Quando eu era criança, nossos parentes chatos eram apelidados de "Voz do Brasil". Era o povo que falava, falava, falava e ninguém queria ouvir. Na minha cabeça, sempre foi o maior serviço de inutilidade pública da história do Brasil. Não via aquilo como noticiário, mas com versões pasteurizadas de histórias que deveriam ser contadas de outra forma. Ali era só desculpa para puxar a sardinha para a brasa do governo.
Por essas voltas da vida que fazem a gente pagar a língua, fui surpreendida certa vez com a incumbência de ser a responsável por um pedaço da Voz do Brasil. Quase tive um treco. Pensem em um ódio. Eu aceitei um emprego no Supremo Tribunal Federal e descobri não saber muito sobre o programa do qual eu falava tão mal há tantos anos. Ele não era feito pelo governo federal.
Uma parte era do Poder Executivo, outra do Legislativo dividida entre Câmara e Senado, outra do Judiciário e um minuto do Tribunal de Contas da União. Eu faria os cinco gloriosos minutos do Judiciário diariamente por dois anos, o que rendeu uma tiração de sarro sem fim dos meus colegas das rádios comerciais onde havia trabalhado tantos anos. Não tinha rede social direito, mas não tinha como esconder - passava obrigatoriamente em todas as rádios.
Eu só descobri aí que muita gente ouvia a Voz do Brasil. Pensava que derrubaria a audiência, como ocorria em São Paulo. Primeira medição: estourava de subida. Então os mais experientes explicaram que tinha relação com o esfacelamento do jornalismo local. Ali havia o detalhamento informações que os grandes veículos de São Paulo e Rio de Janeiro subestimavam.
Fazia mais de dez anos que eu não ouvia a Voz do Brasil e ontem eu assustei. Você sabia que foram lançadas ontem duas novas televisões públicas do governo brasileiro? E que agora tem um programa grátis para enfrentar automutilação e suicídio de jovens? Paguei a língua: vivi para ver a Voz do Brasil ter mais notícia que o Jornal Nacional.
Essa diferença de 10 anos não é na estrutura da Voz do Brasil, que continua a mesma. O que mudou foi o jornalismo. Tudo o que saía na Voz do Brasil geralmente estava no noticiário. Havia duas diferenças fundamentais.
Geralmente o noticiário local ou que interessa ao interior não era tão detalhado. Dou um exemplo prático: previsão do tempo dedicada a produtores rurais das diversas regiões do país. Você tem isso nas rádios e televisões públicas com muito detalhe diariamente. O mesmo vale para jornalismo local. Nas grandes emissoras nacionais se fala de algo que seja grave numa região específica.
A outra diferença é que o jornalismo procurava fatos enquanto a Voz do Brasil tinha a versão oficial. Um exemplo prático é que discursos de diversos deputados e senadores vão parar na Voz do Brasil. Talvez você já tenha visto este tipo de solicitação feita da tribuna. Também as declarações oficiais dos chefes dos Três Poderes vão parar ali. Não há, no entanto, contraponto, investigação ou denúncia. Isso vinha do jornalismo comercial.
Saímos dessa realidade para uma completamente diferente e assustadora. Informações como duas novas tevês públicas e duas políticas de Saúde Pública importantíssimas para a população simplesmente não têm mais lugar no noticiário. O jornalismo declaratório, que eu considero um câncer, está em metástase avançada.
O noticiário parece completamente apartado da realidade das pessoas, focado no novo habitat natural dos jornalistas, o Twitter. Ontem foi o dia da doutora Deolane entrar na política, Daniel Silveira fazer algo, Lula reclamar do politicamente correto, o Che Guevara de apartamento advogar pelo fim dos sigilos impostos por Bolsonaro. São notícias obviamente, mas merecem tomar completamente o lugar das outras?
O problema parece ser de proporcionalidade. Eu sinceramente não sei se a tornozeleira eletrônica de um deputado é mais importante que conscientizar sobre o treinamento nacional para combate a automutilação e suicídio em jovens. Falamos aqui de um problema grave, que nós temos dificuldades para lidar e para o qual já há soluções em andamento chegando a todos os municípios. Mas precisa se inscrever e você só se inscreve se souber do programa.
Nesse mundo digitalizado ainda caberia ao jornalismo dar esse tipo de informação? Tudo isso foi noticiado na Agência Brasil, na Voz do Brasil, nos canais oficiais. É um debate que precisaremos enfrentar, o do papel que o jornalismo pretende exercer numa sociedade digitalizada. Estamos só começando a discussão.
Mas até eu, que sou do ramo, fui pega de surpresa. A minha cabeça ainda via o noticiário como eu o fazia tantos anos atrás, mas o noticiário é feito de outro jeito. Essas notícias de caráter prático, que chamávamos de "prestação de serviço" eram uma parte certa de todo noticioso. Só ontem eu percebi que a falta delas leva à impressão de que "ninguém está fazendo nada".
Criticar político e promover debates sempre foram partes do noticiário, mas não o todo. Ontem percebi que minha cabeça ainda pensa o preenchimento do espaço do noticiário como se a internet não existisse. Talvez porque eu não esteja a cargo de montar noticiários diários desde que a internet existe, ainda pense assim. Hoje escrevo artigos, não sou chefe de redação nem editora de jornalístico.
Na minha cabeça, você tem um espaço determinado. São tantas linhas ou tantos minutos. Então você define as prioridades e dá mais destaque e mais tempo ao mais importante. Não se deixa de noticiar o menos importante, o polêmico e a curiosidade, mas eles merecem menos tempo ou um espaço de impacto. Ocorre que hoje não tem espaço determinado, o noticiário é sem parar.
