Preciso começar o texto sendo desagradável. Eu não gosto do Sikêra Jr. e por várias razões, sinto dizer. A primeira é que trabalho com jornalismo há 25 anos, a maior parte do tempo cobrindo política. Vocês não avaliam a quantidade de homens feios que essa área é capaz de atrair, na minha opinião justificaria adicional de insalubridade. Já tenho idade para poder poupar minha saúde mental.
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A outra questão é a forma de cobertura policial espetacularizada, que deixa as pessoas inseguras, nervosas, perdidas. Entendo que cria um vínculo especial com o comunicador e é um produto de mídia muito interessante, mas não gosto nem um pouco. No entanto, não é por uma coisa nem outra que ele virou o alvo da vez.
Em um movimento suicida, órgãos de imprensa e perfis de jornalistas comemoram a "desmonetização" do programa e do YouTube do apresentador Sikêra Jr., fruto de um ataque do tipo "raid". O motivo seria nobre, ele fez declarações terríveis sobre homossexuais. Parece tudo muito certo, mas é desinformação. A imprensa, ao mesmo tempo em que se iguala aos desinformadores, legitima as técnicas mais usadas por eles.
A desinformação está em três pontos: o método, a motivação e o resultado. No noticiário, nada disso tem relação com os fatos, mas com declarações de quem também lucra com o "raid" ou da felicidade ao ver um desafeto ser momentaneamente prejudicado. O apresentador Sikêra Jr., que é um comunicador muito experiente, já entrou na onda e apareceu chorando nas redes sociais, gerando um novo ciclo de noticiário.
Começo explicando o que é uma "raid". Trata-se de qualquer ação feita em enxame na internet, mobilizando a própria audiência para se direcionar a um outro perfil. Na rede Twitch, por exemplo, existe uma ferramenta chamada Raid Twitch, em que você pode direcionar sua audiência para a transmissão ao vivo de outro canal quando acabar a sua, para ajudar a ganhar seguidores.
Mas você também pode se organizar para que sua audiência ataque alguém em massa e inclusive utilizar impulsionamento e perfis automatizados - os tais robôs - para que esses ataques sejam maximizados. Se o "raid" for parte de uma ação maior e organizada, é possível, por exemplo, tirar o emprego de alguém e colocar outra pessoa no lugar. Se o "raid" for um fim em si mesmo, prejudica o alvo momentaneamente e posteriormente o faz crescer, mas o organizador é quem mais ganha com isso ao engajar e ganhar poder.
Há, em primeiro lugar, uma questão moral objetiva: "raids" são certas ou erradas? Considero corretas raids para aumentar audiência de outro canal e erradas as feitas para impor uma "pena alternativa e extra" a uma pessoa. Ao legitimar uma "raid" exigindo retirada de patrocínio de Sikêra Jr., o jornalismo legitima qualquer outra "raid" exigindo qualquer outra punição a jornalistas em nome de um bem maior que faça sentido ao grupo que ataca.
Suponha que um grupo específico, ao ser denunciado por um jornalista, resolva organizar-se em enxame, promover um raid exigindo que ele seja demitido ou desmonetizado. Já aconteceu comigo e já aconteceu com outros colegas. Faço questão de publicamente sempre dizer que discordo deste método. Cada grupo descontente entenderá sempre que sua própria justificativa para uma punição extra é válida mesmo que o jornalista não tenha errado.
Agora passo à motivação. Esse ataque específico, exigindo uma punição que não é prevista nas leis nem em regras sociais como adicional à punição legal, seria moralmente justificável em nome de um bem maior. A justificativa é a declaração homofóbica do apresentador, que ficou impune e não foi alvo de ação das autoridades. O que restaria à sociedade é apelar aos patrocinadores. É um caldo de desinformação que apela ao emocional das pessoas.
É curiosa a motivação da escolha de Sikêra Jr. e não de outro ou, por que não, de todos os comunicadores que ganham dinheiro com declarações homofóbicas. Neste mês, curiosamente, ele foi inocentado num processo do gênero. Outro comunicador, uma emissora e uma revista foram condenados em instância final por esculachar a cartunista Laerte. Qual a diferença entre os casos? Espero que não seja o posicionamento político.
Há ainda outra desinformação, a de que as autoridades não fazem nada, então é preciso que as pessoas fiquem unidas e usem a internet para pressionar. Você já deve ter ouvido isso várias vezes e é um apelo emocional comum e eficiente de milícias digitais. Não raro é a mais pura mentira. Nesse caso, vários parlamentares, o Ministério Público e entidades da sociedade civil tomaram providências imediatamente. Mas os organizadores do "raid" não informam isso.
