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Quando a gente fala em manipulação digital, o primeiro nome que vem à cabeça é a Cambridge Analytica, empresa falecida de Steve Bannon. Anos depois do escândalo, ainda somos tão manipulados por redes sociais que só conhecemos o caso Trump e, vá lá, o Brexit. Os casos mais interessantes para nós são aqueles em que entendemos a manipulação e também vemos uma luz no fim do túnel.
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No documentário "Privacidade Hackeada" é contada uma história à qual quase ninguém deu atenção mas que diz muita coisa sobre os novos rumos da humanidade. Quando mais a família e a cultura de um povo são valorizadas, menos espaço existe para manipulação. Não é impossível, claro, nada é. Mas convido vocês a pensar em profundidade sobre as eleições em Trinidad e Tobago.
Quando falamos em manipulação, as pessoas já pensam em ideologia ou direita e esquerda. Isso quer dizer que pensam não ser manipuláveis e, exatamente por isso, são manipuladas. Talvez este caso, que não toca nos principais mecanismos de manipulação política, sirva para abrir os olhos de muita gente. O centro da manipulação foi o laço dos jovens com suas famílias a depender da cultura.
Trinidad e Tobago tem uma colonização peculiar que gerou uma população formada por dois grandes grupos, os indianos e os negros. Os grupos não são antagônicos, não têm animosidades, mas têm culturas diferentes e interesses políticos diferentes defendidos por partidos políticos próprios.
A Cambridge Analytica ainda é vista por muitos como uma empresa de comunicação, de mídia ou de TI. Não é nada disso. Foi uma empresa de análise e mudança de comportamento de massa num ramo de negócios chamado "warfare", ligado à mesma indústria de guerra que vende tanques, munições e mísseis, por exemplo. Fazia parte do SCL Group, com tradição na área. Bannon, militar de carreira, compreendeu o que eles faziam antes dos políticos tradicionais.
Em Trinidad e Tobago, a Cambridge Analytica foi contratada pelo United National Congress (UNC), partido de maioria indiana. A candidata a primeira-ministra estava bem atrás do candidato do partido da situação, o People's National Movement (PNM), de maioria negra. Levando em conta que você tivesse acesso a todos os dados de quem vota, como você usaria isso para mudar a eleição?
Seja bem-vindo ao mundo da Cidadania Digital, em que a manipulação acontece diante dos seus olhos, sem que você perceba e você ainda gosta e se acha herói. Falo com conhecimento de causa porque só descobri depois de cair em várias armadilhas. Ocorre que isso é como mágica, tem "efeito Mister M". Depois de ver como o truque é feito, a gente fica muito mais esperto automaticamente. E, ainda bem, ganha uma serenidade impressionante em tempos de pancadaria.
Ganhar a eleição em Trinidad e Tobago dependia de manipulação, o que é muito diferente de convencimento. Não adianta fazer campanha contra nem a favor, tem de mexer com as emoções do eleitorado. A aposta foi mexer com a apatia do jovem e com a necessidade da juventude de pertencer a movimentos. Mas isso não mexeria com todos os jovens? Sim. E justamente aí é que está o pulo do gato, a família.
Como ocorre com os políticos daqui, de todos os espectros, surgem do nada movimentos muito bem intencionados inspirados por um cidadão comum que reagiu. A Cambridge Analytica não precisava inventar nada, pescou um fato real e transformou artificialmente em um movimento, via manipulação das redes. E o fato era bom mesmo, coisa de novela.
O primeiro-ministro Patrick Manning, do PNM, estava fazendo campanha nas ruas, buscando votos em um bairro humilde. Gostem ou não do primeiro-ministro, é alta autoridade. Todos tratam com urbanidade. Menos o sr. Percy Villafana, de 81 anos de idade. Quando o líder da nação tentou entrar na casa dele, cruzou os braços em um gesto que depois disse ser para espantar maus espíritos. Impediu a entrada de Manning e disse textualmente "você não é bem vindo aqui".
Por que esse idoso teria reagido assim? Conflito racial? Não. Na manipulação digital, come-se pelas bordas. A questão dele não era racial, era a corrupção do governo do PNM e o fato de que o primeiro-ministro era acusado de morar no Canadá e só aparecer no país que governa a passeio. Muita gente daria graças a Deus se isso ocorresse em alguns lugares, não em Trinidad e Tobago. O idoso obviamente virou uma febre nacional. E aí entrou a Cambridge Analytica em campo.
Usando impulsionamento via redes sociais, a Cambridge Analytica criou um viral, uma febre que invadiu Trinidad e Tobago, o movimento "Do So". Como em toda manipulação bem feita, políticos e analistas políticos creem piamente que foi algo natural. Aliás, creem ser possível haver reações naturais em uma rede de relações mediadas por algoritmos secretos de Big Techs. Crer é um dom.