Este frenesi de político batendo boca na internet, jornalista tomando partido e influencer atravessando no meio é o novo habitat dos jornalistas. E é por essa visão de mundo que passa a se decidir aquilo que tem ou não importância. Natural que seja briga por causa de político, é o que mais captou a atenção dos jornalistas. Mas talvez isso não seja o mais importante para o público.
Os novos canais de televisão pública
Os dois novos canais nacionais de televisão pública, por exemplo, também são parte da pauta política crítica. Em primeiro lugar são prestação de serviço, já que se destinam a escolas e têm como objetivo aumentar os níveis de alfabetização no Brasil. Após a pandemia, é uma solução que tem sido demandada por educadores.
O Canal Educação não traz ainda novos programas, ele concentra conteúdo educativo já produzido pela equipe da TV Brasil. Terá aulas voltadas para os estudantes e também programas de capacitação de professores e dirigentes escolares. O primeiro foco é alfabetização, mas não sabemos ainda os outros planos. O acesso via antena parabólica faz toda a diferença para os municípios mais afastados e com menos internet. O outro é o Canal Libras, que traz conteúdo específico para a comunidade surda e tenta estimular a população a aprender a Língua Brasileira de Sinais.
A intenção, no entanto, é uma diversificação maior do conteúdo. "Serão transmitidos, também, programas de variedades, como culinária, entrevistas, documentários históricos e contemporâneos, atualidades, perspectivas de futuro, entre outros, tendo uma grade voltada para educar, conscientizar e esclarecer o cidadão", diz a Agência Brasil.
E aí eu tenho só perguntas. Quem vai montar essa programação? É possível que tenha algum viés político-ideológico? Como a população faz para se manifestar sobre isso e avaliar? O projeto tem garantias de ser o que promete - incentivo à alfabetização - ou pode ser usado algum dia para doutrinação? Pode isso em ano eleitoral? Não sei, mas creio que era algo importante do noticiário. Seja você um fã ou um hater do governo, tenho certeza de que queria saber sobre isso.
Ação para prevenção de suicídios de jovens
Você já deve ter ouvido em algum canto histórias de gente preocupada com taxas de suicídios e automutilação entre jovens. Durante a pandemia, principalmente a automutilação cresceu. São temas dificílimos até para médicos. Pais e professores penam para entender como lidar com esses fenômenos.
Falar sobre esses temas ainda é tabu. Até recentemente nem se mencionava na imprensa o tema. Houve uma mudança decorrente da pressão dos fatos. É necessário falar sobre suicídio, ideação suicida, automutilação. Mas precisa ser do jeito certo, um desafio para muitos.
Ontem, foi lançado em todo o país um treinamento gratuito para prevenção de suicídio e automutilação em jovens. Como a gente imagina, o público prioritário são os profissionais de saúde, educadores da rede pública e privada e conselheiros tutelares. Mas também há vagas para líderes de associações religiosas, corporações militares, entidades beneficentes e movimentos sociais.
As inscrições vão até o dia 3 de julho no site https://universusbrasil.saude.gov.br. É preciso preencher a inscrição e aguardar a resposta com a confirmação da vaga. A carga horária dos cursos é de 20h.
Resumo da ópera
Passamos por mudanças profundas no mercado da comunicação. Talvez seja o momento de uma reinvenção do jornalismo. O que já existiu não vai se repetir. Por mim, estou contente com a lembrança preservada na memória e no Museu da Imagem e do Som.
Aquele jornalismo, com todos os seus defeitos e virtudes, era feito para um mundo que nem existe mais. Vivemos um novo mundo, o da sociedade digital. Ele traz uma nova dinâmica econômica para a indústria da comunicação e uma nova realidade de informação, que afeta radicalmente a demanda do público.
Tentar levar as coisas com a barriga como se fosse possível continuar repetindo fórmulas de um mundo extinto é a primeira reação. Talvez tudo passe e volte a ser como antes. Muita gente apostou nisso no final da década de 1990. O "boom" dos portais passaria e a boa e velha imprensa continuaria adiante.
A escolha por deixar como está para ver como é que fica fez a imprensa perder um tempo precioso. Negócios menores e com menos estabilidade financeira foram desmoronando. Hoje não há noticiário local na maioria das cidades brasileiras. O noticiário nacional acaba sendo seguido meio que como novela, não é o que está na minha porta, a dor que me toca, a questão que é mais urgente aqui na minha casa.
A reinvenção do jornalismo está em voltar às suas raízes. Muita gente reclama de viés ideológico, mas talvez não seja este o maior problema. A falta de conteúdo informativo, principalmente local, faz com que o viés ideológico às vezes seja a única informação. O público também precisa de conteúdo e há mercado para colunismo de todo tipo de viés ideológico, sempre haverá.
A boa notícia é que não foi a tecnologia que demoliu a solidez da imprensa, foi a dificuldade em se adaptar a uma mudança tão ampla e abrupta. Essa mesma tecnologia que dissolveu os negócios como eram também possibilita que novos negócios sejam criados com investimentos muitíssimo menores que na era analógica.
Há diversas iniciativas interessantíssimas de noticiários locais, seja em cidades ou até em bairros ou periferias. Reclamamos com razão da educação, mas a inclusão na escola desde a década de 1990 fez com que hoje tenhamos muito mais gente capaz de pensar na solução de demandas locais e investindo muito menos. A tecnologia nos dá exatamente o que pedimos a ela. Essa é sua beleza e sua maldição.
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