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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

STF

É mais fácil Daniel e Alexandre fazerem as pazes do que brigarem pelos seus direitos

Tornozeleira eletrônica (Foto: )

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Acompanhando no feriado os últimos capítulos de A Usurpadora do noticiário político, vi o grande carnaval de torcidas organizadas que virou o Daniel Silveira gate. De um lado os defensores apaixonados do ministro Alexandre de Moraes, batendo palma por finalmente ter dado um recado, cana no cara. Do outro, os que choravam o destino de mais um valentão folgado, desta vez realmente injustiçado. Daí surge o maior mestre da política nacional em ganhar no caos: Jair Bolsonaro. Deu o xeque-mate na história.

Eu sei que é muito gostoso ver a política como se fosse um filme e pensar que nós estamos no time dessas personalidades. Sinto dizer que não. A casta de quem manda é um time e nós somos outro, a casta que obedece e paga a conta. É muito mais fácil Alexandre de Moraes e Daniel Silveira fazerem as pazes do que brigarem entre si por você ou por mim. Nada do que aconteceu ali é bom para o cidadão comum, muita coisa é boa para os poderosos. Para todos eles.

Vendo as reações diante do episódio eu lembrei de outro tão cômico quanto mas sem o componente trágico, o stand-up Equanimity de Dave Chapelle. Ali tem uma piada que traduz exatamente essa manipulação de emoções em que muitos são craques. O comediante conta que foi votar pela primeira vez nas eleições de 2008, em Barack Obama. Votou porque era o primeiro candidato negro viável e havia muitos negros na fila de votação.

Em 2016, ele foi votar de novo. Chegou de Porsche esperando ver os outros milionários de Ohio, onde vive, mas começou a ver caminhonete capenga e até trator levando gente direto do trabalho na zona rural até a cabine de votação. Dave Chapelle relata que ouvia as conversas das pessoas nas filas, majoritariamente eleitores orgulhosos de Donald Trump.

Principalmente os trabalhadores brancos, pobres e conservadores da região queriam melhoria econômica e respeito aos seus costumes e tradições. Chapelle é democrata e votaria em Hillary Clinton mesmo sem gostar dela. Estava frustrado até que ouviu o que esperavam os trumpistas: "ele vai para lá defender a gente, diferente do que houve até agora". Ria sozinho.

Para a platéia, disparou o que pensou. O Trump não iria defender o pessoal da fila todo sujo da lavoura de roupa ruim porque eles podem até ser conservadores, mas são pobres. "Ele vai é ME defender, eu é que sou rico igual a ele", afirmou o comediante, arrancando gargalhadas. E por que ele votou na oposição? E quem vocês acham que a família Clinton mais defende?

Foi no governo de Bill Clinton que, com um presidente do Banco Central vindo diretamente da Goldman Sachs, foram feitas regras que mudaram a vida do americano comum. Desde sempre, havia um limite de risco para os investimentos que os bancos faziam com algumas aplicações, por exemplo, a aposentadoria ou hipoteca. Foi o governo democrata de Clinton quem mudou isso e gerou a crise de 2008 em que um monte de gente perdeu a casa, mas o pessoal dos bancos não.

É preciso separar dinheiro de poder. Andam juntos, mas não são a mesma coisa. No caso dos Estados Unidos, o cidadão comum confiou que o discurso ideológico seria convertido em políticas de acordo com aquela ideologia. Clinton prometia menos benesses para as elites e Trump prometia resgatar os EUA do cidadão médio. Na área financeira, cada um olhou primeiro para os seus e depois para o resto.

Aqui estamos falando de poder. O Barão Acton nos deixou a frase: "O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente". Aqui estamos diante disso em todos os envolvidos no Daniel Silveira gate. Ele próprio, o Congresso, o STF e o presidente exacerbaram seus poderes. Todo mundo alega ótimas razões. Mas eles não estão tomando poder um do outro, estão tomando é da gente. Menos fígado e mais cérebro.

Daniel Silveira respondia a 60 processos disciplinares na polícia do Rio de Janeiro. Se eleito, ganharia foro privilegiado. O que aconteceria com os processos? Seriam suspensos, como foram. Ou seja, o eleitor do Rio de Janeiro já havia dado o recado na urna. Você pode ser um policial, infringir as regras, estar no meio de 60 - SESSENTA - julgamentos e nós vamos dar um indulto porque sim.

Quais as realizações de Daniel Silveira? Bom, ele ficou conhecido por rasgar uma placa de homenagem a Marielle logo após o assassinato em cima de um carro de som. O que eu faria com alguém que vandaliza uma homenagem a uma moça vítima de uma morte horrorosa? Mandaria um caminhão-pipa de água benta para ver se exorciza. O povo do Rio de Janeiro achou uma boa dar poder político.

