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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Radicalização nas Redes

Cristão, surfista e bem-sucedido, ele matou os dois filhos “iluminado” por QAnon

Ele matou os dois filhos bebês e alegou que se tornariam monstros devido ao DNA de serpente da mãe. (Foto: Divulgação / Instagram)

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Pensei o dia todo em como começar este texto e ainda não sei bem. Mas faço questão de começar dizendo que ainda estamos longe de ter todas as respostas e que só as teremos ao olhar o caso sem julgar que já sabemos o que ocorreu. Li inúmeros textos que têm respostas apressadas, instigam ódio e medo, politizam o caso. Quero que você saiba que fui à raiz, os documentos do FBI e postagens do assassino confesso.

Quando se fala em QAnon, a maioria das pessoas não sabe bem do que se trata mas já liga diretamente à invasão do Capitólio, radicalização política e apoiadores de Donald Trump. Estamos diante de um caso completamente diferente. Aparentemente, a radicalização ocorreu pela via da espiritualidade. Pode ocorrer com qualquer assunto, desde que se borre a linha entre os fatos e as sensações.

Tendemos a pré-julgar estes casos até como proteção. Ninguém gosta de imaginar que é vulnerável a uma manipulação emocional neste nível. O fato é que não sabemos tanto assim para dizer quem está sujeito. A era das redes sociais traz novas formas de relacionamento e interação, no mundo digital e fora dele. Ainda estamos tateando para descobrir os sinais daquilo que foge do normal antes que seja evidentemente absurdo ou perverso. Infelizmente, neste caso, não foi possível.

O que todas as teorias de radicalização têm em comum é a falta de compromisso com os fatos. Fatos reais e sentimentos são todos catalogados no arquivo da opinião, cada um tem a sua, que julga ser a verdade. As teorias QAnon partem de fatos concretos para tirar conclusões como: a existência de um governo global oculto, o fim de uma era de dominação do mal, a crença de que todas as instituições do mundo mentem e a verdade está oculta. São ideias poderosas. A depender da vulnerabilidade emocional, serão consideradas ridículas ou verdades.

Ninguém sabe ainda por que Matthew Taylor Coleman matou seus dois filhos pequenos, sabemos só o que ele disse ao FBI. Este documento, protocolado pela agente do FBI Jennifer Bannon na Corte do Distrito Central da Califórnia, relata os fatos e as primeiras declarações do assassino confesso. As investigações ainda continuam. Ele já foi ouvido pelo Judiciário e deve ficar preso até pelo menos sua primeira audiência, no próximo dia 31 de agosto, quando provavelmente novos fatos surgirão. Talvez saibamos se as alegações de QAnon são verídicas ou não.

Pelas redes sociais, Matthew parecia ter a família perfeita e uma vida que a maioria das pessoas inveja. Aos 40 anos, o filho de um pequeno empresário e de uma artista era dono de uma das escolas de surf mais badaladas de Santa Barbara, Califórnia, a Love Water Surf. Era apaixonado pelo mar desde pequeno, Foi atleta de surf representando sua universidade, a Point Loma, que foi campeã nacional nos Estados Unidos.

Morou na Espanha ensinando espanhol e desenvolveu um projeto de mentoria da juventude por meio do surf, chegando a mais de 20 países. Fez mestrado em Educação na UCSB e tornou-se técnico de surf em uma escola de ensino médio e diretor de uma ONG local dedicada a usar o surf como mentoria de jovens. Depois, fundou sua própria escola do esporte. Todas suas postagens são sobre surf, mar, natureza, trilhas e espiritualidade. Não há uma única sobre política.

O FBI recebeu a informação de que a mulher de Matthew havia ligado para a polícia relatando o desaparecimento do marido e das crianças, uma de 2 anos e outra de 10 meses. No último dia 7 de agosto, a família se preparava para ir acampar quando ele pegou os filhos, colocou na van Mercedes da família e sumiu. Não atendia o telefone nem respondia mensagens. A mulher disse à políca não temer que o marido fizesse nada de mal com as crianças, pediu apenas que tentassem entrar em contato com ele. Acreditava que ele voltaria para casa e pediu apenas para tentarem ligar para ele. Não quis mais assistência no momento.

Como Matthew não atendeu as ligações, a polícia foi até a casa da família. A mulher disse que não havia ocorrido nenhum desentendimento entre o casal. Nem ela nem outros familiares entendiam por que ele não atendia nem mandava mensagens. Os policiais tiveram a ideia de ativar o localizador do celular pelo computador da família. A última localização era no shopping Pabellon Rosarito, em Baja California, no México, naquele mesmo dia às 2h24 da tarde.

