Fé e religiosidade são diferentes de estupidificação ou crença em soluções mágicas. Vi pessoas disseminando a ideia de que Deus protegeria alguns escolhidos da epidemia de COVID-19. Não vou perder a oportunidade perfeita para usar o clichê "seria cômico se não fosse trágico". Não foi à toa que Deus colocou cérebros em diversos seres, difícil entender por que alguns humanos optam por desligar essa máquina tão maravilhosa.
Ciência e fé não são incompatíveis como virou moda dizer na era da glamurização da superficialidade. Manter um culto em época de pandemia não é fé, é vaidade. Onde há vaidade não cabe Deus.
A evolução tecnológica já permite que nós possamos manter nossas práticas religiosas, com pequenas adaptações, mesmo sem congregar, sem nos reunir no local que consideramos sagrado. Astronautas mantêm suas práticas religiosas no espaço, alguns de forma privada e outros de forma pública, com leituras bíblicas que se tornaram famosas nas redes sociais.
Foi exatamente em encontros religiosos que a epidemia de COVID-19 saiu de controle em diversos países. Na Coreia do Sul, que tinha tudo controladíssimo até o paciente número 30, uma senhora que foi a dois cultos elevou a contagem de infectados para milhares. Na França, um encontro evangélico foi também a origem de diversos casos.
Aprendendo com a experiência, diversas igrejas no Brasil decidiram fazer cultos online a partir deste final de semana. A justificativa científica, cidadã e moral é óbvia. Haveria justificativa bíblica para isso? Há. A pedido do Coletivo Beréia, Ed René Kivitz, teólogo, mestre em Ciências da Religião e pastor da Igreja Batista de Água Branca, explicou por que decidiu cancelar cultos presenciais. Transcrevo:
Coronavírus: dias difíceis, medidas extremas
Ed René Kivitz
Em resposta à pandemia do novo coronavírus, Sars-CoV-2 , na noite de quinta-feira, 12 de março último, a Igreja Batista de Água Branca decidiu suspender todas as suas atividades presenciais, inclusive e principalmente as celebrações dominicais, que serão realizadas em modo online, por tempo indeterminado.
A fé não imuniza. Jesus ensinou que as chuvas e tempestades e ventos furiosos assolam as casas de todos, bons e maus, tanto dos que têm a casa edificada sobre a rocha quanto dos que a edificaram sobre a areia (Mateus 7.24-27). A fé é o recurso para enfrentar a fatalidade, não licença para agir com desinteligência, imprudência, ingenuidade ignorante, ou teimosia. Enxergando nuvens no horizonte e sabendo das condições desfavoráveis à navegação, Paulo, apóstolo, adverte seus companheiros de viagem dizendo:“vejo que a nossa viagem será desastrosa e acarretará grande prejuízo para o navio, para a carga e também para as nossas vidas” (Atos 27.7-10). Aprendi que devemos dar passos de fé, mas por vezes a fé recomenda um passo de bom senso. Quando os ventos são contrários, fique no porto, não se arrisque sob pretexto de fé. Isso não é fé, é arrogância, é colocar Deus à prova (Mateus 4.7; Deuteronômio 6.16).
Toda cura é cura divina, inclusive aquela promovida pela medicina, disse John Stott, teólogo anglicano britânico. A cisão entre fé e ciência reflete mais ignorância que piedade. Atender às recomendações das autoridades governamentais, notadamente aquelas orientadas pelos profissionais da saúde, os especialistas e infectologistas, é uma expressão de sensatez e também uma forma de honrar a Deus, pois como bem disse Louis Pasteur, “um pouco de ciência nos afasta de Deus. Muito, nos aproxima”.
A igreja é uma comunidade solidária. Não vive à parte do mundo e da sociedade, e por isso mesmo compartilha tanto as bem-aventuranças quanto as desventuras de seu povo e seu tempo. Ao despedir-se de seus discípulos, Jesus orou pedindo “não rogo que os tires do mundo, mas que os protejas do Maligno” (João 17.15). A esperança e as convicções espirituais não isentam das responsabilidades e dinâmicas da vida no mundo, e por isso mesmo o apóstolo Paulo nos recomenda: “exerçam a sua cidadania de maneira digna do evangelho de Cristo” (Filipenses 1.27).
A igreja tem uma inescapável função social. A igreja, em suas palavras e ações, seu kerigma e sua práxis, profetiza, ensina e serve. Walter Brueggemann, teólogo e catedrático do Antigo Testamento, disse que profetizar não é predizer o futuro, é falar a verdade a respeito do tempo presente. A verdade de hoje é que enfrentamos uma pandemia e não podemos ser displicentes nos cuidados necessários à sua superação. A medida extrema de cancelar as celebrações dominicais presenciais é também um ato pedagógico, um alerta àqueles ainda negligentes face à gravidade da situação. Acima de tudo, evitando os grandes ajuntamentos a igreja atua de maneira responsável e cuidadosa não apenas para com seus frequentadores, como também para com toda a sociedade.
Dias difíceis, medidas extremas. Diante dos imensos e múltiplos desafios impostos pelo advento do novo coronavírus vale a máxima dos Beneditinos: ora et labora. Joelhos ao chão e mãos estendidas na direção de quem sofre. Confiança em Deus e ação diligente, inteligente, amorosa e solidária para zelar pela saúde e bem-estar do mundo.
Ed René Kivitz é teólogo, mestre em Ciências da Religião e pastor da Igreja Batista de Água Branca.
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