Hoje você vai ver uma movimentação enorme nas redes sociais, envolvendo agências de propaganda famosas, publicitários, associações de publicitários e marcas. Dirão que é em nome da diversidade e da igualdade. Há todo tipo de material midiático em tom indignado contra o projeto de lei 504/2020 da Assembleia Legislativa de São Paulo.
O projeto“proíbe a publicidade, através de qualquer veículo de comunicação e mídia de material que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionados a crianças no Estado”. A mobilização contra ele assume um caráter heroico, de preservação de direitos, liberdade de expressão e representatividade. Grandes marcas embarcam na história pensando fazer isso. Só que não é nada disso.
A mistura de arrogância com poder e ignorância política está levando grandes agências e marcas a mentir para o grande público. É mais uma faceta do "ESG de Taubaté", em que a narrativa é mais importante que as ações reais. O tal PL 504/2020 tem vício de iniciativa, já que não se legisla sobre publicidade em âmbito estadual, só federal. Será vetado. A mobilização contra ele deliberadamente ignora esse ponto. Bom para os políticos, ruim para as marcas, agências e público.
No ambiente político, temos um ganha-ganha. Uma deputada evangélica apresentou o projeto e sabe que não passa no controle de constitucionalidade da Casa Civil. Ainda que seja aprovado, será vetado pelo governador. Aliás, conforme verifiquei, o gabinete foi avisado da inconstitucionalidade por vício de iniciativa pelo corpo técnico da Alesp, mas decidiu seguir em frente. E por que faria isso? Explico porque já fiz o mesmo e tem todo o sentido na política.
Em 2013, eu era Diretora de Comunicação da Change.org para a América Latina. O Instituto Alana, ONG que luta pelos direitos da criança, fez uma parceria com a Change.org na luta pelo banimento de propaganda direcionada a crianças. A organização tinha uma estratégia muito bem montada e contava com ótimos profissionais para avaliação do cenário político e impacto das ações. A Change.org, que é uma b-corp listada em Wall Street também era rígida com o impacto das ações no mundo real.
Havia uma ampla negociação envolvendo muitos stakeholders. A intenção era seguir o que países civilizados já fizeram, proibindo peças publicitárias do tipo "eu tenho, você não tem". Há negociações de muitos detalhes em torno dos projetos e, por isso, é necessário provocar discussões na sociedade e é muito mais fácil fazer isso em Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, que têm muito mais parlamentares do que o Congresso Nacional. Se o marketing for bem trabalhado, projetos locais geram discussões nacionais importantes para posicionamento sobre o projeto "que vale", o que está na esfera certa de decisão.
Campanhas em torno de projetos inviáveis são um ganha-ganha político. Mandatos "temáticos", os mais ideológicos, se beneficiam pelo espaço de mídia que o político ganha. Nesse caso, haverá dois espaços: de quem propôs o projeto e de seu principal oponente. Não utilizarão argumentos objetivos, sobre a constitucionalidade, viabilidade ou possibilidade de aprovação e sanção porque não interessa. Interessa falar dos temas usados na campanha política, até para usar depois essa mídia na campanha em si.
No caso em que eu atuei, todos sabiam o que estava em jogo. Quer dizer, quase todos. Afastada das redações desde 2008, confesso que fiquei chocada ao ver jornalistas menos experientes e comentaristas que se julgavam jornalistas atuarem em torno do tema. Focavam apenas no mérito do projeto, se haveria ou não propaganda para criança. Sequer perguntaram sobre viabilidade, constitucionalidade ou acordo para aprovação e sanção. Eram, infelizmente para mim, as primeiras perguntas de jornalistas mais experientes, da era pré-digital. Um inferno.
Entre os stakeholders que se posicionavam nesse tipo de questão estavam a imprensa, ONGs, associações da sociedade civil, instituições e figuras públicas ligadas à infância e à publicidade. Não havia, no entanto, a necessidade de posicionamento de marcas sobre o assunto, como há hoje. Vivemos a privatização da política, um momento em que empresas acreditam poder fazer o papel que é da cidadania. O pensamento se inicia nas Big Techs, mas se espalha principalmente na área de comunicação das empresas. O problema é a falta de quem consiga analisar o cenário político para dizer onde está metendo a marca.
Debater de forma sanguínea o PL 540/2020 mesmo sabendo que ele não entrará em vigor por vício de origem interessa a dois mandatos. Primeiro o da autora, que quer consolidar a pauta de costumes e seu eleitorado evangélico. Depois, o da principal opositora, cujo mandato é de defesa das pautas LGBT. Quanto mais a história for difundida, mais favorecerá os dois mandatos e os demais que participarem da briga. As marcas que entraram nessa história sabem que a história é essa ou foram enganadaspensam estar em luta real contra a censura e pela diversidade?
Uma agência de publicidade e uma marca têm todo o direito de beneficiar políticos com os quais se identifiquem mesmo que isso signifique também promover junto o pólo oposto. Ocorre que não é esse o caso. Marcas e grandes agências estão assinando um manifesto achando que o projeto realmente pode virar realidade.
A espetacularização da política leva muitas pessoas a acreditar que entendem de política, já que debatem isso nas redes e conhecem alguns políticos. Quanto mais pessoas com poder se comportarem assim e continuarem completamente ineptas para a política, melhor para os políticos e seus assessores. Confesso que, nesse caso de agora, senti muita inveja. Minha vida teria sido muito mais fácil caso houvesse stakeholders tão poderosos e ingênuos politicamente como há hoje.