O FBI articulou-se com a polícia de fronteira em San Diego para interceptar o carro de Matthew quando ele tentasse entrar nos Estados Unidos. Na última segunda-feira, dia 9, às 13h, ele foi parado para revista. As crianças não estavam no carro. O FBI entrou em contato com a polícia mexicana. Às 8 da manhã do mesmo dia, os corpos das duas crianças haviam sido encontrados numa vala perto da praia, perfurados repetidas vezes por arpões de pesca.

"M. COLEMAN explicou que ele foi iluminado por teorias conspiratórias QAnon e Illuminati e estava recebendo visões e sinais revelando que sua mulher, A.C., tinha 'DNA de serpente' e o havia passado às crianças. M. COLEMAN disse que estava salvando o mundo de monstros.", diz o relatório do FBI. Uma teoria parecida era defendida pelo técnico de informática Anthony Quinn Warner, que cometeu uma explosão suicida em Nashwille, nos Estados Unidos e feriu 8 pessoas.

O que é, afinal o QAnon?

Diferente do que pode parecer por algumas publicações, QAnon não é um movimento organizado nem um conjunto limitado de teorias conspiratórias. Trata-se de um fenômeno da internet típico da criação de grupos isolados que borram a linha entre fatos e sentimentos. É muito parecido com o que nossos pais costumavam chamar de "lavagem cerebral", as seitas dos anos 1970 e 1980. A diferença é que a pessoa não precisa desmontar a vida e sair de casa para aderir.

Há diversos grupos de QAnon nas redes sociais. Essa história começou em fóruns fechados onde um usuário anônimo que se apelidava Q - por isso QAnon - dizia ter sido oficial de inteligência e ter informações secretas do governo. Muitas dessas teorias foram encaixadas em discursos políticos, sempre falando de uma dominação global oculta. Desde maio de 2019, o FBI considera que a aderência a grupos QAnon representa risco de terrorismo doméstico.

Há inúmeros casos de terrorismo doméstico perpetrados por "lobos solitários" que acreditavam em teorias QAnon. A maioria já tinha outros problemas de comportamento e socialização. Geralmente são homens sem companheiras e vínculos familiares, com pouco sucesso na profissão e dependentes de familiares. Em abril deste ano chamou a atenção do FBI o caso de uma mãe que matou por acreditar em teorias QAnon, mas ela também tinha problemas comportamentais.

Quais são exatamente as teorias QAnon? Eu poderia passar dias listando. Como não se trata de grupo organizado ou com líder, surgiram vários adeptos em grupos independentes. Um deles acredita, por exemplo, que amanhã, dia 13 de agosto, Donald Trump retomará a presidência dos Estados Unidos e revelará que a eleição de Biden foi uma fraude. Tempos atrás, fiz um vídeo explicando as teorias centrais, todas têm um ponto em comum: um domínio oculto e global dos governos.

A teoria relatada por Matthew Taylor Coleman ao FBI como justificativa para assassinar seus dois filhos bebês com um arpão não era das mais famosas. A história do "DNA de serpente" tem sido relacionada com a teoria dos reptilianos, já relatada em atentados nos Estados Unidos. Algumas pessoas teriam DNA de repitilianos e estariam prontas para acabar o mundo como conhecemos, mas são exatamente iguais a humanos.

O procurador-geral da Baja California, Hiram Sanchez, deu uma entrevista coletiva à imprensa relatando os detalhes macabros da execução. O menininho de 2 anos foi assassinado com 12 golpes de arpão de pesca e a menininha de 10 meses sofreu 17 golpes. A teoria conspiratória levou o pai a tudo isso ou foi só uma desculpa para algo que ele já iria fazer? Ainda não sabemos e talvez jamais saibamos.

Os policiais que pararam Matthew na fronteira confiscaram seu carro e mostraram e ele as fotos dos corpos dos filhos. Ele reconheceu as duas e assinou nas fotos a confirmação de reconhecimento. O policial perguntou se ele considerava errado o que fez. Segundo o relatório do FBI, ele disse que "sabia ser errado mas era a única atitude que salvaria o mundo". Quando chegou à cadeia, o agente penitenciário o questionou sobre um curativo na mão. Ele disse que ocorreu "quando estava ferindo" seus filhos.

Havia como prever a tragédia?

Entre os invasores do Capitólio havia membros da Guarda Nacional dos Estados Unidos, oficiais das Forças Armadas e até um campeão olímpico de natação que ganhou medalha no time de Michael Phelps. Nas redes sociais deles, no entanto, há múltiplas postagens muito raivosas com teorias conspiratórias relacionadas à política. Não é o caso do surfista cristão que matou os próprios filhos.

