo. Explico: não é comida e bebida no padrão de luxo que esse pessoal está acostumado, mas tem a estrutura sensacional de lives da Faria Lima.

O buffet é de luxo, não se enganem. Eles fazem o catering de grandes empresas ali e também no Club Med, em casamentos feitos no Lake Paradise e em Trancoso. Ocorre que o padrão de luxo dos nossos políticos é muito acima até do luxo do nosso empresariado. Sempre você tem de trazer algo de fora ou pedir algo especial e bem mais caro. Foi assim com a lista de Lula, não seria diferente.

Rolei de rir com o contorcionismo do pessoal falando do vinho de R$ 90 e dizendo que não é caro porque no mercado tal você compra um vinho muito mais caro. Coisa de pobre remediado que tem culpa burguesa. Eita, cafonalha, me dá até alergia. Não tem vinho de mercado nesses lugares e o preço de coisas melhores é mais baixo porque vem no atacado. Lula e Janja quiseram um upgrade do serviço que já é de luxo.

Qual o problema de Lula querer gastar R$ 100 mil em bebidas, achar que um dos serviços mais luxuosos do Brasil era pouco e pedir um upgrade? Para mim nenhum, eu não tenho culpa burguesa, sou liberal e amo luxo. Mas o luloafetivo pobrista quer morrer de catapora. Ele precisa imaginar um Lula também pobrista, que nunca existiu. Campanha sem projeto é isso: você estimula a imaginação do fanático. Quem quer um cheque em branco precisa ser uma tela em branco.

Uma biografia antiga de Lula, feita por Denise Paraná, conta a história do segundo casamento dele, com Marisa Leticia. Este foi uma espécie de "Vale a Pena Ver de Novo". Mais uma vez era coisa bem menos luxuosa do que ele queria mas feita num contexto em que as pessoas acham aquilo super luxuoso porque ninguém tem dinheiro.

Estamos numa crise econômica, com preços altíssimos de combustíveis, o maior nível de calote em conta de luz do país, mais expectativa de aumentos, uma guerra mobilizando a Europa. Pagar R$ 90 numa garrafa de vinho num país em que você já é rico com salário de R$ 5 mil é ostentar. E aqui não falamos em uma garrafa, mas num preço médio de garrafa maior do que o preço médio de um buffet de luxo da Faria Lima. Até aí, coisa de rico.

Ocorre que Lula conhece sua nova militância gourmet. Dia desses, fez discurso falando de "racismo estrutural". E obviamente botou o dedo na ferida que movimenta bilhões na publicidade com o identitarismo, a culpa burguesa. Foi lá simplificar o "eu odeio a classe média" da Marilena Chauí numa versão que veta mais de um aparelho de tevê por família:

Qual foi o bug na cabeça do militante gourmet que tem fetiche pobrista? Ele estava muito feliz até ontem dizendo que a elite brasileira é escravista e que a classe média gasta demais porque tem duas televisões. Condenar o outro é uma forma de fingir não ser parte dessa elite e aplacar a culpa burguesa. Daí ele precisa defender os luxos de Lula, que ontem mesmo mandou ser pobre. Se for fanático, será capacho o suficiente para fazer as duas coisas e ainda se achar virtuoso.

Agora, a militância gourmet vai precisar decidir se virou liberal ou se vai continuar com o fetiche pobrista. Ou a classe média esbanja e ostenta ou vinho de R$ 90 é barato e cada um compra o que quer com seu dinheiro. Eu sempre fui da segunda turma, do cada um faz o que quer com seu dinheiro. Mas entendo a dificuldade de quem até ontem defendia que o Elon Musk acabasse com a fome no mundo.

Eu, sinceramente preferia que o pessoal virasse liberal e começasse a gastar o dinheiro com comida e roupa que não sejam do fetiche pobrista. Ninguém aguenta mais esse povo pagando fortunas por coisas xexelentas para aplacar a culpa burguesa. Umas roupas que ninguém entende, bolsa de lacre de lata de refrigerante, uns cabelos esquisitos e esses desodorantes naturais que - vamos lançar a verdade - não desodorizam sovaco nenhum. Eu não tenho mais paciência.

Para finalizar, deixo aqui para vocês a prova cabal de que pessoas de origem pobre aproveitam a ostentação sem culpa e ainda dividem com os irmãos. Meu convidado preferido do casamento foi o sensacional Paulo Vieira. Fez amizade com o garçom e levou uma caixa inteira de doces embora. Distribuiu para a imprensa. Confesso que me identifiquei. Só estranhei que não levou nenhum arranjo de mesa para botar em casa. Eu teria levado pelo menos um par.

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