Essa omissão traz ainda uma outra distorção, a de implantar no imaginário de quem participa do ataque a ideia de que a ação é apenas contra o apresentador Sikêra Jr. Só que não é. Quando mira nos patrocínios do programa, a ação mira em todo mundo que trabalha na mesma emissora de televisão que ele. Isso inclui, por exemplo, todo pessoal técnico do programa dele e todo mundo dos outros programas, inclusive quem se posiciona publicamente contra ele.
Uma emissora de televisão não patrocina sua operação pagando cada produção com o patrocínio que recebe. Fosse assim, não teríamos jornalismo que denuncia corrupção porque ninguém nunca pagaria por isso num país corrupto como o nosso. Paga-se pelo bolo todo e tudo é dividido para custear uma operação que se equilibra entre produtos altamente rentáveis e produtos que trazem prestígio e credibilidade. Não existe "patrocínio do Sikêra Jr.", todos são de toda TV.
Digamos que seja necessário fazer cortes diante de perda de patrocínio. O mais comum é que se comece pelos bastidores, demitindo quem não mostra a cara no vídeo, para não passar ao público a sensação de perda, manter as coisas andando. Caso a emissora não tenha como resistir à pressão e demita o apresentador, a ação terá sucesso e "danos colaterais". Outras pessoas serão demitidas porque são a cara daquele programa, serão substituídas. Isso não é dito abertamente, o que é desonesto.
Muito provavelmente você já participou de abaixo-assinados online e sabe que isso nos dá uma sensação boa, uma satisfação, principalmente quando é por uma causa justa. Trata-se de um modelo de negócios parecido e eu fui a primeira Diretora de Comunicação de um deles na América Latina, a Change.org.
Ocorre que o abaixo-assinado é uma das atividades da plataforma, não a única, como é o caso dos "raids". Além disso, há abaixo-assinados favoráveis e contrários e o foco do poder é naquele que inaugura a causa, um usuário. Nos "raids", quem tem o poder que a Change.org tem como plataforma assume o papel de usuário de uma rede social. Exemplifico para ficar mais claro com uma história deliciosa.
Num dia desses comuns de 2012, meu colega da Change.org Lucas Pretti recebeu um telefonema dizendo que as baianas de acarajé de Salvador estavam revoltadíssimas com a Fifa. Na Copa do Mundo do Brasil, elas seriam proibidas de continuar vendendo acarajé na Fonte Nova, seriam substituídas por empresas internacionais servindo acarajé de micro-ondas. Depois de ouvir "acarajé de micro-ondas", creio que nem preciso mais dizer de que lado fiquei imediatamente.
Com pouco mais de 15 mil assinaturas, a Change.org conseguiu que a poderosa Fifa se rendesse à Rita Santos, representante das baianas de acarajé de Salvador. Não foi um raid. O abaixo-assinado foi apenas um braço de uma ação complexa, que envolveu negociações com governos, diversos outros atores e a imprensa que despertou um senso legítimo de indignação. Claro que a passeata impedindo a passagem da comitiva presidencial também ajudou muito.
Nessa passeata, cuja foto ilustra este artigo, Rita Santos mobilizou mães de família que há anos ganham a vida vendendo acarajé inclusive na Fonte Nova. Por que justamente quando teriam oportunidade de tirar um trocado a mais elas seriam escanteadas? Além disso, com a reforma, não haveria mais espaço para que elas pudessem vender lá aos finais de semana depois da Copa. Havia uma indignação legítima diante do mais forte e internacional esmagando o pequeno da nossa terra.
Seria possível utilizar a mesma moralidade torpe de quem promove ataques de desmonetização e esculachar a presidente Dilma, o governador Jaques Wagner e o prefeito de Salvador, ACM Neto. Tenho certeza de que não iria faltar gente para xingar o dia inteiro cada um dos três até que mudassem de ideia. Poderia até funcionar, mas legitimaria o "raid" e daria poder a quem xinga em enxame, não a mães de família que querem trabalhar.
É evidente que tanto ao prefeito quanto ao governador, do mesmo partido da presidente, seria interessantíssimo ter as baianas tradicionais no estádio. Fomos compreender nos bastidores os entraves, fazer pontes entre as baianas e aqueles que tinham voz e poder para fazer acontecer o que elas queriam. Elas fizeram uma passeata e, no fim, conseguiram entrar na comitiva da presidente Dilma na Fonte Nova. Boa de lábia, Rita Santos fez amizade na hora e conseguiu uma audiência, ali tudo se encaminhou conforme alinhavado antes.
