Passou da hora dos partidos políticos decidirem se vão dar um freio em lacração e mitagem ou vão mesmo abrir mão da política. No meio da polarização pode parecer tudo a mesma coisa, mas não é. Política é criar pontes e aliados levando em conta a existência de ideologias e práticas diferentes da sua. Lacração é colecionar inimigos para poder xingar e dizer que é moralmente superior.
Li aqui na Gazeta do Povo que um vereador do PT de Curitiba decidiu liderar uma invasão à missa da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos para xingar padre e fiéis de racistas e fascistas. A ação teria como objetivo conseguir justiça para o bárbaro assassinato de Moise Kabagambe no Rio de Janeiro. A menos que a missa fosse uma intercessão espiritual poderosa pelo arquivamento do caso, não faz nenhum sentido.
O vereador disse depois nas redes dele que entrou na igreja depois do fim da missa. Não faz muita diferença, mas desconfio que o pessoal da invasão não entende muito de missa. Tem vídeo do momento da invasão e, se você não fugiu do catecismo, vai ver que a missa ainda ocorria. O padre fica pedindo para prosseguir com a cerimônia religiosa e o parque de areia antialérgica xinga todo mundo, crente que está abafando.
É uma ideia tão sensata quanto a de traficante evangélico que manda quebrar terreiro de candomblé. É, sem dúvida, uma demonstração de força e de desprezo pelo que é sagrado para outras pessoas. Pelo menos o traficante não faz uma brutalidade dessas dizendo que é bonzinho e quer defender um mundo mais justo e os direitos das minorias.
Locais de culto são invioláveis, principalmente durante o culto. É um princípio adotado após a Declaração Universal dos Direitos Humanos e seguido à risca até mesmo durante guerras. Trata-se de algo tão importante que recentemente a polícia holandesa ficou 3 meses - isso mesmo 3 MESES - esperando na porta de uma igreja para efetuar uma prisão porque o culto não acabava.
Contei essa história num artigo de março de 2020. Havia uma ordem de deportação contra uma família de armênios refugiada na Holanda e eles se abrigaram na pequena Igreja Bethel. O princípio de inviolabilidade do culto é tão importante que, em Haia, berço da Corte Internacional de Direitos Humanos, existe lei específica impedindo até a polícia de interromper.
Ao saber da ordem de deportação, que era imediata mas ainda pendente de recurso judicial, cinco membros da família Tamrazyan procuraram abrigo na Igreja Bethel, em Haia. O culto não foi encerrado, continuou para que a polícia não pudesse entrar e cumprir a ordem de deportação. Virou notícia e pastores de outras igrejas se voluntariaram para um culto ininterrupto até o desfecho do processo.
Mais de 500 religiosos e religiosas de mais de 20 denominações diferentes se alternaram no púlpito em um culto ininterrupto na Igreja Bethel. Os 3 filhos da família, que é cristã, tomaram parte importante nas cerimônias. A imprensa era permitida somente em poucos momentos, para que o valor espiritual não se perdesse.
Os cristãos holandeses se uniram numa maratona que promoveu um culto ininterrupto iniciado em outubro de 2019. Dois meses depois, o governo disse que não mudaria de ideia. Os religiosos continuaram. Em 90 dias, a Justiça holandesa decidiu que era lícita a permanência da família armênia no país, já que o pai era refugiado político. Os policiais fizeram 3 meses de plantão na porta da igreja e jamais entraram, em respeito ao culto. Mas o lacrador brasileiro acha que pode invadir missa.
A invasão da missa foi justificada porque a igreja foi construída pelo "povo preto", negros escravizados. Na posição privilegiada de flanelinha de minorias, o vereador decidiu que é responsável por todos os negros. E, como todo flanelinha, não importa se a minoria quer ou não a "proteção" dele, ele vai "proteger" de qualquer jeito.
Dom José Antonio Peruzzo, Arcebispo de Curitiba, escreveu uma nota oficial acertadamente rejeitando submeter a igreja a uma disputa política. Também falou da maravilhosa e dolorosa história da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, construída por pessoas negras escravizadas. Obviamente repudiou a atitude, que nada tem a ver com política, mas com intolerância.
