Depois de um certo número de mortes, é inútil falar em números maiores se queremos tocar o coração das pessoas. Trata-se de um mecanismo de defesa da mente humana para situações caóticas como as guerras e a que vivemos hoje. "Quanto mais morremos, menos ligamos", diz estudo concluído ano passado pela London School of Economics and Political Science. Lembre, por exemplo, da comoção em torno do acidente da Chapecoense. Ou o estado em que ficamos diante do assassinato cruel da garotinha Isabela Nardoni.
Diante de 2349 mortos em um único dia, de uma única doença, a mente humana não sente igual. É como se a gente desligasse um chip de sensibilidade para sobreviver psicologicamente. O problema é quando esse processo acaba nos impedindo de nos proteger fisicamente da maneira adequada. Às vezes é tão extenuante para a mente ter a consciência da situação que preferimos construir um universo paralelo. Trata-se de um processo inconsciente, desenvolvido por toda a evolução, não o controlamos. Estamos em uma pandemia que os políticos decidiram não enfrentar para ficar brigando entre si. Quem vai se vacinar antes de mim e de você? Pois é, melhor não pensar.
Até hoje não temos uma "comissão de notáveis" para guiar o Governo Federal na pandemia e nem um plano nacional de enfrentamento do COVID. O Ministério Público Federal, ente autônomo e que não se subordina a nenhum dos Três Poderes, deveria ter cobrado isso. Deve atuar nas questões federais de interesse público. Chegou o momento do basta. O Procurador-Geral da República decidiu pedir ao STF para banir Danilo Gentili do Twitter. Que timing, senhores! Agora vai!
Tenho o orgulho de ter alguns amigos com foro privilegiado. Mas sempre pensei que a maior realização de Santo André, minha terra natal, seria a frase: "Nóis capota mas não breca". Nosso grande momento nacional foi chegar ao posto de mais comentado assassinato de prefeito da história do Brasil. Danilo Gentili trabalhou na prefeitura na época em que era pobre. Diz a lenda, se ele foi pobre, nem se lembra. Agora está lavando a égua de Santo André ao tornar-se o primeiro humorista do país com foro privilegiado. Parabéns, Danilo! Que orgulho de ser sua amiga!
Eu até agora não sei como o Danilo Gentili conseguiu essa proeza de ser processado no Supremo Tribunal Federal e mobilizar a Procuradoria-Geral da República por causa de um tweet. Tenho certa inveja, confesso. Menos inveja, no entanto, do que diversos tuiteiros que vivem ameaçando os outros e pedindo artigo 142 sem incomodar nem um guarda noturno de interior. Deve doer muito isso. Vejam o caso, por exemplo, da Sara Winter. Enquanto ela não montou um acampamento com treinamento de ataque e jogou um rojão no STF, galera achava que era brincadeira. Uma falta de respeito danada. Acho até que pode ser machismo.
Preciso confessar que me senti, de certa forma, preterida no episódio. A nova presidente da CCJ da Câmara, deputada Bia Kicis, tempos atrás moveu um processo no STF por uma live no meu canal pessoal do YouTube. Ninguém soube, nem eu. Meses depois que acabou, por coincidência, fiquei sabendo. O Danilo Gentili faz um único tweet, depois apaga, diz que defende a Câmara e eles juntam de A a Z dos deputados para fazer uma ação pedindo para ele ir preso. Daí chamam o PGR e ele pede para tirar o Danilo do twitter e prender em casa. Se isso não acabar de vez com a COVID, não sei o que acaba.
O processo chegou ao presidente do STF, Luiz Fux. O ministro é carioca, o mínimo que esperava dele era a eterna rivalidade com paulista. Mas não. Em vez de rebaixar Danilo Gentili para a terceira divisão - ou primeira instância -, manteve no grupo de elite, nas mãos do ministro Alexandre de Moraes. Nem a carta do Clube Militar pedindo claramente uma intervenção recebeu tamanha deferência. Os generais aposentados devem estar fulos da vida. Não bastasse, o ministro pede que o Procurador-Geral da República se manifeste e, em plena pandemia, ele se dedica a isso. Prioridades.
