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A bandidolatria é um dos esportes nacionais mais valorizados. Dessa forma, o Brasil se dedica a discutir as motivações, justificativas e sentimentos dessas vítimas da sociedade que depredaram o Capitólio e ceifaram quatro vidas. Infelizmente, este é mais um esporte em que não qualifico nem para ficar no banco de reservas. Como faço há mais de duas décadas, desde que comecei na reportagem policial, sempre busco a história pelo olhar das vítimas. É o único que me interessa, por mais triste que seja a história do agressor e por mais melodramáticos que sejam seus defensores. "Minha mãe não se comove", diria meu filho.
Comecei a encontrar nas redes sociais diversos relatos de pessoas chocadas ao reconhecer nos vídeos familiares, amigos, colegas de trabalho e ex-namorados. A sensação de dormir com o terrorista e ser pego de surpresa é devastadora. Pouco importa a causa que a pessoa diga defender, nós imaginamos ter ideia do grau de violência a que chegariam os que são mais próximos de nós. Temos? Você tem?
Excluindo cunhados, quais pessoas próximas você imagina que trariam uma surpresa dessas a você? Enquanto quem não foi tocado pela dor se refestela com debates inflamados, as pessoas feridas pelo sentimento de traição ou de desilusão não querem nem saber de Trump, Biden, política, nada disso. Imagine uma das pessoas com quem você tem intimidade. O que você sentiria ao ficar sabendo só por um vídeo na internet que ela é parte de um grupo armado que combinou de ir depredar algum lugar por uma causa e acabou matando quatro pessoas? É assim que se sentem as vítimas desse trauma coletivo chamado radicalização.
Pouco importa qual é a causa que a pessoa abrace, a postura radical, violenta e a desconsideração com a vida humana e a dignidade nos chocam quando vêm de conhecidos. Obviamente todos nós temos aqueles conhecidos de quem já esperamos o pior. Cada um já imagina na própria família quem seriam os mais fortes candidatos a ir parar na delegacia num episódio de catarse violenta. O problema é quando quem vai parar na delegacia não são esses candidatos mais prováveis, os tradicionais desequilibrados de toda boa família, são as pessoas que julgávamos dignas e equilibradas.
Hoje há quatro famílias chorando seus mortos e, se nossa prioridade fossem valores humanos, chorar a dor delas também seria. Pouco importa o que essas pessoas estavam fazendo. A dor de uma mãe diante do caixão de um filho não é maior ou menor de acordo com a culpabilidade. Há famílias que jamais imaginaram ver aquela pessoa metida numa insanidade violenta dessas. São pessoas que têm história de vida, serviços prestados, construíram memórias inesquecíveis com seus familiares. A dor do inexplicável paralisa e, infelizmente, nenhum de nós está livre dela no mundo de hoje.
A morte de Genival Lacerda, o rei do duplo sentido, trouxe à minha memória o quanto nossos pais e avós falavam em "lavagem cerebral" nos idos de 1980 e 1990. Calma que eu explico. No ambiente aristocrático em que fui criada, tive a oportunidade de comparecer a um evento do artista na minha infância. Era uma corrida de jegue narrada por ele perto da minha escola. A grande campeã foi a mãe de uma das minhas melhores amigas, que dançou forró com Genival Lacerda ao final de tão requintado evento. Ocorreu ao lado da minha escola, a uma quadra de onde ficava a Igreja da Unificação, fundada pelo Reverendo Moon.
Trata-se de uma seita que causou problemas sérios no mundo todo. O Reverendo Moon, que já morreu, seguia a Bíblia mas o Messias era ele mesmo. Tratava-se de uma igreja para reverenciar o próprio fundador, com toda aquela coisa de casamentos em massa, gente que abandonava a família, pessoas que davam todo seu dinheiro, enfim, aquela situação típica de seitas religiosas. Essa foi originada na Coreia do Sul. Tornou-se um império com diversos negócios, que vão de indústrias a time de futebol, passando por um jornal chamado "The Washington Times". A seita expandiu-se pela Ásia, Estados Unidos e toda América Latina.
Meu falecido pai e muitos outros pais e mães da escola não permitiam que nós entrássemos no quarteirão onde ficava a Igreja do Reverendo Moon. Era época em que criança andava sozinha, pegava ônibus, ia ao mercado. Todos eles diziam a mesma coisa: "se você vai lá, eles fazem uma lavagem cerebral e você vira uma deles". Lavagem cerebral era uma possibilidade que nos dava medo, um conceito. Quando nos iludimos de ter controle sobre tudo deixamos de ter olhos para o perigo.
Pessoas da minha idade lembram vivamente de pais, mães, avós e tios nos alertando constantemente sobre diversos riscos de "lavagem cerebral". É óbvio que eles exageravam em muitos casos porque isso é job description de quem lida com adolescente. A questão é que éramos conscientes daquele ditado infame "quem com porcos anda farelo come". Todos nós sabíamos que podemos perder o controle das modificações feitas no nosso comportamento pelo ambiente ao qual nos sujeitamos. E isso é uma realidade. Lavagem Cerebral não é ignorância dos mais antigos, é um termo técnico de psicologia social.
