Imagem ilustrativa.| Foto: Evaristo Sá/AFP
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Outro dia me disseram que o Brasil é uma grávida bêbada fumando de madrugada num posto de gasolina. Talvez seja uma figura exagerada. Ou, talvez, para ser mais fiel, seria um grupo de grávidas bêbadas fumando numa piscina de gasolina enquanto os transeuntes ignoram a cena. Dia 23 de março de 2021 foi uma data para entrar na história. Meu mestre Joseval Peixoto costumava orgulhar-se diariamente de viver uma página da história. A de ontem, sinceramente, eu prefiro dizer um dia aos meus potenciais netos e bisnetos, que não me lembro.

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O Brasil tem 3% da população do mundo e, ontem, teve 30% dos mortos por COVID no mundo. Foi o mesmo dia em que se abre uma fila de transplantes para pessoas que tomaram o remédio inócuo contra COVID propagandeado pelo governo e apoiadores. Daí, o presidente vai à televisão fingir que nunca fez nada do que fez, mente, e um pessoal diz que ele mudou. Cereja do bolo: o julgamento do STF sobre a Lava Jato. Isso já dá uma temporada inteira de House of Cards, impossível digerir num único dia.

Eu trabalhava no Supremo Tribunal Federal quando explodiu o escândalo do Mensalão, em julho de 2008. Havia passado 12 anos na imprensa como repórter e apresentadora. Na verdade, mais como trouxa do que como esses dois ofícios paralelos. Bastaram 2 meses de STF para que eu me arrependesse amargamente de todas as entrevistas que já havia feito com promotores públicos e procuradores. Sem dúvida, foram todos eles muito mais espertos que eu. Meu compromisso com o público foi maculado pelo meu trouxismo.

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Se tudo o que a acusação fala à imprensa realmente estivesse no processo, o Brasil já estaria dando lições de honestidade à Noruega. Houve casos no Mensalão em que a "prova" apresentada pelo Ministério Público era um conjunto de entrevistas dadas pelo próprio MP. Não custa lembrar: salário inicial de R$ 30 mil, fora auxílios, estabilidade vitalícia e aposentadoria integral. Como recordar é viver, gostaria de lembrar dos nobres colegas jornalistas que elevaram o então ministro Joaquim Barbosa à categoria de herói. Era o Batman do STF, lembram-se?

Como o ministro Joaquim Barbosa chegou ao altar do heroísmo? Pela vocação populista do brasileiro. Precisamos de heróis e a imprensa nos abastece com isso. Quer dizer, com heróis humanos, que irão do céu ao inferno em questão de meses. O ministro inventou a tese do "domínio do fato", segundo a qual o certas coisas não poderiam ser feitas pelos subordinados sem conhecimento do chefe. No caso, a chefia ia só até José Dirceu, jamais chegou em Lula. Eu nunca entendi os motivos mas, à época, era pecado mortal questionar o Batman do STF diante da imprensa. Roberto Jefferson me aconselhava não ficar entre o magistrado e os aplausos que gostava de receber quando chegava em bares do Rio de Janeiro. Eram a grande prioridade daquela atuação. Foi sabedoria ouvi-lo.

O atual decano, ministro Marco Aurélio Mello, acostumado a ser voz dissonante, fazia questão de deixar a marca em todos os julgamentos do Mensalão. Questionava sempre se o ministro Joaquim Barbosa, relator da Ação Penal 470, iria mandar a bola para o gol em posição de impedimento mesmo. E mandava. A imprensa vibrava, o país celebrava seu Batman. E, dois anos depois, todo mundo era solto. Se o processo tem ponta solta, réu rico não fica preso. Lá para 2015, bati aposta que a Lava Jato teria o mesmo fim. Não cobramos mudança do Ministério Público, dos políticos nem do STF. Nos contentamos com um novo escândalo e as mesmas posturas diante dele.

Temos a estranha mania de perdoar à força quem não quer ser perdoado e de enxergar mudança em coisas que continuam exatamente iguais. Durante os dois anos em que trabalhei no STF, muitas decisões me revoltavam. Meu querido professor Eros Grau, mestre e confidente, lapidava minha ingenuidade com altas doses de realidade. Dizia que minha revolta tinha origem numa visão ingênua da Justiça brasileira: eu acreditava que ela servia para fazer justiça, mas ela serve para manter a ordem econômica. E, nesse sentindo, funciona perfeitamente.

O ministro Eros Grau era professor de Direito Comercial da USP, no Largo São Francisco. Essa visão que ele me ensinou sobre o sistema de Justiça realmente mudou minha forma de ver as coisas e o que esperar de cada processo. No Mensalão, eu tive esperança de uma faxina moral porque tinha uma visão diferente do que era a Justiça. Na minha cabeça, Ministério Público e Poder Judiciário serviam para entregar justiça ao povo brasileiro. Ocorre que o desenho do sistema é para manter a ordem econômica. E ele funciona perfeitamente. Ao final de qualquer hecatombe, quem tem privilégios continuará com eles e quem paga a conta continuará pagando. Simples assim.

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O Poder Judiciário e o Ministério Público ordenam as coisas dentro do sistema que temos, não o alteram. São instituições vocacionadas a manter a ordem, não a subvertê-la. E qual é a ordem? Uma imensa massa de cidadãos comuns ralando diariamente para pagar os privilégios nababescos de uma pequena parcela de funcionários do Estado e seus cupinchas na elite econômica. A mudança não virá por meio de nenhum processo judicial. Esperar isso e acreditar nisso é manter as coisas como estão. Sinceramente, só mesmo a grávida fumando no posto de gasolina acreditaria ser possível um sucesso da Lava Jato depois do fiasco do mensalão. Nós somos a grávida.