No caso de Trinidad e Tobago, considero que seria impossível imaginar algo do tipo. Foi em 2010, há 11 anos. A gente ainda entrava em rede social para ir atrás de amigo de colégio que ficou perdido pela vida. Mas quem realmente ganha dinheiro com manipulação já atuava com armas sofisticadas e entregava resultados. Isso ocorria muito antes da política virar essa polarização insuportável que vivemos hoje.
Todo cidadão com uma indignação justa tem empatia dos demais. Percy Villafana virou ícone da campanha "Do So" assim que ela começou a ganhar os jovens e as celebridades via redes sociais. Com a manipulação da Cambridge Analytica, a mensagem passou a ser para fazer igual a ele, colocar a política para fora de casa, cruzar os braços em protesto e não votar em eleições sujas.
Formava-se um movimento nacional da abstenção de protesto, "Do So" era cruzar os braços e, ainda assim, participar de um movimento político empolgante. Com a campanha cada vez mais turbinada no país, alguém obviamente teve a ideia de fazer uma dancinha. Ela virou febre. Grupos de jovens de todas as etnias uniam-se para postar seus próprios vídeos com a coreografia de "Do So".
Aqui pode parecer que a conta não fecha. Como é que a candidata do UNC, de maioria indiana, iria ganhar as eleições se tanto jovens negros quanto indianos estavam juntos e empolgadíssimos na campanha? Simples, os dados coletados das redes mostrou como eles agem com relação à família. No dia da eleição, os indianos ouviriam os pais, não as redes sociais. Aposta arriscada. Kamla Persad-Bissessar elegeu-se primeira-ministra.
Além de ser a primeira mulher a ocupar o cargo em Trinidad e Tobago, Kamla Persad-Bissessar foi a primeira mulher a ser Chairperson-in-Office da Commonwealth, que reúne todos os países do Reino Unido. Ela perdeu as eleições seguintes, ocorridas logo após o escândalo Cambridge Analytica mas continua poderosa. Pelo segundo mandato consecutivo, é líder da oposição no Congresso, cargo designado pelo primeiro-ministro e que ela ocupou antes de eleger-se.
E nós com isso? O ponto fundamental dos dados coletados via algoritmo pela Cambridge Analytica determinou que a força dos laços familiares e das tradições impede a manipulação na vida real. Os indianos são muito ligados às suas tradições e à família no mundo todo. Quando seus valores estivessem em jogo, optariam pela família, pelo mundo real, não pelo oba-oba de internet. E isso aconteceu mesmo que não soubessem dos bastidores.
Pode parecer muito assustador à primeira vista e confesso que também tive o mesmo sentimento, que já amadureci. A experiência de Trinidad e Tobago mostra que o vínculo com as nossas raízes é mais forte do que todo tipo mais sofisticado de manipulação. Jovens gostam de fazer parte de grupos e ser populares. Os pais indianos não impediram que seus filhos socializassem ou fizessem coreografias nas redes sociais. Mas decisões importantes não são tomadas com base nisso.
Na hora de decidir mesmo, os indianos não levaram em conta todos os vídeos que postaram, as campanhas de que participaram na internet, as camisetas que compraram, os depoimentos que deram, tudo aquilo que disseram sobre a importância de protestar não indo às urnas. Livraram-se da manipulação sem saber nada de redes e algoritmos, mas tendo apego à forma mais segura que conhecem de decidir, o que é melhor para a família e quais são os seus valores.
Quanto mais a tecnologia avança, mais precisamos entender de gente e principalmente de nós mesmos. Parece muito óbvio dizer que colocamos a família e os princípios em primeiro lugar, mas realmente temos feito isso na hora da decisão? Os jovens indianos tinham seu grupo de amigos, comprometeram-se com uma causa famosa, deram apoio, postaram dancinhas. Muito adulto acaba decidindo o que é melhor com base nisso, a discussão com gente que não conhece.
Essa experiência mostra que o caminho para evitar manipulações talvez seja bem mais fácil do que pensamos. Parece impossível dominar toda a tecnologia que avança numa velocidade impressionante. Diante da avalanche de prints, notícias e vídeos que recebemos, é humanamente impossível separar o joio do trigo. As decisões são melhores quando colocamos de verdade a família em primeiro lugar.
Entre os que nos amam e diante daquilo que realmente conhecemos, o nosso dia a dia, nossos sonhos e dificuldades, precisamos ter a liberdade de decidir o que é melhor para nós. Às vezes corremos o risco de virar reféns de turbas, não saber como dizer não, temer o cancelamento. O antídoto não está na internet, está nas nossas raízes.