Avalia com que espírito o nobre parlamentar inicia seu mandato. No primeiro mês , o deputado que era contra todo o comunismo do universo e se dizia de direita, entrou no trem da alegria da viagem paga à China. O falecido Olavo de Carvalho foi um crítico ferrenho da mamataria. Todo mundo já fez as pazes no poder, eles são um time só, nós é que somos o outro. Daniel Silveira resolveu xingar seus eleitores descontentes. Na época, fiz uma série em seis capítulos com os melhores xingamentos contra o próprio eleitorado. Esse povo hoje o defende:

O recado estava dado. Qual era o papel esperado do deputado? Causar e infringir regras. Foi justamente o que ele fez. O problema é que viver disso exige subir o tom cada vez mais. Em quatro anos de mandato, mesmo que ele seja bem criativo, não tem muito para onde ir. Acabou apelando até para ameaçar de morte ministro do Supremo Tribunal Federal. Ou é isso ou não se reelege e tchau aposentadoria paga por nós.

Esta avalanche de abuso de poder desaguou em outra, o inquérito que a imprensa chama de "Fake News" porque não leu. É um calhamaço de umas 15 mil páginas que, a esta altura do campeonato, já está virando um dos maiores Frankensteins da história da República. Claro que o deputado Daniel Silveira tinha de estar no meio da treta, é para isso que foi eleito. Ocorre que o STF entrou no modo Paola Bracho de reação e chegamos a um dos julgamentos mais bizarros que o país já viu.

O próprio ministro Alexandre de Moraes riu do nível rastaquera dos xingamentos e ameaças feitos pelo deputado. Não minimizo o poder de ameaças do tipo, senti na pele o que fazem na vida da sua família inteira. Muita gente ainda tem a ilusão de que os seguidores de um político teriam de ser instruídos diretamente por ele para matar alguém, por exemplo. Na verdade, quando foi comigo, é assim que a questão foi entendida. Por isso declaro meu voto em qualquer um que me nomear para o STF, quero ser mais igual que os outros.

Hoje, quando um líder político, social ou influencer chama para uma ação violenta, não chega apenas a quem vai obedecer o comando. Há uma série de pessoas perversas à espera de uma oportunidade, justificativa moral e grupo de apoio. Diante de um chamado de liderança, fazem o que já queriam fazer com qualquer pessoa, apenas usam aquele discurso como desculpa e para obter apoio.

A verdade é que, se o Ministério Público e o Judiciário tivessem sido menos displicentes com ameaças em enxame feitas contra cidadãos comuns desde 2013, ninguém teria chegado a ameaçar ministros do STF. Quando chegaram, a reação foi ainda mais problemática que a inércia, a personalização total de algo que deveria ser subjetivo.

O ministro Alexandre de Moraes foi vítima, relator, juiz, chacrete, porteiro, moça do cafezinho, operador de áudio, cameraman e tia da limpeza do julgamento. Ouvi a justificativa de que não tinha jeito, o deputado ameaçaria outro, ali é o único lugar onde ele pode ser julgado. Compreendo as tecnicalidades, mas é muito perigoso o precedente em que a vítima é o relator do julgamento do seu agressor. Quer dizer, tem um jeito: se deixarem que eu faça igual, já tenho uma lista dos réus aqui.

Para que se aceite a situação, é preciso ter um julgamento moral sobre os envolvidos, não sobre a justiça da regra aplicada. Se a pessoa confia no ministro Alexandre de Moraes e despreza Daniel Silveira, vai achar correto. Se a pessoa odeia o ministro e, vá lá, tolera o deputado, vai achar o fim do mundo. Esqueça os dois envolvidos, pense vinte anos adiante uma situação em que você pode ser julgado por alguém que foi prejudicado por você. Tem alguma chance de ser uma decisão justa?

O caso em questão não é Daniel Silveira nem Alexandre de Moraes. Amanhã eles estão de mãos dadas no parquinho feito Lula e Alckmin e a gente continua no andar de baixo. O problema gigantesco aqui é ter dado ao Judiciário a chance de não mais precisar declarar conflito de interesses. Todo juiz vai poder julgar causas em que ele é diretamente interessado se o foro estiver correto agora? Quais as implicações disso?

A outra questão é a das penas aplicadas. Vi um mundo de gente espalhando meme do ministro André Mendonça e dizendo que ele "traiu o movimento". Imaginar questões de adultos como se fossem o filme da Branca de Neve é uma delícia mas não leva a lugar nenhum. Não é porque Alexandre de Moraes está errado que Daniel Silveira está certo. Os dois abusaram de poder. Lembro de novo: quando eles abusam, estão tomando poder de quem? Não é um do outro, é de você.

Suponhamos que estejam julgando uma causa que te interessa, um dinheiro que você deve a alguém e acha que não tem de pagar coisa nenhuma porque a pessoa não fez como combinado. A pessoa não entregou o serviço e ainda teve o topete de entrar na justiça cobrando pagamento indevido. Você vai ter de contratar advogado e ir lá expor tudo o que foi combinado, o que não foi, como foi feito e acatar a decisão final da Justiça.

