Carlos Samuel Freitas Costa Filho ficou famoso instantaneamente pela internet com o vídeo em que é flagrado agredindo uma mulher com diversos socos no rosto. A publicação começou a circular na quarta-feira passada, quando a polícia de Ilhéus abriu investigação mesmo sem a queixa da vítima.
No dia seguinte, quinta-feira, o agressor foi à delegacia prestar depoimento acompanhado do advogado. Confessou, a polícia verificou que era a 11a vez que a mesma delegacia registrava o mesmo crime e ele saiu pela porta da frente. No dia seguinte, o Ministério Público pediu a prisão preventiva e o criminoso continua foragido.
Como é possível alguém ter 11 queixas na polícia de violência contra a mulher, ir dar depoimento, confessar de novo e sair pela porta da frente? "É filho de político", dizem alguns. Outros argumentam que as leis são falhas ou a polícia é ineficiente. Resolvi vasculhar os arquivos do agressor de Ilhéus e trago surpresas: os problemas estão onde não olhamos, o desleixo nos processos judiciais.
Pense em qualquer crime, a cena se repete. Identifica-se o criminoso, ficamos sabendo que ele tinha umas tantas passagens na polícia, já foi preso, acabou solto, pedem a prisão quando ele já fugiu de novo. No caso específico, o Ministério Público divulgou para a imprensa que já havia pedido a prisão do agressor, fundamentada "na necessidade de resguardar a ordem pública, considerando-se a gravidade da conduta concreta (exacerbada violência empregada) e a condição reincidente do autor do fato".
Faltam duas explicações: por que essa prisão ainda não havia sido pedida se é alguém reincidente? Por que a prisão foi pedida depois que o agressor já tinha ido à delegacia e saído pela porta da frente. Houvesse uma ordem de prisão, ele teria ficado preso. Há quem goste de conversa para justificar esses casos. Eu até gosto de prosa, mas prefiro documentos.
As leis brasileiras não são o sarapatel de coruja que pintam os simplistas e marketeiros da desgraça. Fazer leis criminais e bradar por leis criminais mais rígidas é um tremendo instrumento para ganhar fama, desde que a pessoa seja desonesta o suficiente para esconder que seria inútil com o nível atual de desleixo.
Segundo a nota oficial do Ministério Público, "Carlos Samuel já foi denunciado em 2015 pelo MP por crimes de violência doméstica, ameaça e cárcere privado cometidos contra outra mulher. Ele foi condenado pela Justiça em primeira instância. Após recurso impetrado pela defesa de Carlos Samuel, a condenação quanto ao crime de cárcere privado foi mantida em agosto último pelo Tribunal de Justiça da Bahia, que reconheceu a prescrição referente aos crimes de violência doméstica e ameaça".
O que você entende dessa explicação, que provavelmente será a dominante no discurso da imprensa? Que a Justiça é demorada, deixou prescrever, o Ministério Público tentou o que pôde, conseguiu uma condenação em primeira instância e o problema é nos tribunais acima, que acabam protegendo políticos e quem tem dinheiro para bons advogados. Ocorre que isso não coincide com o que está no processo. Avião não cai sozinho, lembre sempre.
A Polícia Civil da Bahia fez um levantamento e mostrou que antes de ficar famoso no vídeo, o réu colecionava 10 passagens pela polícia por agredir mulheres, entre ex-companheiras, familiares e até a própria mãe. Quantos desses inquéritos policiais viraram processos judiciais? Apenas um.
O único processo do agressor de Ilhéus
Em 25 de abril de 2015, a então namorada de Carlos Samuel foi até a casa da mãe dele para terminar o relacionamento e ele não aceitou. Atacou a moça, colocou uma navalha no pescoço dela para que não saísse, tentou atear fogo na casa e ela só conseguiu ir embora porque fingiu que retomaria o relacionamento. Foi até a delegacia, prestou queixa, pediu medida protetiva. Depois disso, ele continuou ameaçando, inclusive por escrito, de morte e de difamar a moça no trabalho dela.