As redes sociais do assassino confesso parecem um convite à paz, à busca espiritual, à proteção da natureza e à importância da família. São fotos da escola de surf, dos bebês, da mulher lindíssima e feliz, de passeios em trilhas pela natureza, todos lugares belíssimos e inspiradores com reflexões inspiradoras. Somente olhando em retrospectiva vemos traços das teorias extremistas.

As postagens de Matthew Taylor Coleman são quase todas sobre a escola de surf, o mar e a natureza, fotos belíssimas da família fazendo trilhas em lugares idílicos na mais perfeita harmonia. Há também algumas postagens de inspiração cristã que, desde 2017, começam a ser mescladas com inspirações que parecem vir do Dominionismo ou do Tradicionalismo, que não é manter a tradição, é tal como relatado no livro "Guerra pela Eternidade", do etnógrafo Benjamin Teitelbaum, que foi revisado pessoalmente por Steve Bannon.

Postagem traduzida automaticamente do inglês para o português pelo Google Chrome

Neste ponto temos uma postagem cristã clássica e profunda de reflexão sobre o Evangelho e o verdadeiro significado da Páscoa. Há outras, no entanto, que lendo neste momento remontam a teorias que não são bíblicas nem cristãs. Duas teorias muito famosas na internet parecem presentes em postagens aparentemente espirituais, o Tradicionalismo e o Dominionismo. Só os fatos dirão se essas realmente foram as inspirações ou se estamos diante de um crime comum e uma acrobacia para justificar.

O Tradicionalismo, seguido por Steve Bannon e relatado com revisão dele no livro "Guerra pela Eternidade", acredita que o mundo alterna periodicamente quatro eras. O domínio da humanidade na melhor era é feito por sacerdotes ou religiosos, depois vêm os guerreiros, então os mercadores e depois os escravos. Então o ciclo recomeça.

Segundo o Tradicionalismo, estaríamos no final da era dominada pelos escravos, um período chamado "Kali Yuga", em que há a destruição total daquilo que é mundano para que comece a era dominada pelos sacerdotes, divina e espiritual. Eu sei que parece delírio e realmente minha tendência é pensar assim, mas há pessoas com voz na opinião pública - como Steve Bannon - que realmente acreditam nisso. Para eles, vivemos um tempo em que é preciso implodir tudo, de forma desordenada, para recomeçar. É perturbador pensar nessa teoria colocada nesta postagem:

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O Dominionismo ou Teologia da Dominação crê que vivemos em uma era dominada por satanás que será seguida de uma era dominada por Jesus. Isso depende de fazer com que a Igreja ou a fé consigam dominar as instituições e a cultura, eliminando todo o resquício do domínio diabólico. Apesar de instituir que o ser humano pode dominar a vontade de Deus e que Deus precisa do ser humano para dominar o mal, é uma teoria que ficou famosa em ambientes cristãos.

Em uma postagem no Facebook, Matthew mistura passagens bíblicas com a ideia de que seres humanos interferem nos desíginios de Deus. Fala novamente na teoria de fim de uma era e início de outra, período em que não percebemos as ações extremas que serão necessárias para nos livrar das trevas. Impossível saber se é um processo que o levou à barbárie ou uma ideia que tenta uma justificativa moral.

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É muito tentador buscar explicações simples para essa tragédia. Não creio que existam. O fato é que um homem pacífico, amante da natureza, caridoso, que aparentava amar a família e bem-sucedido financeiramente cometeu uma barbárie. Desde a Antiguidade temos inúmeros exemplos semelhantes. Seria mais do mesmo ou um novo fenômeno? Não sei. Só sei que precisamos refletir sobre isso.

A vida que Matthew levava é o sinônimo da felicidade para a maioria das pessoas. Uma família linda, amorosa e feliz presenteada com beleza e abundância. Imagino se ele seria especificamente mau este tempo todo e ninguém tivesse percebido, nem a mulher ou familiares e amigos. Há inúmeros casos semelhantes que remontam a tempos ancestrais na história da humanidade.

No entanto, é fato que ele recorre a uma justificativa já utilizada por outras pessoas que cometeram barbaridades semelhantes. É uma história que parece desatino para a maioria mas que, na dinâmica das redes, tornou-se aceitável para um pequeno grupo. Esse grupo é capaz de tudo para defender suas teorias, incluindo atos impensáveis para a maioria das pessoas.

Seria muito confortável empurrar a responsabilidade para as redes sociais, os grupos conspiratórios e os extremistas. O problema é que, na era da hipercomunicação, todos ocupamos o mesmo espaço. A tecnologia pode potencializar, mas não é capaz de dar às pessoas o que não está na alma delas. Talvez estejamos no momento mais importante para conhecer sobre a alma humana e como manter valores, princípios e propósitos.

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