Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Fake News

Desinformação: Wagner não é sinônimo de nazismo, como diz a imprensa

"Eu compreendo que Hitler tenha distorcido as palavras de um dos maiores artistas de seu país para fingir que ambos concordavam. Quem esperaria coisa honesta do ditador sanguinário mais odiado da história recente? Eu não compreendo é o jornalismo brasileiro chegar ao ponto de cobrar a FAB por executar uma obra de Wagner como se o ato significasse tendências nazistas" (Foto: Reprodução)

Ouça este conteúdo

Diversos grandes jornais brasileiros noticiaram que o presidente Jair Bolsonaro ouviu uma música de ídolo nazista em um concerto da Força Aérea Brasileira. Foram cobrar explicações da FAB sobre a execução da obra. Seria cômico se não fosse trágico. Qual era a obra? Os Mestres Cantores de Nuremberg, que você pode conferir no vídeo seguinte, lindamente executada pela Orquestra Juvenil Heliópolis na Sala São Paulo.

Jornalista não é obrigado a conhecer ópera. Mas, geralmente, a galera conhece pelo menos o Google. É realmente intrigante a origem do consenso de que Richard Wagner é necessariamente sinônimo de nazismo porque seria um antissemita idolatrado por Hitler. Quero saber se alguém nas redações que publicaram isso casou com a marcha nupcial na trilha sonora. Tudo nazista. Também é de Richard Wagner, portanto esse povo está devendo explicações tanto quanto a FAB.

Aliás, um dos filmes mais comentados nas aulas de jornalismo literário no Brasil pelos nossos professores de esquerda é Apocalypse Now, sobre a Guerra no Vietnã. Adivinhe qual é a trilha sonora de uma das principais cenas do filme? A Cavalgada das Valquírias, de Richard Wagner. Se eu fosse da patrulha identitária, já estava geral cancelado aqui. O Francis Ford Coppola que fez o filme, a marca de roupas da filha dele e todos os professores e alunos que debateram Apocalypse Now sem dizer que era uma obra nazista.

Pensei diversas vezes em citar os nomes dos veículos de comunicação, mas desisti por honestidade. Não é um fenômeno localizado neles nem exclusivo deles ou até do nosso país. É um fenômeno do nosso tempo recontar o passado com a perspectiva da patrulha identitária. Um jornal de circulação nacional reduzir Richard Wagner, uma espécie de Verdi da Alemanha, a um ídolo nazista antissemita é o apogeu da mediocridade. Não tem um editor com Google?

É verdade que Wagner era idolatrado por Hitler e morreu no século anterior ao nazismo. Também é verdade que fez um ensaio lido no século seguinte como antissemita. Era um libelo contra seus dois rivais, os músicos Giacomo Meyerbeer e Felix Mendelssohn, que utilizava como argumento ataques aos judeus. Para Wagner, os judeus chegados à Alemanha deveriam adotar todos os costumes, incluindo a religião. Em vida não era considerado antissemita pelos judeus. Após sua morte, a produção foi distorcida para que o nazismo ganhasse algum argumento vindo de uma lenda viva da arte alemã.

Eu compreendo que Hitler tenha distorcido as palavras de um dos maiores artistas de seu país para fingir que ambos concordavam. Quem esperaria coisa honesta do ditador sanguinário mais odiado da história recente? Eu não compreendo é o jornalismo brasileiro chegar ao ponto de cobrar a FAB por executar uma obra de Wagner como se o ato significasse tendências nazistas. Compreendo menos ainda não haver até agora uma única correção. Vamos reescrever o passado mesmo?

Aliás, se for para reescrever no padrão da lacração, supõe-se que tudo admirado por Hitler tem de ser banido da vida atual porque é nazista. Então como a gente fica no caso do jogador Mauricio Souza? A Fiat, que pediu a cabeça dele no time, fabricava os carros oficiais de Hitler (e também de Mussolini e Franco). Já não tinha então de ter sido cancelada antes mesmo de chegar a patrocinar um time?

Tomar uma aspirina, por exemplo, é um ato nazista seguindo essa lógica. Alguns tipos de celulares, computadores, elevador. Até o carro 100% brasileiro, o gol, é nazista seguindo a lógica que acaba de ser publicada na imprensa. E eu já vou patrulhar também todo mundo que usa terno Hugo Boss. Até quem usa perfume Hugo Boss está devendo explicações sobre tendências nazistas.

Nietzsche, tão citado pela intelligentsia brasileira no tradicional momento de afetar superioridade, era admirador inconteste de Wagner. Na obra "O Nascimento da Tragédia", de 1872, ele defende que a ópera do compositor era renovadora do espírito alemão. A seguir a cartilha da patrulha identitária, Wagner é nazista porque Hitler gostava dele. Portanto, Nietzche só pode ser nazista porque gosta de Wagner também. Todo intelectual brasileiro que cita Nietzsche é nazista? Ou só se não for da patrulha?

Aqui não falamos mais de erro, mas de desinformação, algo feito de maneira proposital. Não é um erro quando várias pessoas adultas cuja profissão é apurar informações mentem de forma grosseira sobre um artista mundial e atemporal porque querem fazer oposição ao presidento. Que façam, mas deixem claro o que é militância e o que é apuração jornalística. Está dado o tom da campanha do ano que vem. Nem sua tia no whatsapp é tão criativa quanto quem brada ser imparcial.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

+ Na Gazeta

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.