Outro ponto é ser justo o PT, que nem existiria sem apoio das comunidades católicas de base, se meter a invadir igreja e xingar padre de racista e fascista. O surgimento da figura de Lula e a fundação do partido em si têm ligação umbilical com a ala católica que se jogou de cabeça na Teologia da Libertação nas décadas de 1970 e 1980. Sem proteção e validação deles, o PT não teria ido adiante num regime de exceção. Cospe no prato em que comeu.
A Teologia da Libertação propunha, numa simplificação grosseira, transformar a Igreja Católica Apostólica Romana numa ONG. Não teria mais fiel, teria ongueiro. Sei que não deveria dizer isso, mas amo quando meus amigos religiosos da Teologia da Libertação tentam responder. Na prática, até os sacramentos seriam abolidos se o negócio fosse em frente. Se bobear, até Jesus. Houve um racha entre os católicos brasileiros.
Antes que me apareça alguma paquita do nosso amado Lula para dizer que eu estou menosprezando a maior figura da história política da Via Láctea, que ele fez o PT e o sistema solar sozinho e do zero, devo uma explicação. Não sou eu quem digo que não haveria PT sem as Comunidades Eclesiais de Base e a Igreja Católica. É o Lula quem fala. Tem vídeo.
No caso de haver aqui algum devoto de Sua Santidade Luiz Inácio Lula da Silva, convém transcrever alguns trechos. Aliás, caso você conheça algum adepto dessa religião (o lulismo) que defenda invasão de igreja, vale a pena lembrar a eles o que a única fonte oficial de conhecimento da humanidade falou. Lula diz textualmente que não haveria nem PT nem ele como figura política não fosse a Igreja Católica.
"O PT não existiria do jeito que ele existe se não fossem as Comunidades Eclesiais de Base. Eu que viajei o Brasil inteiro para construir esse partido, eu sei o valor de um padre progressista. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) não entraram no PT, as CEBs fundaram as células do PT", disse Lula na entrevista a Leonardo Boff.
"Foi a relação com você (Leonardo Boff), e com outros 'companheiros da Igreja', como padres...Foi a relação que tive com Dom Claudio Hummes, Dom Angélico, que tive com bispos do Acre, de Rondônia, Dom Evaristo Arns, Dom Luciano Mendes e milhares de movimentos sociais que me fez ser quem eu sou. (...) Eu sou na política um pouco filho do movimento sindical, dos movimentos sociais, um pouco filho da Teologia da Libertação.", afirma o ex-presidente na mesma ocasião.
A assessoria do vereador que invadiu missa xingando o padre de fascista e racista e atropelando beata idosa diz que foi por amor. Isso mesmo, amor. "Nos surpreende perceber que exaltar o amor e a valorização da vida em uma igreja causa mais indignação que o assassinato brutal de dois seres humanos negros no Brasil.", diz a nota oficial do vereador. Gente, vamos meter uma Maria da Penha nesse povo porque xingar e maltratar não chama amor não. Essa história é velha.
Fora a descontextualização proposital que borra a linha entre verdade e mentira, mecanismo de discurso que é a base do totalitarismo. Explico: totalitarismo, segundo Hannah Arendt, não é feito somente com radicais e extremistas. O mais importante é borrar a fronteira entre verdade e mentira, criando brecha para radicalização. É o caso. Qual medida foi utilizada para dizer que a invasão da igreja causou mais indignação que os assassinatos? Nenhuma, é invenção pura e simples.
Mas o vereador já é escolado na matéria. Tem um longo histórico de xingar religioso e fazer manifestações violentas ou bater em manifestantes. Já foi preso várias vezes por isso durante a campanha. E o pessoal vota assim mesmo? Enquanto houver cavalo, São Jorge não anda a pé.
O vereador do PT disse defender Direitos Humanos por meio de um ato que tratora direitos humanos. Depois alegou ser o dono do movimento negro e, por isso, com direito para em nome de todas as pessoas negras do Brasil, invadir um templo dos fascistas, a Igreja Católica. O Lula diz que sem Igreja Católica não haveria nem ele nem PT. Ele que se cuide. Se bobear, o parque de areia antialérgica da militância invade o apartamento do Lula, xinga ele de ladrão e diz que foi por amor.
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