Contei essa história da baiana de acarajé que dobrou a Fifa para ilustrar a diferença entre um abaixo-assinado numa plataforma online e um ataque em enxame. No abaixo-assinado, o protagonismo e o poder estão com quem sofre na pele o problema da vida real e a internet é mais uma ferramenta para poder negociar com autoridades e instituições. No "raid", o protagonismo é de quem promove a ação e a internet é o meio de pressionar de forma irresistível.
Passo agora ao último ponto que é a desinformação sobre o resultado da ação, algo que vejo com uma tristeza profunda ser estampado em diversos veículos de comunicação que admiro. O ataque em enxame feito contra o apresentador Sikêra Jr. não é semelhante aos ataques em enxame encomendados por políticos de diversas vertentes ideológicas contra jornalistas. No entanto, a cobertura do evento dá a entender que o resultado seria o mesmo. Não é.
Ataques encomendados por políticos assemelham-se às operações como a que descrevi sobre as baianas de acarajé, em que a ação via internet é um dos braços. Já há outras ações de bastidores e de influência coordenadas, com um objetivo específico. Geralmente, a ideia é silenciar um jornalista que incomoda. Às vezes, o jornalista não incomoda tanto mas o público dele é interessante e um grupo político deseja colocar um aliado naquela posição. Funciona e não só no Brasil.
As ações de "desmonetização" usando somente a internet são muito diferentes dos ataques de milícias digitais contra jornalistas, principalmente porque não dão certo. O relatório da PF para o Inquérito do STF monitora a movimentação financeira de diversos influenciadores, alguns deles alvos de campanhas de desmonetização promovidas pelo mesmo perfil. Todos cresceram e ficaram mais ricos no médio prazo. O mesmo ocorre com quem promove os "raids".
Um ataque em enxame tem efeito no curtíssimo prazo. É possível que se tire um patrocínio, um emprego, um post ou um perfil de alguém. Mas esta ação só tem um desfecho negativo no médio prazo se for parte de uma ação maior na vida real. Caso não seja, como é o caso da "desmonetização" de Sikêra Jr. e de vários outros conservadores e bolsonaristas, acabará tendo o efeito inverso no médio e longo prazos.
O primeiro motivo é técnico. Redes sociais consideram sucesso o que dá engajamento e pouco importa se é positivo ou negativo. Influenciadores atacados em enxame chegarão a um público que ainda não os conhecia. No curtíssimo prazo, pode ser só para atacar, mas depois a raiva passa e as pessoas acabam vendo mais posicionamentos do influenciador e identificam-se. Todo mundo erra.
A outra razão é a sensação de injustiça e desproporção que começa a surgir quando o ataque em enxame vai crescendo demais. Mesmo quem participou começa a lembrar de situações mais graves que não são punidas com o mesmo rigor nem na Justiça. Também lembram de pessoas que fizeram a mesma coisa e contra as quais nada se fez, quase sempre da mesma ideologia de quem ataca. Coincidência, claro.
Linchamento virtual é igual CPI e relacionamento extraconjugal: todo mundo sabe como começa mas ninguém sabe como termina. Uma hora sai completamente do controle e toma um rumo próprio. No caso dos ataques em enxame, é normal que se tornem uma competição de virulência e radicalismo entre os participantes, uma catarse coletiva. Daí surge um mártir. Sikêra Jr. está conduzindo de forma brilhante esta narrativa até o momento.
Vivemos um momento em que há discussões profundas e importantíssimas sobre liberdade de expressão, liberdade de imprensa e liberdade acadêmica. Vivemos uma nova realidade com o poder das Big Techs e o avanço extraordinário em tecnologias de controle de potências autoritárias como China e Rússia. Neste novo cenário, o bom jornalismo é cada vez mais necessário para o cidadão.
É um movimento suicida embarcar na comemoração da "desmonetização" de Sikêra Jr. por todos os motivos que expus no artigo e por mais um especificamente: trata-se de desinformação vinda do jornalismo profissional. Todos erramos, repito. Ocorre que este tipo de erro tem se repetido demais e faz com que o público tenha cada vez mais dificuldades em diferenciar jornalismo profissional de desinformação.
É urgente que os profissionais de comunicação estejam preparados para os desafios da era digital ou ficam reféns da manipulação emocional das redes sociais. Um dos sentimentos mais explorados é o "schadenfreude", o deleite que sentimos quando alguém de quem não gostamos se dá mal.
Sinceramente, compreendo os colegas que sentiram prazer com a sensação de que Sikêra Jr. está se dando mal. É "schadenfreude" e um direito, mas não é notícia. Trata-se de um dado, que precisa ser contextualizado com a apuração de outros dados e circunstâncias para que se tenha uma notícia. O compromisso do jornalismo não é com nossos direitos psicológicos nem com a felicidade da categoria, é com o público. E o público merece um cenário completo.
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