Todos os dias me aparece alguém perguntando se eu já vi Round 6. Vi 15 minutos do primeiro episódio e desisti. O surpreendente é que a sugestão tinha sido do meu filho, de 10 anos. Vários amigos da escola estavam vendo e ele queria ver junto comigo. Não viu. Conseguimos manter a saúde mental do menino no meio de uma pandemia, não vou desgraçar tudo com uma série só porque é pop.
A série é para maiores de 16 anos. Todo mundo já deixou os filhos verem algo cuja classificação não deveria ser para a idade deles. Quando foi lançado "O Império do Sol" nos cinemas brasileiros eu tinha 11 anos e meu pai me levou. Era destinado a maiores de 14 anos. Você deve ter inúmeros exemplos parecidos. Ocorre que esse Round 6 é mesmo para maiores de 16 anos. Aliás, julgando pela maturidade média do brasileiro, para maiores de 40 em alguns casos.
Os menores de 16 anos acabarão tendo acesso a alguma parte da série de qualquer maneira. Um monte de gente posta trechos no Tik Tok. A ideia do enredo é muito boa para quem gosta de roteiros perturbadores. Brincadeiras tradicionais de criança são um desafio em que gente endividada pode botar a vida em ordem se ganhar. Mas quem perde é assassinado.
O que incomoda nem é o tanto de sangue e pedaço de corpo voando, mas normalizar a brutalidade e a lei do mais forte. Todo mundo conhece adulto que endoideceu em grupo de internet e ficou agressivo. Pessoas agradáveis transformam-se num furacão de palavrões, ofensas e desejos de violência e morte. Se adultos são influenciáveis, imagine as crianças.
No mundo todo já tem escola, autoridade educacional e governo avisando os pais que Round 6 é mesmo para maiores de 16 anos, conforme diz a classificação da Netflix. Crianças já estão copiando os desafios, que são brincadeiras comuns para a idade delas. Mas já há relatos de surras nas que perdem, a exemplo da série, que propõe o extermínio do perdedor, a desumanização do fraco. Ocorre que a série salvou as finanças da Netflix. Bem vindos à Economia da Atenção.
Se você me acompanha, sabe que eu sou totalmente contra retirar séries da plataforma. É uma obra de ficção, arte feita de acordo com a cultura pop coreana, um dos maiores fenômenos do nosso tempo. Preciso confessar que as críticas sobre filmes e séries da Coreia do Sul fizeram com que eu evitasse durante muito tempo qualquer produção de lá. Aparentemente, era uma crítica ao capitalismo por cena. Daí vi "Parasita", o filme que ganhou o Oscar, e achei engraçadíssimo.
Por aqui, o cineasta-sociólogo é praticamente obrigatório. Vemos alguns dos nossos grandes cineastas protagonizando as maiores baixarias em rede social e justificando com política. Não tem filme sem protesto, acho até que foi proibido. Nem sei mais se cinema ainda pode ser arte ou se agora é obrigatório tomar posição política e fazer análise sociológica. Quer dizer, brincar de fazer análise sociológica porque as teses são ruins e os filmes ficam chatíssimos.
É, no entanto, interessante que se enxergue apenas uma crítica ao capitalismo na produção pop do país que mais descobriu como capitalizar com cultura. O estilo musical K-pop e as novas produções cinematográficas pop coreanas são parte importantíssima do soft power do país, incentivadas pelo governo como estratégia para ganhar mercado. Funciona e a Netflix colhe esses frutos.
Você pode nem saber o que é K-pop mas com certeza ouviu, há 9 anos, o Gangnam Style, do Psy. Foi o primeiro vídeo musical a bater 1 bilhão de visualizações no YouTube e hoje tem mais de 4 bilhões. O K-pop é um fenômeno que gera paixões nos jovens não apenas pelas músicas e artistas, mas pela cultura sul-coreana. Quem tem filho adolescente sabe que eles são apaixonados pela culinária e pelo idioma, está na moda.
O governo sul-coreano investe oficialmente na indústria cultural em um filão bilionário chamado Hallyu. É uma onda cultural coreana que produz novelas, filmes, livros, jogos e roupas. Entre 2007 e 2017, a Coreia do Sul passou de 30o para 6o maior mercado musical do mundo. Junto com os ídolos musicais existe todo um programa governamental orientado para capitalizar sobre a cultura.
O maior IPO da história coreana é na indústria cultural. A gravadora do grupo mais adorado do momento, o BTS, levantou US$ 840 milhões na abertura de capital na bolsa de Seoul. Em 2019, o governo da Coreia do Sul fez um fundo de US$ 6,4 bilhões para fomentar a cultura pop e estimular o consumo afetivo. A ideia começou em 2005, com US$ 1 bilhão. Funciona.
