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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Debochando da família com linguagem evangélica

Flordelis, deputada federal (Foto: Câmara dos Deputados)

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Embora o Supremo Tribunal da Internet já tenha sentenciado a deputada Flordelis pelo assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo, o caso ainda não está resolvido e parece ser ainda mais complicado do que se imaginava. Hábil, a deputada e cantora gospel manipulou com destreza o preconceito contra evangélicos e conseguiu cravar manchetes na mídia tradicional.

Disse que "desagradaria Deus" caso se separasse, então não tinha alternativa. Apostou que o preconceito religioso da elite intelectual brasileira falaria mais alto que o faro jornalístico ou o apetite por fatos. Obviamente ganhou. Ela é separada do primeiro companheiro, há pelo menos 8 tentativas prévias de assassinato do segundo e vários suspeitos. A deputada é a única com foro privilegiado.

Se o crime ainda não foi resolvido, o caso em si chama a nossa atenção para um alerta de Jesus que Paulo repetia em diversas cartas nos primórdios do cristianismo: a árvore se conhece pelos frutos. Há quem se valha dos rituais, vocabulário, símbolos e até do próprio Evangelho para praticar o oposto. O maior inimigo do Evangelho não é o declaradamente contrário ao Evangelho, é o que simula ser Evangelho mas não é.

Aqui a discussão não é sobre fé, uma experiência íntima e pessoal, mas sobre poder. Naquelas primeiras comunidades cristãs, havia uma série de ritos, palavras e símbolos que identificavam os seguidores do cristianismo. A questão é que qualquer um pode aprender isso simplesmente para ganhar poder dentro dessa comunidade ou até como um projeto para destruir essa comunidade, por isso o alerta de olhar os frutos.

Uma pessoa pode enganar no discurso, se inserir em qualquer comunidade rapidamente conquistando a simpatia de líderes e dizendo o que querem ouvir. É possível negar o passado, se vitimizar, fingir ter laços emocionais e valores que não tem, as pessoas gostam de acreditar nisso. Mas não é possível fingir os frutos que a árvore dá. Ocorre que, quando a lábia é boa, muitos não percebem que a pessoa faz exatamente o oposto do que prega.

O povo brasileiro é majoritariamente cristão e temos um presidente da República que dá espaço a esse tema. Quais serão os resultados óbvios? Cristãos terão mais espaço e muita gente tentará mimetizar o vocabulário dos cristãos para ganhar espaço. Reparem quantos neo-convertidos surgiram no cenário político que passam o dia na contenda.

O caso Flordelis é um alerta gigantesco para a necessidade de olhar os frutos e parar de cair na conversa de lobo em pele de cordeiro. Os cristãos, principalmente aqueles criados na igreja desde pequenos, não imaginam que alguém mimetize a vida evangélica para ter benefícios e brinque com a fé e o sagrado. Eu imagino quantas pessoas ficaram emocionadas com as palestras falando da família e dos 55 filhos adotivos de Flordelis e sei quanto foram apedrejados os críticos.

Esse é o típico caso em que os frutos podres fediam de longe, eram evidentes e foram habilmente acobertados pelo vocabulário, símbolos e rituais copiando os cristãos. A família, tida como valor sagrado, era um deboche, um verdadeiro escândalo, sobre o qual uma intervenção sempre foi necessária. Estava ali armada uma bomba-relógio e havia muitos que alertavam dentro do próprio meio evangélico, mas eram tidos como preconceituosos ou conservadores demais.

O marido assassinado foi filho adotivo da deputada Flordelis. Depois foi genro, namorado da filha biológica também acusada agora no crime. Então, ela se casou com o namorado da filha, foram todos morar juntos, o casal teve um filho biológico e diziam "adotar" crianças. Não é o que faziam, colecionavam crianças. Eram 55, cada um largado ao próprio universo emocional. Alguns casavam entre si. Qual a chance disso dar certo?

Quem tem filhos sabe que um casal num centro urbano trabalhando o dia inteiro não dá conta das necessidades de 55 crianças sem uma boa rede de suporte, principalmente psicológica. Avalie uma família que se formou com o casamento da mãe com o filho adotivo que antes era namorado da irmã. Repetir as palavras da Bíblia, os rituais e símbolos evangélicos não vão resolver os inúmeros problemas que esse arranjo, por si só, cria para todos os envolvidos.

Se, por um lado, o mundo evangélico tende a acolher todos os que repetem seus símbolos, por outro a elite tende a glamurizar pobreza e vitimismo. Flordelis soube beber das duas fontes. A vida da deputada chegou a virar, em 2009, um filme com elenco de peso: Bruna Marquezine, Deborah Secco, Cauã Reymond, Reynaldo Gianechinni, Leticia Sabatella, Ana Furtado, Leticia Spiller e Marcelo Anthony. O produtor executivo foi o pastor Anderson, marido dela. Ninguém cobrou cachê.

"Flordelis: Basta uma palavra para mudar" é um filme que glamuriza a história de uma moradora da favela do Jacarezinho que adotou 37 crianças para viver junto de seus 4 filhos biológicos. Ela garantia que as primeiras adoções eram de vítimas de chacinas da Candelária, em 1993. Mas o filme é de 2009 e ela tinha várias crianças pequenas em casa. Não importa, a história foi glamurizada.

Flordelis e Anderson contaram aos mais diversos órgãos de mídia do Brasil histórias fantasiosas sobre os filhos e o surgimento do amor dos dois. Ora ele era um menino que escapou da vida no crime e foi salvo por ela, ora era um destacado membro de uma comunidade evangélica que se apaixonou pela pastora mais velha. Na Justiça, as histórias das adoções não colavam e, por isso, não conseguiam os documentos. Comunicadores, artistas e religiosos juravam ser perseguição contra a mulher pobre e de coração generoso.

No lançamento do filme, no cine Odeon, palco que os modernos amavam em 2009 no Rio de Janeiro, Flordelis fez uma performance para provar que tratava os mais de 50 filhos como filhos: chamou um por um ao palco, pelo nome. Foi efusivamente aplaudida. Se sabia o nome de todos, então as crianças deveriam ser muito bem cuidadas, devem ter concluído os participantes do espetáculo.

A deputada sempre se pronunciou frontalmente contra os abrigos para menores, que não criam raízes familiares. Era obviamente aplaudida porque isso é verdade mesmo. O erro de religiosos, jornalistas e artistas foi imediatamente concluir que soluções como a "família" de Flordelis eram melhores que abrigos. Não são e estão aí os frutos.

Para os evangélicos, Flordelis mimetizou o comportamento, os símbolos e o vocabulário evangélicos. Para a elite intelectual, mimetizou o que mais a excita: a pobre negra favelada sofredora que desafia o sistema e, de quebra, ainda tem um marido bem mais novo. Nesse ambiente, repetia também exatamente os símbolos e as frases lacradoras que todos queriam ouvir. Ninguém olhava os frutos.

Muitas pessoas, no meio evangélico, artístico e jornalístico sentem-se enganadas por Flordelis e é interessante notar que não são pessoas ingênuas ou inexperientes. Com uma história que não fechava, um carisma impressionante e uma voz linda, a pastora conquistou a confiança de gente experiente que já viu de tudo na vida. Na era das aparências, o conselho de "olhar os frutos" é ainda mais valioso. Quantas outras "Flordelis" estarão circulando por aí?

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