Falando em prioridades, eu fiz um artigo detalhando o que disse Danilo Gentili, como se retratou logo em seguida e o outro pedido que chegou ao STF junto com o da prisão dele. No caso, falo da liberação geral da maconha e cocaína justificada pela tentativa de usar injeções de gás de cocaína contra o COVID. Inacreditável que uma pauta dessa importância tenha sido preterida. Só para esclarecer, não há nenhuma evidência de que o tal do gás cure COVID. Aliás, o gás nem existe mesmo mas tem uma receita dele no processo. Garanto que seria um julgamento fraco em termos jurídicos mas de altíssimo potencial de entretenimento. Já que estamos pagando, eu voto nesse para ir a plenário.
Seria injusto dizer que o Procurador-Geral da República nada fez com relação à pandemia de COVID. A realidade é que fez e foi diligente várias vezes, mantendo inclusive uma prestação de contas pública na internet. Quando ao Plano Nacional de Combate à Pandemia, não achei o pedido. Talvez eu seja ruim de procurar ou talvez não seja importante assim. Claro que o tuíte do Danilo Gentili é bem mais importante e por isso a manifestação veio antes. O pedido é para banir o humorista das redes sociais e afastá-lo da Câmara dos Deputados, talvez impedi-lo de sair do próprio município. Ah, "mas o STF já fez o mesmo". Fez não, é pegadinha do Mallandro.
Jabuti não sobe em árvore. Você pode fazer pouco do Procurador-Geral da República o quanto quiser, mas sabe que ninguém chega a essa posição à toa. Danilo Gentili foi usado pela Câmara para defender os seus, numa tentativa de equiparação ao deputado Daniel Silveira. Meu conterrâneo está muito acima disso, já que teve o mesmo tratamento sem ter feito a mesma coisa, com zero antecedentes, nunca foi preso, praticou arrependimento eficaz, não é autoridade pública e nem reincidente. Só fica me martelando como o Danilo Gentili foi parar no STF sem ter sido nem síndico de prédio, mas tudo bem.
Agora, o Procurador-Geral da República coloca o humorista em outro tipo de equiparação equivocada, a dos blogueiros governistas que ameaçaram ministros do STF, jornalistas e adversários do governo. Alguns foram presos, outros tiveram contas canceladas nas redes sociais. Não seria a mesma coisa? Há duas diferenças fundamentais. A primeira é que o Inquérito do STF segue a trilha financeira e não baniu pessoas das redes, pediu o congelamento de contas investigadas. Os donos podem abrir outras contas. A segunda diferença é que Danilo Gentili não está disponível para aluguel. Escreve o que lhe dá na telha e tem seu público e seus detratores. É muito diferente de quem se une para defender interesses políticos ou econômicos de um determinado grupo, com financiamento para isso.
Quantas pessoas choraram seus mortos no mesmo dia em que a Procuradoria-Geral da República elaborou o glorioso parecer sobre Danilo Gentili? O que parece ser de mais interesse do povo brasileiro? Imagino que seja exigir finalmente um plano nacional de combate à pandemia. Mas eu sou mãe. Me disseram hoje que, se tivesse uma mãe cuidando disso, já estaria todo mundo vacinado, de banho tomado e roupa posta para sair de novo. No parquinho de areia antialérgica da Câmara e do MP, danem-se os mortos, vamos tretar com humorista.
Compreendo a ambição recolhida por uma cadeira no STF, que está logo ali, afinal. Compreendo também a necessidade de lacrar junto à militância que odeia Danilo Gentili diante da completa incompetência ao tentar fazer oposição ao governo Bolsonaro. Mas não estamos falando de crianças ou de adolescentes chorando porque estão longe dos amiguinhos e da escola. Falamos aqui de adultos que se voluntariaram a grandes responsabilidades e brigaram por isso. Sabem que são pagos regiamente, que ganham no mínimo seis vezes o salário médio das famílias brasileiras.
É vergonhoso que o Congresso Nacional e o Ministério Público estejam assistindo em berço esplêndido que uma pandemia seja tratada por diversas autoridades como panfleto de campanha. Todas as republiquetas do mundo já têm seu Plano Nacional de Combate à Pandemia e uma "comissão de notáveis", com as melhores cabeças do país para ajudar o governo nacional. Nós não chegamos nem a republiquetas. Governadores e prefeitos, em vez de exigir o plano ou denunciar a incúria do Governo Federal, preferiram a gambiarra e o embate político. O COVID agradece. Agora quem está com inveja é o Danilo Gentili. Se nossos políticos tivessem por ele metade do carinho que nutrem pelo COVID, fariam um busto em bronze do humorista no plenário da Câmara dos Deputados.
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