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Damares, a abstinência e os inteligentinhos
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Os mais fervorosos críticos ao projeto da ministra Damares Alves são justamente aqueles que não o leram. Estou muito surpresa com o número de especialistas em campanhas de saúde pública que temos no Brasil. Ainda bem que quando me contrataram para chefiar uma delas em Angola a concorrência era menor e, mesmo sem celebrar uma apoteose de certezas sobre pessoas e dinâmicas sociais que não conheço, fui considerada digna do cargo.

A equipe da qual fiz parte, como Consultora Internacional em Comunicação para o Desenvolvimento, foi a que conseguiu a erradicação da pólio no território angolano. Obviamente conheço a virulência dos inteligentinhos ao comentar o que desconhecem e atacar campanhas de saúde destinadas a um público que eles também não conhecem. No meu caso específico, a presença de figuras da então mais longeva ditadura africana acabava politizando a campanha. Agora, no Brasil, a figura pública da ministra Damares igualmente monopoliza as atenções.

Damares Alves conhece o público evangélico, maioria de mulheres negras e pobres, não de ouvir falar, mas de conviver. Ela sabe que e por que seu projeto terá apoio em peso da população, tendo ou não base científica.

As meninas da periferia sonham muito pouco, não vivem em um mundo no qual seus sonhos tenham grandes chances reais de virar realidade. Na nossa cultura, sobretudo a televisiva, a valorização da mulher se dá pela sensualidade. Por que os falastrões de redes sociais, tanto à esquerda quanto à direita, quando querem xingar uma mulher a chamam de velha? Confundem constatação com xingamento porque o único valor da mulher é a sensualidade, valor muito ligado à juventude. As oportunidades de cultura e lazer disponíveis para as meninas das nossas periferias urbanas reforçam esse estereótipo.

Sensualizar e mostrar o corpo tem se tornado uma necessidade de autoestima em idades cada vez menores. Não é raro escolas públicas terem problemas com moças que não querem usar o uniforme dado pelo governo porque querem, por exemplo, assistir a aula sem blusa, somente com um top. Parecer promíscua, dizer que "pegou muitos", que beija todos, sentar no colo dos meninos no intervalo, dizer que é vagabunda ou cachorra são demonstrações de poder feminino na nossa cultura.

Podemos falar que se trata de uma escolha usar a sensualidade como definidor da própria persona, mas só quando falamos de adultos. É perverso e machista permitir que as meninas se submetam a um sistema de valores em que sua aprovação necessariamente depende da opinião dos outros.

É preciso debater a sexualidade também sobre o prisma psicológico. Por razões diferentes, tanto meninos quanto meninas são socialmente cobrados a iniciar a vida sexual cedo. Mas será que é bom para eles, psicologicamente? Aliás, falei das meninas porque trata-se de fenômeno relativamente recente. O massacre psicológico que nossa cultura faz com os meninos no quesito sexualidade está nos servindo um banquete de consequências.

Dos meninos espera-se o desapego dos sentimentos e a virilidade, mesmo quando não estão prontos fisicamente e psicologicamente para essas vivências. Os que têm dificuldades na área da sexualidade e da afetividade são considerados perdedores, podem ser publicamente ridicularizados até pela própria família. Não tem receita mais eficiente para fragilizar a masculinidade e o resultado está no ressentimento expressado de forma agressiva nas redes sociais. Homem seguro da própria masculinidade não dá chilique, o destempero e o orgulho dele são formas de mascarar a insegurança, tentar travesti-la de coragem. Precisamos interromper esse círculo vicioso.

As piadas sobre a sexualidade da ministra Damares quando se aborda o tema do início precoce da vida sexual são fáceis de fazer. Difícil é falar desse tema com seriedade ou ouvir as comunidades que o consideram importante.

Considerações do tipo "é impossível segurar os hormônios dos adolescentes" servem para empobrecer e desviar o debate. Pense nos seus hormônios e na sua adolescência: você sempre se deixou levar pelos instintos? Óbvio que não. Adolescentes erram mas também acertam. Não se trata de substituir uma política de informação sobre sexo seguro por uma política de zero sexo, mas de adicionar o tema do início da vida sexual ao debate. Qual o problema?

Nós passamos de uma geração onde tudo se escondia porque os pais esperavam que a gente casasse virgem a uma em que não se fala com os filhos sobre os impactos emocionais, psicológicos e sociais do sexo. Podemos sim tratar a vida sexual como algo puramente biológico e dissociado dos nossos afetos e laços, mas não quando falamos de seres humanos. Aliás, nem quando falamos de macacos.

Uma sociedade que alimenta a cultura televisiva de que a mulher é valorizada pela sensualidade e o homem pela virilidade tem o dever de olhar com mais cuidado as crianças e adolescentes. Não é à toa que nossas campanhas de saúde pública sobre sexualidade têm tido resultados RIDÍCULOS.

A contaminação por HIV entre os jovens de 15 a 29 anos no Brasil subiu 700% entre 2009 e 2019. Sim, SETECENTOS POR CENTO de alta. Eu conheço infectologistas que criticavam duramente nossas campanhas por focar no combate ao preconceito e não nos efeitos reais, físicos e psicológicos, da contaminação por HIV. Diziam que, para os jovens, daria a importância de que é super simples se cuidar após o contágio, só tomar um coquetel de remédios. Foram chamados de conservadores, preconceituosos, mensageiros do caos, fascistas.

A cada 100 bebês nascidos no Brasil, 15 são filhos de mães com menos de 19 anos de idade. Não se preocupe porque não tem o menor risco de a nossa sociedade dar certo seguindo assim. Os jovens estão recebendo informações sobre sexualidade e formas de prevenir doenças e gravidez, por que a taxa no Brasil ainda é mais alta que nos outros países da região? Porque não são máquinas, são humanos. Não é porque alguém colocou a informação que eles usam, os fatores sociais e psicológicos são determinantes na tomada de decisões.

Não tenho qualificação profissional para avaliar se o todo da campanha da ministra Damares é melhor ou pior que o anterior. Quem tem experiência na área de campanhas de saúde pública e um mínimo de honestidade intelectual sabe que não tem como opinar sozinho, apenas um time multidisciplinar que disponha de dados objetivos pode saber se a campanha promete ou não eficácia.

Na minha área profissional, que é a da Comunicação, Damares Alves já ganhou essa. Resolveu trazer ao debate público um tema que preocupa famílias e professores mas é tratado como ridículo pelos inteligentinhos do Brasil: a iniciação sexual precoce dos nossos meninos e meninas. Quando os inteligentinhos debocham da ministra, a pessoa que também se preocupa com o tema da sexualização precoce se apropria da ofensa, é como se tivesse sido ridicularizada também.

Quanto mais machista, baixo nível, boca de latrina e arrogante for o ataque a Damares Alves na questão da abstinência, maior o apoio que o tema terá na população brasileira, sobretudo a mais pobre, que é mais conservadora. A ministra é uma pessoa pública, natural que sofra críticas. Entendo que os cidadãos, no caso de autoridades públicas, têm o direito inclusive à crítica pesada, satírica e debochada. Só não podem é fugir das consequências quando elas são o oposto do pretendido.

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