Teria outro jeito de resolver? Claro! Você começa a ameaçar de morte toda a família do juiz, manda uns caras na casa dele, diz que vai estuprar a filha dele, começa a incitar gente a ir no Forum bater no cara se ele te julgar. Daí, quem sabe, ele fica com medo e não te julga ou todo mundo vê como o processo é injusto. Qual a chance de você sair ileso de uma empreitada dessa? Zero. Por que o deputado deveria? Por que é autoridade? O poder absoluto corrompe absolutamente.

André Mendonça considerou que ele não pode coagir quem está adiante do processo dele. E não pode mesmo, ninguém pode, seja justo ou injusto o processo. O ministro julgou que ele teria sim de pagar por este crime e determinou uma pena razoável, de 2 anos de reclusão mais multas. Penas de até 4 anos são cumpridas em regime aberto. Uma pena de quase 9 anos para o deputado é realmente bem além dos níveis do Judiciário brasileiro.

Bom, mas o que fazer já que Daniel Silveira foi condenado a tantos anos num julgamento injusto? O mesmo que faz o cidadão comum quando isso acontece, recorrer às cortes internacionais. Aliás, ele tem muito mais condições de fazer isso. Como é amigo do presidente e dos filhos dele, não precisa. Já você, se for injustiçado, pode ser o mais bolsonarista do mundo, fica na mão de advogado.

Sabe as vítimas do médico Roger Abdelmassih? Tiveram de ir às cortes internacionais depois de injustiçadas pela Justiça Brasileira. Outros exemplos? A família de Marcia Barbosa de Souza, assassinada em 1998 pelo deputado Aércio Pereira de Lima. Sabe a Maria da Penha, da Lei Maria da Penha? Ela nunca conseguiu Justiça no Brasil. Teve de apelar a Cortes Internacionais.

Há uma fila de casos de cidadãos comuns presos injustamente. Quase todo dia tem reportagem na televisão mostrando um trabalhador que foi confundido numa foto e está há não sei quantos meses preso no lugar de um bandido. Você sabia que 41% dos presos brasileiros não foram julgados ainda em 2a instância? Tem milhares de pessoas presas sem julgamento, alguns até sem inquérito policial. Por que esses cidadãos merecem menos atenção que o deputado? Quem sabe é o presidente da República.

Há dois anos, fiz um longo artigo sobre a disparidade entre o tratamento VIP das autoridades delinquentes e o mundo cão do cidadão que tem qualquer problema com a Justiça. E isso inclui também quem nem problema tem mas é parecido com outro que teve. Entre os "parecidos", tinha um com outra cor de pele e 30 centímetros de diferença na altura que ficou inválido apanhando na prisão. Qual a chance de uma dessas pessoas receber a "graça" de um presidente brasileiro? Não vai. Só recebe de Deus.

Agora viveremos dias de uma gastança inútil de dinheiro público na discussão sobre o que fazer com o xeque-mate de Jair Bolsonaro. Ele atuou fazendo o que faz de melhor, que é dominar o noticiário. No caso que estava na crista da onda, tomou uma ação que aos olhos de muitos fez o justo prevalecer. Se enxergarmos só a dinâmica do povo do andar de cima, é isso mesmo. O problema é se a gente for do andar de baixo.

Vi muita gente comparando este indulto ao outro indulto dado ao trem da alegria do presidente Temer. São coisas diferentes. Uma é esse indulto coletivo que segue regras judiciais. Outra é uma herança da monarquia, o indulto que o governante dá a quem bem entender sem nem necessidade de explicar nada. É este que foi dado a Daniel Silveira e que, infelizmente, jamais seria dado a você ou a mim.

O resumo da ópera é que algumas coisas ficaram bem mais interessantes no Brasil. Ser amigo do presidente da República e da família dele. Ser ministro do STF. Ser deputado. Neste episódio vimos que as três funções agora têm mais liberdades e menos limites. E nós? Nós pagamos para eles terem tudo e ainda tem quem gaste tempo torcendo e defendendo o andar de cima. Questão de gosto.

Da minha parte, eu prefiro a indicação para o STF, que é vitalícia. Se não der, também ficar amiga da família de qualquer presidente está de pé. Depois muda o presidente e eu fico amiga de outra família. Vamos embora. Fora dessas alternativas, existiria um projeto de país e isso exige regras, limites e sacrifícios pessoais. Ninguém no poder parece disposto e ninguém fora dele parece querer cobrar.

O que eu digo aqui não é novidade, está nas sátiras de Juvenal, escritas na Roma do século II. "Sed quis custodiet ipsos Custodes?", Quem vigia os vigilantes?, indagava. Aqui, ninguém. A gente faz time e torce por um ou por outro vigilante. Também é de Juvenal a máxima de que o povo romano abriu mão de poder e liberdade para se dedicar aos prazeres corruptores, pão e circo. Veja como o brasileiro é comedido, não exigimos nem o pão.

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