Nas mobilizações online em torno do PL 540/2020, você verá que ele está na pauta de hoje e pode ser aprovado. Há acordo no Colégio de Líderes? Caso a oposição obstrua, ela tem número para travar a votação? Qual o placar estimado? O que diz a Casa Civil do governo do Estado sobre o projeto? Sem saber isso é impossível decidir o que fazer porque é imprevisível o resultado da ação.
O projeto entrou em regime de urgência na Alesp com outros 10 de autoria de parlamentares, sobre os mais diversos assuntos. Só que isso foi há 8 dias, em 14 de abril. Por que somente agora as agências atentaram para o fato e fizeram com que marcas entrassem no debate? Coincidentemente, foi quando a máquina de marketing das assessorias políticas entrou em cena. Deve ser coincidência e talvez exista uma ótima explicação para o silêncio quando o projeto entrou em pauta e na negociação da urgência.
É curioso a escolha desse projeto específico e só agora para toda essa reação de agências e marcas. Fosse o caso da militância pela diversidade, teriam se manifestado também em outros projetos ou quando este foi apresentado, em agosto do ano passado. Não fizeram. A união para "derrubar" o projeto é o marketing perfeito para a deputada opositora, que comemorará a vitória do que já estava ganho e tem todo o direito. Marcas e agências sabem que estão sendo apenas acessório de propaganda política ou foram enganadas? Arrogância é bicho que come o dono.
Recentemente, a Alesp barrou um projeto que instituía o uso do nome social de travestis e transexuais em todo o serviço público do Estado de São Paulo. Esse pessoal que diz lutar pela diversidade achou certo? Por que calaram? Trata-se de uma questão pacificada até entre conservadores, como o empresário Flavio Rocha, dono da Riachuelo. A própria empresa determinou o uso do nome social há muitos anos e é a maior empregadora de travestis e transexuais do Brasil.
Era outro projeto com vício de origem. "Não obstante o louvável mérito da proposta e a elogiável intenção do autor, o Projeto encontra óbices de constitucionalidade, uma vez que somente o Poder Executivo tem competência para legislar sobre como devem ser realizados os registros públicos e sobre a forma de identificação de seus servidores", diz o parecer da Comissão de Constituição e Justiça. Como não houve acordo para levar o projeto inconstitucional a plenário, não houve promoção do tema pelos gabinetes.
Não interessa aos políticos debater o veto ao projeto do uso de nome social em São Paulo porque não não há como promover o mandato favorável e o contrário sem ir a voto. Agências de publicidade e empresas interessadas no tema, no entanto, poderiam fazer uma diferença real com uma campanha que mirasse em quem decide, o governador João Doria. Fizeram? Não. Estariam sendo manipuladas por assessores de partidos e enfiando empresas na história? Claro que não. Deve haver uma ótima explicação para não fazer propaganda de políticas internas das empresas que poderiam servir de inspiração ao Poder Público.
No Congresso Nacional há uma série de pautas relacionadas a diversidade, com mais chances de sanção, em fase adiantada de aprovação ou apensadas a outros projetos, embora não tenham sido promovidas por assessoria de partido político. Por exemplo:
- PL 4370/2019: proíbe aplicação de penas por crime de homofobia
- PDC 539/2016: acaba com a proibição da "cura gay" por psicólogos
- PL 620/2015: proíbe adoção por casais homossexuais
- PL 5198/2020: proibição do uso de gênero neutro
Vamos assumir que o mundo da publicidade está só usando o hype da causa da diversidade e que só age quando o projeto toca nos interesses deles. Bom, tem na Câmara Federal, bem viáveis, alguns interessantes:
- PL 5417/2020: proíbe propaganda contrária ao uso e porte de armas de fogo
- PL 1432/2021: cria propaganda obrigatória contra maus tratos a animais
- PL 847/2021: obrigatoriedade de intérprete de libras em todos os vídeos publicitários
- PL 784/2021: obrigatoriedade de advertir sobre riscos das drogas em publicidade de todos os eventos infantojuvenis
- PL 354/2021: proibição de publicidade sexista
- PL 599/2021: criminaliza o telemarketing de empréstimos consignados
- PL 640/2021: institui incidência de CIDE sobre publicidade na internet
Já estou quase me conformando com a ideia de que a intenção é apenas cacarejar sem botar o ovo. Pouco importa a diferença da ação na vida dos outros e no mundo real, importa se aquela narrativa faz a liderança que a assume ser elogiada no seu grupo de relacionamento. É um direito agir assim. Desconfio que não agregue valor às marcas e agências. Podem imaginar que a narrativa da diversidade seja positiva, mas o preço do amadorismo nas iniciativas não foi sequer avaliado.
Por mais que uma deputada se oponha ao projeto de proibir diversidade sexual em propagandas, ela não dialoga com o público da autora da proposição e vice-versa. Pouco importa, de parte a parte, se a outra vai crescer com a briga, já que são eleitorados muito diferentes e sem sobreposição. Uma não tira eleitor da outra, aliás, o contrário. Quanto mais a deputada de bandeira LGBT atacar a deputada evangélica, mais crescem as duas e vice-versa. Não se sustenta um mandado sem que sejam medidas as consequências das ações na vida real.
Uma marca se sustenta sem medir as consequências das próprias ações no mundo real? Aparentemente sim, já que isso não está sendo feito. Sempre fui contrária a passar para as mãos de corporações o protagonismo de atividades e decisões que são da cidadania e das instituições. Jamais imaginei, no entanto, que se colocasse esse processo em prática na base do achismo, da vaidade, da arrogância e da avaliação política freestyle. Bom para os políticos, que ficaram sem financiamento privado mas ganham propaganda gratuita. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome.
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