Ouça este conteúdo
Nós, jornalistas, somos predominantemente originários do topo da pirâmide social, não necessariamente econômica, onde o status se dá pela objetividade e racionalidade. Obviamente são valores incompatíveis com a realidade da alma humana. A dissonância acaba sendo tanta que o público tem topado substituir jornalismo por moços e moças bem nascidos e bem nutridos que pouco sabem, muito gritam e não têm compromisso com os fatos nem com a coerência.
Como mimetizam o formato jornalístico, fazem uma espécie de "shownalismo", entretenimento válido e até bastante divertido, principalmente quando se irritam e começam a bradar conceitos que, levados a sério, seriam um belo de um tabefe na cara de quem os profere. Esse tipo de canastrice se confunde com jornalismo não porque os canastrões valham alguma coisa, mas porque o jornalismo perdeu seu contato com a realidade.
Segundo o IBGE, 86,4% dos brasileiros professam a fé cristã. Entre os jornalistas não há estatísticas. Sei, por 23 anos de vivência, que chique mesmo é ser ateu. Perdoa-se o candomblé, o kardecismo ou o catolicismo não praticante. Crente é burro, uma caricatura de ser humano.
É desse ambiente que brotou uma reportagem da revista Istoé chamada "Fé, Deus e o Planalto: como os dogmas religiosos estão ditando o rumo do governo Bolsonaro, que tenta substituir a Constituição pela Bíblia e aparelha o Estado para servir os interesses dos Evangélicos". No meio evangélico há até quem tenha visto o título como ofensa, mas a maioria vê com incredulidade ou como piada: não é possível pessoas que vivem de informação fecharem uma capa com uma tese ilógica e impossível.
Não há como se falar em "interesses dos Evangélicos" fazendo um paralelo com o domínio católico que o Brasil já teve e que não foi questionado da mesma forma porque escorado na nossa história e tradição. Evangélicos não têm estrutura hierárquica e nem são um bloco monolítico, como poderiam ter os mesmos interesses?
A matéria faz um mapeamento dos evangélicos que ocupam cargos no governo Bolsonaro, a propósito de expor uma ameaça ao que é definido como "Estado Laico". Esta não é uma definição subjetiva, está no art. 19 da Constituição Federal e tem significado bastante diferente do suposto laicismo que a reportagem pretende defender. A confusão é comum entre jornalistas, sei bem: julgam que o Brasil tem o mesmo Estado Laico da França, da proibição de manifestações religiosas no ambiente público ou estatal. Não tem.
"Se a nossa atual Carta Política não adotou nenhuma religião de modo oficial, como nos tempos do Império, tampouco aderiu ao ateísmo como sua (des)crença oficial. Logo, Estado laico não é Estado ateu ou Estado antirreligioso; pelo contrário, o modelo brasileiro permite e promove a coexistência de todas as religiões, bem como o exercício dos direitos civis e políticos de cidadãos de todos os credos", diz o advogado Rafael Dunand, Membro-fundador do Núcleo de Estudos em Política, Cidadania e Cosmovisão Cristã - NEPC3- e do IBDR - Instituto Brasileiro de Direito e Religião.
"No país idealizado pela referida matéria, quase 86,8% da população brasileira que professa a fé cristã entre católicos e evangélicos (IBGE, 2010), deveria estar fora da condução dos rumos do país, ou seja, algo totalmente desprovido de racionalidade, para não dizer ridículo!", arremata Rafael Dunand.
A questão não é mapear quem move suas ações pela religiosidade, o que é direito inalienável garantido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas focar o que erroneamente se considera uma religião organizada e monolítica, o "crente". A elite intelectual brasileira não tem o mínimo conhecimento sobre o universo evangélico.
Eu costumo fazer um teste para ver se a pessoa pensa que sabe mas apenas vomita preconceitos: verifico se faz relação entre radicalismo, desonestidade e neopentecostais. Bingo! Temos aí mais uma pessoa que jamais se dedicou ao tema, talvez nem saiba quem são seus amigos evangélicos, mas viu as estripulias de meia dúzia de televangelistas e passou a fantasiar que são os poderosos chefões dos crentes.
“Há, neste momento, cinco evangélicos ocupando cargos de ministro e acentuando o tom religioso no governo. Além da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que atua na linha de frente contra a secularização do Estado e prega a abstinência sexual, há o titular da Cidadania, Onyx Lorenzoni, o do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, o da Advocacia Geral da União (AGU), André Luiz Mendonça, e o ministro-chefe da Secretaria do Governo, general Luiz Eduardo Ramos. No segundo escalão do Ministério de Damares, há vários religiosos em posições de comando, como os evangélicos calvinistas Sérgio Queiróz, Guilherme de Carvalho e Maurício Cunha.”, reporta a Revista Istoé. Incrível que não existe contagem das demais religiões e que sejam colocados no mesmo balaio pessoas de igrejas e ramos evangélicos absolutamente diferentes.
"O texto que pretensamente busca defender o Estado laico, na verdade incorre em diversas impropriedades sobre a questão, chegando, até mesmo, a cometer uma espécie de intolerância religiosa explícita contra os evangélicos que fazem parte do governo", aponta Rafael Dunnand.
É curioso que apenas um católico, classificado como "conservador" sem que o termo fosse explicado, consta do levantamento: Ernesto Araújo. Tenho a impressão de que o critério é elencar quem tenha citado Deus em algum pronunciamento oficial ou reflexão sobre política, o que é direito de todos dentro do Estado Laico colaborativo, a versão que vivemos no Brasil, elaborada dentro dos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Aquela imaginada pela elite jornalística, a da proibição de falas ou símbolos religiosos no espaço público, é a laicidade francesa, originada no século XVIII, muito antes.
É interessante que a chamada da reportagem diz que existe uma tentativa de se substituir a Constituição pela Bíblia. Trata-se de uma tese muito interessante porque impossível. Jesus diz em 3 Evangelhos: "a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". Substituir as leis de César pela palavra de Deus não é crente nem Bíblico, além de ser inconstitucional.
O apóstolo Paulo lista na carta aos Gálatas as virtudes cristãs, essas sim da Bíblia e não da Constituição Federal: "amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio". Tendo isso em conta, será mesmo que o atual governo está se guiando pela Bíblia?
No mesmo capítulo da Bíblia estão listadas as coisas que não são do Reino de Deus: "imoralidade sexual, impureza e libertinagem;
idolatria e feitiçaria; ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja; embriaguez, orgias e coisas semelhantes". A Constituição não proíbe nada disso, a Bíblia sim. São coisas que têm acontecido todos os dias no âmbito do governo.
Difícil entender qual o conhecimento bíblico de quem é capaz de afirmar que há uma tentativa de substituir a Constituição pela Bíblia. Talvez tenha gente demais por aí lendo "O Evangelho Segundo Quentin Tarantino".