Somente 10 meses depois, em fevereiro de 2016, essa queixa se transformou num processo apresentado pelo Ministério Público à Justiça. Pedia condenação por lesão corporal em situação de violência doméstica, ameaça e cárcere privado. Parece bem grave, né? Juntando tudo, não dá um ano preso e prescreve em 4 anos. Ou seja, se o processo durasse mais que isso, o réu poderia não ser punido mesmo que fosse condenado.
Na imprensa, geralmente falamos das penas máximas para um crime. Na vida real, as condenações normalmente são pela pena mínima. A distorção faz com que a sociedade fique focada em aumento de penas e até debates como pena de morte, sem saber que não passa de tempo perdido e marketing para oportunista. Os projetos sérios são aqueles que mexem com a pena mínima, não com a máxima.
No caso concreto, o Carlos Samuel foi acusado de lesão corporal, pena máxima 3 anos e prescrição em 8 anos. Mas, se ele fosse condenado à pena mínima de 3 meses, a prescrição do crime cairia automaticamente para 3 anos. Todas as autoridades sabem que é quase certa a impunidade nos casos de violência contra a mulher se o julgamento em primeira instância não for feito em até 3 anos. Fizeram? Não.
Quanto à ameaça, é crime que só se registra por registrar mesmo. A pena vai de 1 a 6 meses, prescreve em 3 anos. Nesse caso específico, havia um fato extra, o cárcere privado. Pelo que a gente ouve na imprensa, parece uma coisa bem grave, principalmente nos casos de violência contra a mulher, podendo chegar a 5 anos de cadeia. Só que a pena mínima é 1 ano e, quando o réu é sentenciado a ela, o crime prescreve em 4 anos. Levando em conta a rotina para todos os crimes, a condenação à pena mínima, só seria possível punir Carlos Samuel caso a sentença condenatória fosse publicada no Diário Oficial até o dia 21 de março de 2020.
Em 7 de novembro de 2017, o juiz de primeira instância decidiu marcar o julgamento para 14 de março de 2019, um ano antes da prescrição do crime de cárcere privado e uma semana antes da prescrição dos crimes de lesão corporal e ameaça. Se ele recorresse e a decisão do Tribunal de Justiça demorasse mais de uma semana, não seria punido. O Ministério Público não contestou. O processo ficou parado durante todo o ano de 2018, enquanto o tempo corria.
Em 14 de março de 2019, o réu recebeu todas as penas mínimas: 1 mês de detenção por ameaça, 3 meses de detenção por lesão corporal e um ano de reclusão por cárcere privado. Ou seja, 1 ano preso e 4 meses no aberto ou semiaberto. A pena foi substituída por serviço comunitário e o juiz deu a Carlos Samuel o direito de apelar em liberdade.
Na realidade, suspende-se o processo por 2 anos, até que prescreva, desde que o réu cumpra algumas exigências. No caso concreto, foram:
- Um ano de prestação de serviços à comunidade;
- Proibição de sair da comarca por mais de 30 dias;
- Comparecer trimestralmente em juízo para prestar contas de suas atividades;
- Proibição de se aproximar a menos de 500 metros da vítimas e de seus familiares;
- Proibição de contato com a vítima por qualquer meio de comunicação.
Apesar do julgamento em primeira instância ter sido feito em 14 de março de 2019, uma sexta-feira, a sentença só foi juntada ao processo uma semana depois, dia 21 e enviada pelo sistema para publicação em Diário Oficial no dia 22. A publicação efetiva foi dia 25. Nesse processo, os crimes de ameaça de lesão corporal prescreveram por 4 dias.
O Ministério Público nunca contestou a pena mínima aplicada a todos os casos nem a possibilidade de converter um ano de prisão em pena de prestação de serviços à comunidade. É algo curioso, dado que nem o réu nem suas testemunhas jamais apareceram para prestar depoimento ao longo do processo. O réu também havia mudado de endereço sem comunicar a Justiça. Ele falou na delegacia, o advogado falou que as testemunhas apareceriam mesmo sem intimação e ninguém jamais apareceu. Carlos Samuel foi julgado à revelia. A peregrinação por audiências judiciais foi feita apenas pela vítima, sua família e suas testemunhas.
Ainda não era o fim
De março até outubro de 2019, a Justiça ficou atrás de Carlos Samuel ou do advogado dele para informar o resultado do julgamento e informar que a defesa tinha de apresentar sua contestação. Não acharam. Ocorre que, no processo penal, se a parte acusada não apresentar a defesa em todos os momentos nos quais a lei dá direito, tudo pode ser anulado.