O BTS sozinho injeta, direta e indiretamente, US$ 3,7 bilhões por ano na economia sul-coreana. Se você não faz parte desse fenômeno de consumo, identificação social e afetividade, provavelmente terá a mesma reação que eu tive ao ver Round 6. Crianças e adolescentes não, eles já estão moldados a identificar-se afetivamente com obras que venham do país. O número de brasileiros visitando a Coreia do Sul, por exemplo, quintuplicou nos últimos 20 anos.
Os grupos de K-pop são formados de maneira estratégica para atrair a ligação afetiva, com artistas treinados desde crianças no ofício mas que também têm identidades sociais diferentes. Um é o estudioso, o outro é o que não para de dançar, o outro gosta de atuar em filmes, tem o mais tímido, enfim, o que for preciso para gerar identidade. Cirurgias plásticas também estão no cardápio do impulsionamento de consumo afetivo.
A lógica do consumo afetivo é a lógica das redes sociais, que manipulam nossos sentimentos para garantir mais tempo de uso da plataforma. Netflix é uma rede social e conseguiu embarcar no fenômeno mais estruturado de consumo cultural social do mundo, o Hallyu. Os fãs consumirão de qualquer jeito e gerarão um "buzz" social que levará outros a consumir para não ficar fora da onda do momento. Em agosto, a Netflix estava no vermelho. Após Round 6 bateu todas as concorrentes.
Durante a pandemia surgiram muitas plataformas de streaming e a Netflix vinha perdendo fôlego. As pessoas estão com menos dinheiro em tudo quanto é canto, assinar todas as plataformas não é viável para a grande maioria. Muitos foram conferir o que havia em Disney +, Amazon Prime Video, HBO Max, Apple TV+, Paramount + e Peacock. Natural o consumidor querer conferir novidades, o que esmagou as ações da Netflix.
Após Round 6, a empresa fez uma reviravolta completa. Cresceu mais do que todas as concorrentes e, no mundo das Big Tech, só não teve mais valorização de ações do que o Google. As ações subiram 17%, batendo Facebook, Apple e Amazon. O relatório do terceiro trimestre ainda não foi feito, mas a expectativa dos analistas é de que a série sul-coreana tenha salvado a Netflix.
Antes no vermelho, espera-se que a receita líquida da Netflix tenha agora alta de 42% com relação ao terceiro trimestre do ano passado, subindo para US$ 1,2 bilhão. A empresa esperava adicionar US$ 900 milhões em seu valor de mercado com a série. Até agora, já adicionou US$ 19 bilhões. Uma reviravolta dessas com uma série que, segundo boa parte dos críticos, critica o capitalismo. Não sei se critica porque, como disse no primeiro parágrafo, não vi. Mas o impacto da produção sul-coreana no mundo real é uma lição de capitalismo.
A lógica da Economia da Atenção, em que o dinheiro vai para o que engaja, é a base da construção da indústria Hallyu. O pop sul-coreano avança sobre outros países mexendo com emoções, criando identidade social e chamando a atenção. É a fórmula perfeita para um match com os algoritmos de redes sociais. A série já é a mais assistida no mundo todo e também é uma das que retêm usuários por mais tempo na história da plataforma.
Nossa lição de casa é aprender a viver na Economia da Atenção e em redes, da mesma forma que já fez o governo da Coreia do Sul. Grupos de redes sociais e suas representações culturais são forças poderosas que subestimamos porque não nascemos no mundo digitalizado. Talvez por isso muitos pais não vejam problemas em deixar crianças ver Round 6, tem filme e game mais violento.
Analisar o conteúdo é fácil. Alguns pais não verão problema e eu vi muitíssimos. Confesso que só depois percebi a influência gigantesca do contexto. Adolescentes e crianças têm contato o tempo todo com K-pop, não consomem esses produtos como obras de que gostam ou não, mas como um fandom. São fãs e querem aprender a fazer as mesmas comidas, falar o idioma, comportar-se como os ídolos. Nesse contexto, Round 6 é algo ainda mais pesado para personalidades em formação.
Moraes eleva confusão de papéis ao ápice em investigação sobre suposto golpe
Indiciamento de Bolsonaro é novo teste para a democracia
Países da Europa estão se preparando para lidar com eventual avanço de Putin sobre o continente
Ataque de Israel em Beirute deixa ao menos 11 mortos; líder do Hezbollah era alvo
Triângulo Mineiro investe na prospecção de talentos para impulsionar polo de inovação
Investimentos no Vale do Lítio estimulam economia da região mais pobre de Minas Gerais
Conheça o município paranaense que impulsiona a produção de mel no Brasil
Decisões de Toffoli sobre Odebrecht duram meses sem previsão de julgamento no STF