Agora a Constituição diz que todo mundo é obrigado a ter opinião sobre tudo e jamais mudar de opinião mesmo sabendo que está errado. Então, nosso foco fica muito firme no conteúdo do debate. Contra ou a favor da invasão do Capitólio? Trump foi ou não foi responsável? Bolsonaro deveria ou não apoiar Trump? Tendemos a pensar que Lavagem Cerebral é uma questão de convencimento, só que não tem nada disso. Trata-se de uma série de técnicas de discurso e condicionamento comportamental para que a pessoa passe a defender cegamente um grupo, um líder ou uma ideia, abrindo mão dos próprios princípios, interesses e afetos.
A maioria das pessoas presta atenção no conteúdo do debate. Temos a ilusão de ser racionais, de ter controle total das nossas ações, de decidir e agir com base no convencimento. É uma crendice confortável, mas não passa de crendice. Há técnicas comprovadas de mudança de comportamento, a Lavagem Cerebral, usadas para os mais diversos interesses. Hoje, elas podem ser efetivadas via internet. Ninguém está livre de dormir com o terrorista. Nem você e nem eu.
Há inúmeros relatos de ocidentais recrutados via internet pelo ISIS. Só por redes sociais estima-se que foram 40 mil, sendo 3 mil que decidiram morar no território do califado. A imensa maioria das famílias e amigos relata a mais absoluta surpresa com a decisão. Não eram pessoas religiosas, nem sabiam direito o que é islamismo e, do dia para a noite, decidiram fazer parte de uma jihad terrorista. Não foi aos poucos, havia sinais, só que eles não eram falar de islamismo e tentar convencer os outros, como imaginaríamos. O FBI resolveu ir mais a fundo depois que uma agente de alta patente que investigava o ISIS resolveu se casar com um dos chefes terroristas. Ele era um rapper alemão que resolveu virar jihadista e é chamado de Goebbels do ISIS, criador da propaganda extremista de recrutamento de ocidentais.
Desde maio de 2019, o FBI enquadrou na categoria de Terrorismo Doméstico os grupos norte-americanos que promovem as chamadas "teorias QAnon". A questão, no entanto, não é o tipo de teoria que eles propagam, o que dizem, o discurso que fazem, mas se as técnicas de recrutamento são aquelas que conduzem a atos violentos. "Nenhuma investigação do FBI pode ser aberta somente com base na atividade protegida pela Primeira Emenda (liberdade de expressão). Assim, o FBI não investiga mera associação com grupos ou movimentos. A fim de indicar uma investigação de terrorismo doméstico de um indivíduo, o FBI deve ter informações de que o indivíduo está perpetuando ações violentas e criminosas em prol de uma ideologia", disse Michael C. McGarrity, diretor-assistente da divisão de contraterrorismo dos Estados Unidos em depoimento ao Congresso em 8 de maio de 2019. Na ocasião, ele afirmou que a agência havia feito nos últimos anos mais prisões de terroristas norte-americanos do que de estrangeiros.
É muita loucura? Claro que sim. Normal o mundo nunca foi. É um erro pensar que se trata de debate político, é uma luta por poder que ocorre em vários outros campos com argumentos diferentes. Não esqueça que Charles Manson convenceu os membros de sua seita a assassinar a atriz Sharon Tate no final da gravidez e, décadas depois, conseguiu se casar na cadeia com uma moça de 26 anos que era a cara da atriz e também acreditava nas mesmas teorias da seita que ele próprio inventou. Quando a fragilidade se encontra com a perversidade certa, o match está feito. Cada época tem o discurso que encanta mais, mas o método da radicalização é técnico, psicológico, segue sempre o mesmo roteiro.
Antes da internet era mais fácil descobrir esses grupos porque eles acabavam tendo de se reunir fisicamente. "A radicalização da violência de terroristas domésticos está cada vez mais ocorrendo online, onde extremistas violentos podem usar as redes sociais para a distribuição de propaganda, recrutamento, seleção de alvos e incitação à violência. Por meio da Internet, extremistas violentos em todo o mundo têm acesso às nossas comunidades locais para atacar, recrutar e espalhar suas mensagens de ódio em escala global, como vimos no recente ataque em Christchurch, Nova Zelândia. Nos últimos anos, temos visto cada vez mais terroristas domésticos se comunicando com indivíduos com ideias semelhantes no exterior e terroristas domésticos viajando para se encontrar com esses indivíduos. A natureza cada vez mais global da ameaça permitiu que extremistas violentos engajassem outros indivíduos com ideias semelhantes sem ter que se juntar a grupos organizados. Estamos trabalhando com nossos parceiros estrangeiros para investigar assuntos em seus países que podem estar radicalizando os americanos a tomarem medidas violentas dentro deste país", disse o diretor-assistente de contrainteligência do FBI ao Congresso em 2019.