Em 4 de dezembro de 2019, 8 meses depois do julgamento, o juiz de primeira instância advertiu o advogado por abandono do processo e avisou a OAB. Deu a ele 5 dias para aparecer no Tribunal e justificar a desídia sob pena de multa de 10 salários mínimos. Também deu ao réu 20 dias para nomear um novo advogado, senão passaria a ser defendido automaticamente pela Defensora Pública Dativa que atua em Ilhéus.
O advogado finalmente apareceu, na Segunda Instância, o Tribunal de Justiça da Bahia. Pediu que todo o julgamento fosse anulado por falta de provas. O Ministério Público respondeu, pedindo que a sentença fosse mantida em todos os seus termos, ou seja, pena de prestação de serviços à comunidade e não incomodar mais a vítima nem a família dela. O processo foi para as mãos dos desembargadores em 16 de janeiro de 2020.
A Primeira Turma da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia fez questão de documentar que sobravam provas no processo, referentes a todos os crimes: a ameaça, a lesão corporal e o cárcere privado. Em diversas vezes, a sentença ressalta que a vítima e suas testemunhas disseram a verdade e cumpriram suas obrigações. No entanto, os crimes de lesão corporal e ameaça prescreveram. Restou apenas o de cárcere privado, a ser pago com serviços comunitários.
Se você chegou até aqui, já percebeu que as soluções simplistas, que muitas vezes têm grande apelo emocional, não vão resolver o problema das vítimas. Não há lei que funcione enquanto houver tanto desleixo com detalhes nos processos. Combater a violência contra a mulher depende também de organização interna nos Estados. Se polícia, Ministério Público e Judiciário sabem que esses casos precisam ser julgados em 3 anos, por que eles duram mais? Nesse caso específico, vemos que não dá para explicar. É desleixo.
Vítimas revoltadas e agressores debochados
De nada adianta encorajar mulheres a fazer denúncias se os agentes da lei não têm capacidade para levar adiante dentro do mínimo de qualidade e atenção aos detalhes que se espera de alguém com um salário nababesco e estabilidade vitalícia. Quanto mais casos são denunciados, mais os agressores sabem que podem se safar e este processo é um agravante para a violência doméstica no Brasil.
O direito existe no papel mas não é entregue na prática por um acúmulo de falhas e omissões que jamais serão cobradas. Enquanto isso, a população é constantemente instada a bradar por penas mais altas e mais denúncias. Estamos no ciclo perfeito do desperdício de dinheiro público, energia e vidas humanas. Precisamos reverter.
Ainda temos números alartamentes de violência contra a mulher em todo o Brasil e em todas as classes sociais. É um crime em que a vítima é frequentemente estigmatizada na sociedade e o agressor, a menos que seja flagrado desferindo socos no rosto de uma moça, como foi o Carlos Samuel, segue vida normal. Ele próprio acumulou passagens na polícia e um julgamento sabendo que não dá em nada.
Já houve mudanças culturais importantes. A reação das pessoas diante da agressão doméstica mudou demais nas últimas décadas. O que antes se tratava como assunto familiar hoje já é visto como um abuso que precisa de interferência da sociedade e pode ser caso de polícia. Muito mais famílias hoje dão apoio a vítimas de violência que querem denunciar e se afastar dos agressores, cada vez mais diminui o número dos que entendem ser normal a pancadaria dentro de casa.
Leis exemplares foram aprovadas, delegacias especiais foram construídas, policiais foram treinados. Quando se começa a vencer a barreira cultural, a população recorre à Justiça e ela não está preparada para entregar o que foi exaustivamente prometido à sociedade em campanhas e entrevistas. Embora cada falha tenha sua justificativa técnica, que obviamente não é maldade nem incompetência, o conjunto da obra não tem.
Carlos Samuel é apenas um. Quantas prescrições temos em processos de violência doméstica? Temos mais condenações ou prescrições? Essas perguntas são incômodas e precisam ser respondidas. Só serão se nós pararmos de aplaudir espetáculos de bravata criminal e passarmos a cobrar o que realmente nos é devido.
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