Pouco importa qual filigrana jurídica será usada para explicar o empastelamento de mais uma operação contra um castelo de corrupção. É o sistema que nós admitimos e pelo qual pagamos. Pense comigo: mudou algo no STF após o fim do Mensalão? Mudou algo no Ministério Público ou para os envolvidos na acusação do Mensalão após o fiasco? Mudou algo para os políticos que participaram do primeiro governo Lula, em que houve o mensalão? Não. Os três presidentes da República seguintes, aliás, fizeram parte desse governo. Não vejo maior endosso possível ao conjunto da obra.

Teremos uma próxima Lava Jato-Mensalão, mais uma montanha parindo ratos. E ela começa a ser gestada agora, com a nossa reação infantil ao que aconteceu ontem no STF. Qualquer que seja sua revolta com a corte, ela não é dissociada de funcionários públicos privilegiadíssimos que você paga e não cobra. São 7 anos de gente ganhando salários mais benefícios na base de R$ 70 mil num país de miseráveis. Esse pessoal deu entrevista até não poder mais, fez um verdadeiro departamento artístico do Ministério Público. E entregou o trabalho com brecha? Ficou de trelelê e contação de vantagem no zap comprometendo o trabalho? Avalia se você dá uma dessa com seu chefe.

Ocorre que os chefes deles somos nós, que passamos a mão na cabeça porque temos alma populista. Se achamos um alvo para odiar, isso nos basta. Voltaremos a ser trouxas outro dia, não tiraremos uma vírgula de benefício de quem não entregou o mínimo diante do salário nababesco. Vamos escolher um só para despejar toda a culpa e aí fingimos que funciona. Einstein definia a loucura como fazer duas vezes a mesma coisa esperando resultados diferentes. Eu não sou Einstein, não estou aqui para julgar.

Nosso grande defeito como povo é a paixão por xaveco. Não exigimos atitudes. Falou bonito? Ah, nossa, ele está mudado, agora será diferente. Se isso funciona para político, que precisa passar pelo crivo popular a cada quatro anos, imaginem para MP e Judiciário. O pronunciamento do presidente Bolsonaro no dia de ontem é sintomático. Ele entende o que todos os poderosos entenderam: vamos resmungar, mas é só contar uma história que topamos tudo de novo. E não está errado, somos trouxas mesmo.

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O colega vaticanista Filipe Domingues trouxe hoje a notícia de que o Papa Francisco cortou os salários dos cardeais do Vaticano durante a pandemia. No Brasil, empresas cortaram salários, demitiram pessoas. Nós, cidadãos, ajustamos preço de tudo, nos abrimos a compreender a dificuldade uns dos outros. E o Olimpo? Promotores e Procuradores da União conseguiram que a gente pague o plano de saúde deles, por exemplo. Já já servirá para Defensores e Juízes. E por que não fariam? Elegemos nas prefeituras outro dia gente que não abriu mão de nenhum privilégio.

Após o discurso de ontem, em que não imitou gente sufocando em UTI, não debochou de família enlutada e nem promoveu curandeirismo, muita gente diz que o presidente Bolsonaro "mudou". Repito o versículo de Paulo - não o Guedes, o apóstolo - preferido na campanha: "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará". O presidente mentiu sobre o que fez, não reconheceu erros, não se arrependeu, não pediu perdão nem disse que vai mudar. Temos mania de perdoar à força quem não quer ser perdoado, só quer continuar fazendo o que acha certo.

Há uma parcela que faz questão de enxergar mudança por ser bolsonarista envergonhado. Diante dos arroubos de crueldade e deboche do presidente, melhor não ficar com essa fama. Às vezes cola, deixemos cada um cuidar da própria vida. O fato é que o discurso do presidente Bolsonaro mostra que nem o STF nem o Ministério Público têm a menor chance de mudar. E isso tem um motivo: nós não mudamos. O povo pode mudar por vontade, quem está no poder só muda obrigado.

A prioridade do brasileiro é não criar problema com amigo, dizer que todo mundo do seu grupo é 100% bom e atribuir 100% de maldade aos adversários. Sorte de quem consegue um naco de poder, não precisa nunca mais largar o osso. Diante de qualquer novo discurso, novo herói, nova operação ou novo escândalo, estamos nós lá, deslumbrados, eletrizados. Por que não cobramos atitudes? Como podem os mais abastados funcionários da República ter aumento de benefícios durante uma pandemia que está nos reduzindo a frangalhos? Onde está o espírito público?

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Talvez a mudança mais urgente e mais radical que temos de fazer como povo seja interna, individual e coletiva. Ninguém virá nos salvar. Não há um salvador do Brasil, mas pessoas que nos governam de acordo com o que toleramos. Fazer a mesma coisa duas vezes não traz resultados diferentes. A primeira qualidade para servir o público é ter espírito público. Não se pode dar poder a quem não tem empatia nem respeito pelos valores humanos. O inimigo do meu inimigo não é meu amigo. Seres humanos mudam e não são perfeitos.

Sei que proponho algo chatérrimo. Deixaríamos de ser essa pátria em formato de Programa do Ratinho para ser o "Seguindo a Ópera", do queridíssimo Walter Neiva, na Rádio Cultura FM de São Paulo. O homem público tem de ser como o Walter Neiva. As emoções estão na ópera, no incontrolável, no drama humano, no inesperado, no destino. O Walter Neiva as respeita, ordena, explica, categoriza, nos ajuda a entender e decidir aquilo que gostamos ou não e por quê. Obviamente, também assisto revelação de DNA no Ratinho. Mas querer que o governo seja daquele jeito, como temos demonstrado, já acho um pouco demais. Mas, enfim, talvez seja resquício da linha dura no colégio de freiras.