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O maior desafio que o coronavírus impõe à humanidade é entender como vamos lidar com situações e sentimentos que parecem saídas de filmes. Enquanto nós, jornalistas, tentamos acompanhar como possível os números, o Brasil fala de vidas, de histórias, de amores, de laços, de inseguranças sobre o futuro. Números servem a humanidade, não o oposto.

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Não há opinião, polêmica, estatística, posicionamento político ou objetivo financeiro capazes de se sobrepor à condição humana. Somos, antes de tudo e acima de tudo, profundamente humanos.

Muita gente gosta do clichê "a única certeza que temos é a morte". Na verdade, há outra: o ritual de despedida daqueles que amamos, algo que tem muito pouca utilidade prática ou eficiência, mas serve à alma humana. É pelos diferentes rituais de velório, sepultamento e celebração religiosa que começamos a pacificar internamente o corte do vínculo e reafirmamos a importância da vida humana.

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O coronavírus trouxe uma nova realidade à humanidade, que a enfrenta pontualmente em tempos de guerra: a redução, mudança ou até impossibilidade de rituais fúnebres. Em pandemias, isso é vivido globalmente e afetará a forma como pensamos, priorizamos e valorizamos a experiência humana.

Marcio Santana tem 38 anos de idade. É professor e ganha a vida com o auge da festa: é diretor de carnaval da Dragões da Real, Escola de Samba do Grupo Especial do Carnaval paulistano. Ele acaba de enterrar a mãe, Maria de Lourdes da Silva, num funeral impensável até uma semana atrás, sem resultado conclusivo do teste e fez um relato como homenagem. Transcrevo.

Bom dia.

Me desculpem o relato tão longo, mas acredito que as pessoas podem se precaver e não precisam passar por tudo que eu e meus familiares e amigos passamos.

O passamento da minha mãe será uma forma de informação aos nossos. Creio que assim estarei prestando a devida homenagem que não pudemos fazer e uma forma de manter vivo tudo que ela me ensinou.

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Minha mãe faleceu com diagnóstico sugestivo de covid 19 (não tem testes rápido e pós morte não se conclui os testes que estão na fila para dar chance aos que ainda estão vivos). Ou seja, nunca saberemos a verdade e talvez ela nem entre nos frios números.

Foi internada bem, para dar início a um tratamento médico. Estava bem, sorridente e esperançosa quanto à sua cura. Não sabemos se contraiu no hospital ou se nós mesmos levamos pra ela durante as trocas de acompanhantes. Faço uma cronologia:

Quinta feira: minha mãe estava ótima, sorrindo, brincando.

Sexta feira: precisou de oxigênio, não parecia grave. Ainda na sexta-feira foi entubada.

Sábado: foi isolada ainda no setor de internação

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Nós que a acompanhamos fomos colocados em isolamento domiciliar.

Fui buscar os objetos pessoais dela e recebi um saco com os dizeres material contaminante.

No quarto onde ela estava, a porta estava tomada por avisos e os médicos todos paramentados.

Na tarde do sábado assisti à distância a transferência para a UTI. A maca foi inutilizada após o uso, os corredores onde passaram tiveram de ser higienizados e lavados, o quarto ficou inabitado.

Quando da entrega dos seus pertences não sei de onde, mas encontrei forças para agradecer a equipe de enfermeiros, uma vez que me parecia que eles estava tão assustados quanto eu, era o primeiro caso do setor.

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Domingo: Os médicos já anunciavam o grau de comprometimento dos pulmões e que deveríamos nos preparar e preparar nossos familiares e amigos.

Segunda-feira o telefone tocou logo cedinho, chegava ao fim .

Com a força que só minha mãe me dava, eu ouvi, agradeci e pedi à médica que transmitisse meu agradecimento e também minha mensagem de força a todos por conta do cenário de terror que eles estão enfrentando. É uma guerra de poucos soldados, como eu disse a ela.

No hospital, retirei a papelada. Fui informado que não poderia vestir ou sequer reconhecer o corpo, voltamos com a roupa escolhida dentro do carro. O procedimento adotado pelo necrotério do hospital foi o de colocar o corpo em um saco, higienizar e lacrar.

Também fui informado que teríamos apenas 10 minutos de velório, limitado a 10 pessoas com um caixão totalmente lacrado, uma vez que aquele saco lacrado seria colocado dentro do caixão.

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Ainda fomos proibidos de realizar um desejo dela que era ser sepultada junto a minha avó no Paraná, então decidimos de comum acordo com meu avô que faríamos a cremação e as cinzas serão depositadas no jazigo da família.

Para tal ação, era preciso pegar a assinatura de um segundo médico atestando o passamento. No retorno ao hospital me autorizaram a subir até a UTI onde ela estava internada para coletar a referida assinatura, os médicos não podiam descer.

Na UTI, pude testemunhar todos os equipamentos que ela usou no corredor, com avisos de equipamentos inutilizados, aguardando higienização/descontaminação enquanto a equipe de limpeza lavava até às paredes do quarto. Detalhe: sem máscaras, porque possivelmente não tinha pra todos.

Em casa, meus irmãos e sobrinhos aguardavam e se preparavam - assim como muitos amigos- para a habitual despedida. As mensagens chegavam às centenas no celular, outros ligavam. Outros ainda procuravam informações na residência da minha mãe, onde 27 anos de história foram resumidos a um cartaz escrito a mão com um pedido de oração.

Negar o direito de despedida dói tanto quanto dói a falta dos abraços de consolo.

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Com a assinatura, retornei ao ponto pra retirada do corpo, o agente funerário paramentado com 2 luvas, máscara, avental e principalmente temor no olhar, nos dizia: "é meu primeiro dia de trabalho".

Acompanhamos o corpo até o crematório na vila Alpina.

Lá, a última imagem associada da minha mãe foi apenas um caixão no fundo de um carro funerário.

E assim concluo o testemunho de quem perdeu um dos seus, um não, a Mais Importante da minha vida para uma pandemia que teimamos em renegar, politizar ou fazer dela números financeiros.

Me perguntem se hoje eu estou preocupado com contas ou patrimônio. Minha resposta seria: troco tudo pelo direito de me despedir dignamente da minha mãe.

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