O FBI mapeou grupos a partir de diversas prisões de terroristas domésticos ocorridas nos últimos anos. Embora não fizessem parte do mesmo círculo de radicais de internet, eles tinham inúmeras crenças absurdas em comum. Dessa forma, a inteligência americana concluiu que algumas teorias absurdas específicas são marcadores importantes da presença de métodos de radicalização. Muitos do grupo que depredou o Capitólio partilham de tais crenças. E, veja as voltas que o mundo dá, elas são publicadas pelo "Washington Times", o jornal da igreja do Reverendo Moon.
O FBI elencou em 2019 as teorias conspiratórias mais frequentes nos grupos que utilizam discursos de radicalização com comprovado potencial de promover violência e terrorismo:
1. Anti-governo
- Um grupo de elites internacionais controla governos, indústria e organizações de mídia, provoca a maioria das guerras, encena eventos e manipula a economia com a meta de estabelecer um governo global.
- As Nações Unidas estão sendo usadas por uma cabala maléfica global para erodir a soberania Norte-Americana, eliminar as liberdades individuais e levar tropas estrangeiras aos Estados Unidos para substituir a democracia pela tirania global.
- A história oficial sobre um determinado ataque terrorista ou tiroteiro em massa é mentira, o evento foi encenado ou produzido pelo governo para justificar avanços sobre as liberdades civis.
2. Baseadas em Identidade
- Governo Ocupado por Sionistas: Agentes Judeus controlam secretamente o governo dos países ocidentais e conspiram para conseguir a dominação global.
- Islamber:g A pequena comunidade muçulmana perto da Hancpock, Nova Iorque, conhecida como Islambert é um campo de treinamento terrorista; seus residentes, que fingem ser muçulmanos pacíficos são, na verdade, radicais islâmicos operando como uma célula terrorista.
3. Extremismo Político
- Pizzagate: Democratas de alto escalão estão ou estiveram envolvidos num cículo de tráfico sexual de crianças centrado no restaurante Comet Ping Pong pizza em Washington, DC.
- QAnon: Um oficial anônimo do governo norte-americano conhecido como "Q" postou online informações secretas que revelaram um esforço secreto, liderado pelo Presidente Trump, para desmantelar uma conspiração envolvendo integrantes do "deep state" e elites globais que estariam engajadas em uma operação de tráfico sexual de crianças.
Preste muita atenção nesses temas. Pouco importa o que você pensa deles. Se ele aparece no discurso de alguém, quer dizer que essa pessoa provavelmente foi cooptada por um grupo que domina técnicas de lavagem cerebral com potencial de provocar atos violentos cometidos por terceiros. Quem diz é o FBI. Não importa o quanto a pessoa seja inteligente e equilibrada, todos estamos sujeitos à ação do mal nos nossos momentos mais vulneráveis.
Ninguém é perfeito, salvo algumas exceções, como eu, por exemplo. Está aí a fina flor do radicalismo travestido de civilidade: o nós contra eles. Claro que só o grupo político oposto ao seu faz isso, certo? Cuidado... Enxergar os seus como inteiramente bons e os outros como inteiramente maus é radicalismo. Colocando a cabeça no lugar, a gente sabe bem até os filhos que tem, avalie a insanidade que é sair por aí defendendo político e malandro que você conhece só de rede social e nem imagina quem é. Nossa salvação não está na bagunça nem na tecnologia, está em priorizar os valores humanos. Se tiver sobrado ainda algum, claro.
Devo admitir, no entanto, dois pontos positivos da tragédia nos EUA. O primeiro é que eu mandei mensagem para tudo quanto é amigo e ex-chefe norte-americano que zuava o Brasil falando assim: "Nossa, parece ficção esse tipo de coisa que só acontece aí. Não entendo vocês, americanos". Pode ter sido uma oportunidade única. A outra é de identificar quem finge apagar o fogo radical mas está jogando gasolina. São dois discursos básicos: justificação velada e reichstagging. No primeiro, condena-se a violência em si mas se "entende" por que alguém fez aquilo. No segundo, tenta se associar a ação violenta radical a outra ideologia qualquer, não àquelas que o FBI aponta como tendo marcadores de manipulação.
Eu não espero que você entenda que alguém vai, pelas costas da família, a um evento violento com um grupo que mal conhece. Menos ainda por que tem gente que se presta a justificar isso, manipular o evento e sapatear sobre a dor das vítimas, as famílias tratoradas pela radicalização. Eu também não entendo e nem pretendo entender, mas precisamos saber que existe, que convivemos com isso e precisamos nos proteger. Pelo sim, pelo não, voltei a falar da história da Lavagem Cerebral aqui em casa. Ninguém está livre de dormir com o terrorista mas, podendo evitar saber disso pela televisão, eu já fico bem aliviada.