Ouça este conteúdo
Muitas famílias estão enfrentando a realidade cruel do luto sem a despedida digna que imaginaram. Qualquer que seja a causa da morte durante a pandemia, a família não tem direito ao velório e enterro como estamos acostumados.
As mortes das pessoas que testaram positivo ou tinham suspeita de contaminação por coronavírus são mais traumáticas. Caixão lacrado, sem uso de roupas, impossibilidade de uma despedida, proibido até reconhecer o corpo no Instituto Médico Legal. Mas as demais mortes também vêm com o trauma de velórios curtíssimos e possibilidade da presença de apenas 10 pessoas, recomendável não serem dos grupos de risco.
Individualmente, no âmbito familiar e como sociedade não nos preparamos para uma quebra desse ritual tão importante em tempos de paz. Cada pessoa vive o luto de forma diferente, mas o velório é um ritual que historicamente nos ajuda a lidar com esse sentimento.
"O luto, em especial o velório, ele é um rito. Quando a gente fala de rito, a gente fala de simbolismos que foram criados pela humanidade ao longo de toda sua história, reservadas diferenças para cada cultura, para ajudar a processar sentimentos e para marcar momentos", explica Leonardo Lopes, fundador do Projeto Humanize.
Há alguns anos, Leonardo Lopes tornou-se uma celebridade na internet ao relatar com franqueza a dor de perder a esposa, na época com 27 anos de idade. Ganhou milhões de seguidores e, nos anos seguintes, tem atuado profissionalmente ajudando outras pessoas a lidar com o luto.
"Durante o período em que ela estava em coma, eu fui chamado várias vezes para me despedir dela porque o quadro era realmente muito complicado. Quando eu cheguei lá, para mim não fazia sentido me despedir dela naquela situação porque ela não estava me vendo, não estava me ouvindo, então para mim não fazia sentido. E eu ressalto: não existe certo e errado. Cada pessoa age de uma forma diferente", conta o fundador do Projeto Humanize sobre a doença e morte da primeira mulher.
A despedida real, que Leonardo Lopes chama de "enorme privilégio", foi durante uma melhora súbita. Ele foi chamado à UTI em um momento no qual a mulher voltou à consciência no meio do coma induzido e, embora desejasse que ela conseguisse vencer a doença, decidiu aproveitar o que poderia ser - e foi - a única oportunidade de despedida. Ela morreu pouco tempo depois e ele escolheu ir ao cemitério mas não participar nem do velório e nem do enterro, considerava que já havia se despedido.
"Eu ignorei esse rito, eu achei que ele não seria importante", conta. Duas semanas após a morte da mulher, no dia do aniversário de casamento deles, Leonardo Lopes resolveu colocar numa caixa todos os pertences que tinham significado simbólico na vida do casal, inclusive as alianças. Quando foi guardar a caixa dentro de uma maior percebeu o impacto dos rituais. "A hora que eu coloquei a caixa dentro da outra foi muito semelhante a um processo de sepultar e, nesse momento eu me emocionei demais, foi muito duro. Mas veio um estalo que foi um simbolismo que isso trouxe", conta.
Substituir o rito do velório e enterro por outro rito, feito em conjunto pelos familiares e amigos da pessoa que faleceu, pode ajudar bastante a diminuir o impacto da ausência de despedida. Não é o ideal, é o possível.
O fundador do Projeto Humanize sugere um ritual que pode ser adaptado de acordo com a realidade de cada família. A ideia é recolher fotos e objetos que sejam símbolos do relacionamento com a pessoa falecida e, numa reunião presencial ou virtual com a família e amigos, guardá-los numa caixa. As pessoas devem ter tempo para trocar experiências, falar da pessoa que morreu, contar histórias antigas e até passagens engraçadas. Ao final, os que são religiosos podem orar ou fazer o ritual que os faça se sentir melhor.
Após o encontro, a ideia é encontrar um lugar muito especial na casa para guardar a caixa com os objetos. "É muito importante a gente saber que o fato de você guardar um sentimento, guardar aquela história num lugar não é esquecer porque não tem como esquecer, você nunca vai esquecer. Você precisa saber um lugar especial para colocar ela dentro do seu coração e da sua casa, essa caixa. Porque, se a gente não souber lidar com esse sentimento, a gente tem o risco de ficar patinando em cima dessa dor, desse sentimento, e não conseguir prosseguir na vida por causa disso", reflete Leonardo Lopes.
A receita não é mágica e pode não servir para todas as pessoas. É uma ideia que serve para criar um ritual substitutivo do velório e enterro, que usamos tanto para processar o luto quanto para buscar apoio e dedicar a homenagem final que consideramos digna às pessoas que amamos. Outras pessoas podem ter outras ideias e necessidades diferentes, o importante é não pensar que podemos simplesmente fingir que sentimentos não existem e que rituais são frivolidades.