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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Cristãos brasileiros não querem mais invisibilidade nem levar desaforo para casa

"Jesus lavando os pés de Pedro" (1852), de Ford Madox Brown. (Foto: Domínio público)

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"Não me venha com isso de psicanálise que, para mim, é igreja de rico." A frase de Manoel Fernandes, dono da Bites, uma das mais respeitadas consultorias de Big Data do Brasil, arrancou risadas da platéia forrada de intelectuais em uma palestra na PUC. As pessoas talvez tenham gargalhado pelo inusitado, pelo saboroso sotaque nordestino do palestrante e pela reação debochada de Luiz Felipe Pondé à provocação. O fato é que na maioria dos ambientes intelectualizados do Brasil, você pode acreditar em psicanálise e até em astrologia, tarô, runas, ler borra de café na xícara mas, se for evangélico, é imbecil. (Diga-se de passagem, não no Labô da PUC, um dos poucos locais em que evangélicos têm sua intelectualidade respeitada na academia brasileira.)

O fenômeno de julgar inteligente ou mesmo aceitável a ideia de resumir a natureza humana à racionalidade é recente. A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, estabelece em seu artigo 18 que a religião é parte da dignidade humana. Proibir alguém de ter religião ou de manifestar sua religiosidade em privado ou em público é violação de Direitos Humanos. Essa proibição não é só colocar uma arma na cabeça, mas constranger, difamar, ridicularizar ou gerar consequências nefastas para quem o faz. Já experimentou entrar num Centro Acadêmico da USP ou mesmo num encontro de ativistas de Direitos Humanos e dizer que é crente? Boa sorte.

"Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos", diz o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Vemos ateus reclamando, muitas vezes até com razão, da discriminação por não acreditarem em Deus - o que, afinal, é direito deles. Esquecem, no entanto, que batem como leões e apanham como gatinhos. A massa cristã brasileira sabe que precisa calar sobre sua religiosidade se quiser ter chances de ser levada a sério na universidade e na profissão. Entre os intelectuais existe a predominância do pensamento de que evangélicos são todos estúpidos. Não que esse pessoal conheça evangélicos, estude o assunto ou já tenha pisado numa igreja. Provavelmente eles viram alguns televangelistas e misturaram no poço de arrogância e preconceito que cultivam na alma.

Com a chegada de muitos evangélicos ao poder, a fé cristã passou a ser associada a uma vertente política, como se fosse possível submeter o mais sublime da alma humana - que é a experiência individual da fé - a qualquer coisa do mundo racional. Há muitos evangélicos na direita porque esta vertente política foi a que primeiro considerou a hipótese de evangélicos também serem humanos e abriu espaço para uma pauta de costumes em comum. E desse movimento vêm duas distorções. A primeira é a ideia de que cristianismo tem a ver com a direita. A segunda, bem mais divertida, é a "conversão" recente de vários ateus com sede de poder. Amo perguntar onde congregam e ouvir de volta: "como assim, congrega?". Gente que nunca pisou numa igreja agora se diz cristã para se aproximar de poderosos.

Mas o fato é que a esmagadora maioria da população brasileira é cristã. E, com o crescimento da população evangélica e a chegada de vários evangélicos a postos de poder, os cristãos já tem força para dizer que estão cansados de ouvir deboche e serem tratados como piada.

Há cristãos em todos os segmentos da sociedade brasileira, mas há respeito apenas em nichos muito específicos. O mais respeitado por intelectuais e progressistas é o dos não-praticantes que só não se dizem ateus por causa do preconceito da família. O outro bem aceito é o que frequenta a paróquia mais chique da cidade, no caso da minha São Paulo, a Nossa Senhora do Brasil. O cristão cujo líder religioso faz declarações políticas lacradoras também é respeitado na semana em que essa declaração é feita. Fora isso, todos imbecis, principalmente se for pobre, aí é necessariamente explorado, um coitado. Astrólogo, tarólogo, coach e terapeuta holístico não exploram ninguém, só pastor.

A forma como a ministra Damares Alves é tratada pela imprensa talvez seja o exemplo mais vivo desse preconceito religioso que, aliás, é crime pendurado na Lei do Racismo junto com a homofobia. Ninguém lê o que ela propõe, não se ouve o que ela fala, se confunde pregação antiga da igreja com política, experiências transcendentais de fé são ridicularizadas e está tudo bem. Isso é muito diferente de discordar. Tome-se por exemplo a questão da sexualidade na adolescência e o início da vida sexual. Quantos noticiaram o que está nos documentos e quantos noticiaram o que se imagina que pensem os crentes a respeito do assunto?

Todo evangélico que não nasceu rico já teve de engolir seco alguém falando os maiores absurdos sobre cristianismo, Bíblia e evangélicos para não perder oportunidade profissional ou de estudar. Isso é uma violação de direitos contra a qual muitos não puderam gritar e agora estão gritando, inclusive na esquerda.

Foi extremamente importante a manifestação do rapper Emicida no último Roda Viva, comandado pela jornalista Vera Magalhães. "Rapazeada, primeiro barato, a igreja é coisa que salva vida pra caramba em volta da vida das pessoas de quebrada, não dá para você entrar de sola desse jeito e ir achando que todo irmão que está com a Bíblia embaixo do braço, que conseguiu sair da droga, sair da cadeia, largar o crime, arrumar uma esposa, arrumar o dente, parar de bater na mulher, etc, todas essas coisas, não dá para colocar todas essas pessoas como se elas fossem o Edir Macedo ou o Silas Malafaia", relatou o músico sobre o que disse num grupo de whatsapp de apoio a Marcelo Freixo no Rio de Janeiro em que os integrantes subestimavam a capacidade de raciocínio dos evangélicos.

Há, na elite econômica, cultural e intelectual brasileira a mania do tratamento condescentente, que é um jeito de maltratar de forma velada. Trata o outro como coitadinho por se considerar superior e o faz unicamente por arrogância. Por que os progressistas julgam saber tanto sobre evangélicos se não os conhecem, não estudam o tema e não se interessam por descobrir? Porque se julgam intelectualmente acima deles, capazes de decidir apenas pela racionalidade. É cada vez maior o número de jovens lideranças que se rebela contra esse tipo de injustiça.

Tem chamado a atenção nos últimos dias na internet um vídeo do estudante conhecido "Chavoso da USP", Thiago Torres. Ele tem 19 anos e estuda ciências sociais na FFLCH, nasceu na Brasilândia, periferia de São Paulo. É um ser tão raro na realidade uspiana que virou até matéria no prestigioso "Jornal do Campus", onde publiquei minha primeira reportagem na vida. Ele é dedicado, inteligente e competente e fez, para os amigos progressistas, um longo compilado de textos e pesquisas da própria esquerda sobre a importância da religião.

Ele já começa com uma estocada na turma que gosta de dizer que é do bem mas debocha de evangélico: a matemática. Mostra a conta em que 90% dos brasileiros se dizem cristãos e conclui que é uma sociedade cristã e, na linguagem da esquerda, toda uma "classe trabalhadora" cristã. Liberdade de expressão, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é a de "não ser inquietado" por suas opiniões. Assim funciona também para a religião. Se muita gente pisoteou evangélicos porque eles não tinham força de fazer cumprir seus direitos fundamentais, parece que esta era começa a terminar. Tomara.

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