Quando começou essa história de ter um ministro terrivelmente evangélico no STF, ensaiei minha candidatura. Não é necessário formação em Direito para a indicação, apenas "notável saber jurídico" e "reputação ilibada". São termos subjetivos, vai que cola?
Gostaria de dizer que pensei nisso pelo bem do Brasil, para retribuir ao meu país o que consegui conquistar, tentar melhorar a estrutura do Poder Público. Já fiz isso duas vezes, mas servindo como subalterna, na minha área de expertise, que é a Comunicação e a Cidadania Digital. Não vou mentir para vocês, a minha ideia agora não tem nada com isso.
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Estou velha, amarrar meu burro na sombra não seria nada mal. Avalie nessa situação, como ministra do STF. Trabalhei lá, sei que não teria dificuldades em me acostumar ao conforto e ao poder. Incômodo é essa cobrança de vocês. Mas, vá lá, na situação em que eu estaria, nem poderia reclamar da vida.
Apesar da tentação, fiquei com vergonha. Como faria isso? Distribuiria santinhos da minha candidatura nas motociatas? Faria um vídeo como candidata de Big Brother falando dos motivos para me colocarem na disputa? Infelizmente, sei exatamente o que meus pretensos futuros pares do STF pensariam desta tentativa. Por outro lado, desconfio que o presidente da República apoiaria minha candidatura terrivelmente evangélica e feminina.
Enquanto fiquei na dúvida moral, estratégica e social sobre lançar minha candidatura ao STF como se fosse uma candidatura ao Big Brother, acabaram passando a perna em mim. Uma advogada de Minas Gerais saiu na frente. Não só fez o vídeo como também complementou com um documento inédito na história do Judiciário brasileiro e, quiçá, mundial e intergalática: um pedido para ser ministra da Suprema Corte.
O portal jurídico Migalhas publicou o documento pedindo aos ministros do STF permissão para pleitear a vaga. Caí na besteira de ler, o que me trouxe à memória um dos piores pesadelos profissionais que já vivi, manual de atos oficiais do STF. Até então, eu só havia trabalhado em redação, não imaginava nada tão rígido. Nem a fonte que você usa pode escolher.
É chatice e burocracia sim, mas faz sentido. Se eu redijo um documento em nome da presidência da Suprema Corte de um país, ele tem de ter a cara da Suprema Corte e não a genialidade estilística do autor. Todos os documentos têm de parecer feitos pela mesma voz, pela mesma pessoa. E daí eu vi que nossa futura ministra errou o vocativo. Meu coração quase parou porque lembro bem quando fiz igualzinho.
Quando vi isso, já comecei a sentir que estou mais preparada para a vaga. Entretanto, já era tarde demais. Enquanto eu me perdia em devaneios, o presidente da República indicou o terrivelmente evangélico André Mendonça. Sinceramente, eu fico muito melhor de toga do que ele. Mas tudo bem, outras vagas virão ainda. Voltemos às justificativas da minha concorrente também derrotada nessa.
Eu tenho o mesmo problema de André Mendonça com a mídia, somos cristãos. A partir do momento em que você leva Jesus a sério, acabou qualquer chance de ser considerado ser humano pela maior parte dos formadores de opinião. Pode ser exatamente o frisson que o presidente da República pretende. Mas minha concorrente apresentou uma saída melhor. Declarou-se a favor do Estado Laico.
"Família de origem católica, no decorrer da vida compreendi que sirvo um DEUS IMPARÁVEL, SENHOR DE ISRAEL, e, como tal, Ele encontra-se presente em todas as religiões, em todos os povos, no coração de todos aqueles que compreendem que sem Ele, não há vida, não há motivos para estarmos aqui, porque não há existência sem o DEUS que eu sirvo. Diante do exposto, vivo em consonância com o Art 5º, inciso VI (que assegura a liberdade de crença entre os cidadãos), motivo pelo qual minha religião é Laica e o Deus que eu sirvo é o Rei dos Reis, Senhor do Exércitos", diz a advogada no documento aos ministros do STF. Quero só ver a ministra Damares Alves superar isso agora.
Verdade seja dita, a advogada alegou ter uma qualidade que nenhum ministro tem, a de ser a única pessoa do Brasil a concluir o curso de Direito em 2 anos e meio. Ressaltou isso várias vezes e se dispõe, inclusive, a enviar o histórico escolar para que seja possível conferir o feito. Ainda não tenho uma opinião sobre isso. Tenho muitos amigos formados em Direito em menos de 5 minutos na universidade do Twitter e do Facebook. Deus me livre de que eles possam decidir a vida de alguém um dia.
Este episódio da candidatura ao STF por meio de vídeo como de candidato ao Big Brother será anedótico até que, na próxima vaga, eu consiga emplacar meu nome pelo mesmo método. Minha concorrente também perdedora desta vez convidou o ministro Marco Aurélio para sua eventual posse. Eu obviamente já deixo o convite feito, será uma honra. O evento é um retrato da era da economia da atenção.
O Congresso Nacional tem hoje o que se apelidou nos bastidores de Bancada Hashtag. Trata-se de um grande conjunto de influencers eleito para cargos legislativos que, em vez de trabalhar nesse cargo, continua sendo influencer. Segundo os publicitários mais chegados à bancada governista, há uma exaustão com esse tipo social.
No entanto, a ideia de que as redes sociais e aparecer levam alguém ao poder continua viva e é verdadeira. As Big Techs não exercem poder apenas com a força de seus negócios, são chamadas já de Empresas-Estado porque estão modificando a sociedade.
As eleições sempre tiveram a dinâmica do carisma, aparecer faz de alguém bom candidato. Mas essa lógica já se entranhou nas funções jurídicas sem que nos déssemos conta. Fosse apenas no STF, vá lá, são onze e realmente têm indicação política. Ocorre que construímos uma dinâmica de poder no Ministério Público e Judiciário em que ser estrela conta mais do que ser bom de processo.
É possível ser as duas coisas ao mesmo tempo, uma não exclui a outra e é natural que exista mais interesse pela figura que tem bons resultados, ou seja, a estrela boa de processo. Ocorre que, na avaliação social, importa mais aparecer do que dar resultado. Se pensarmos nas exceções, sempre houve isso. Ocorre que nunca foi tão fácil aparecer.
Estamos a um ano das eleições e nem o Congresso nem o TSE compreenderam a importância das redes sociais e das Big Techs no exercício do poder. Ainda estão analisando conteúdo e derrubada de post quando falamos de modelos de negócio capazes de moldar também a nossa sociedade.
O caminho atual é dobrar a aposta. O clima tende a ser muito mais pesado que em 2018. As plataformas continuam com caminho aberto para fazer o que bem entendem e eximir-se da responsabilidade em criar uma lógica que valoriza só extremistas e justiceiros, dando a eles poder no mundo real. Dito isso, vou agora redigir o roteiro do meu vídeo de candidatura ao STF. Um dia, vamos escolher até isso assim.
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