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Há mais de década acompanho à distância a história de Eliana Zagui. Aposto que, a partir de hoje, se você ainda não acompanhava, vai acompanhar também. E não é apenas porque ela merece, é porque a gente merece. Vivemos tempos estranhos, uma apoteose da superficialidade. Ela não. É alguém que todos os dias abraça a dádiva de ter recebido o dom da vida, o sagrado dentro de cada um de nós.
Na primeira vez em que me contaram essa história, achei que era mentira. Vivíamos a era anterior às redes sociais, eu era repórter de rua. O que já parecia inimaginável antes de saber os detalhes acabou virando uma obsessão. Eliana e Paulinho dividiam há mais de 40 anos um quarto de UTI no Hospital das Clínicas, em, São Paulo. Eram as últimas vítimas da pólio no Brasil. Paulinho morreu ano passado, deixando como frase "viver vale muito a pena".
No início, vi como uma história absurdamente triste. Depois, passei a ver como exemplo de superação. Hoje confesso que tenho inveja da clareza com que a Eliana Zagui vê e vive a sacralidade da vida. Ela tem uma deficiência física muito complicada. Precisa de ajuda prática e creio que todos vamos contribuir. A história dela é uma chama que ilumina os cantos escuros da dúvida, do cinismo e do medo nas nossas almas.
Eliana é 4 anos mais velha que eu e isso fez toda a diferença no destino das crianças que nasceram em 1974 e 1978, era o início da sistematização da vacinação contra pólio no Brasil, um exemplo mundial. Quando eu nasci, o sistema já funcionava. Quando ela nasceu, ainda pairavam algumas dúvidas. Ela não foi vacinada. Contraiu o vírus, desenvolveu a versão mais grave da doença e perdeu todos os movimentos do pescoço para baixo aos 2 anos de idade.
É, no Brasil, a última sobrevivente do "pulmão de aço", máquina que movimentava os músculos do tórax para que a respiração de vítimas da pólio não parasse, evitando a morte por sufocamento. Quem me acompanha sabe que tenho o orgulho de ter feito parte da equipe que erradicou a pólio em Angola. Víamos o "pulmão de aço" como última chance de preservação da vida. Mas veja a foto abaixo. Viver assim é vida? A Eliana é prova de que toda vida é um dom sagrado.
Se a história da Eliana Zagui fosse ficção, a gente diria que é impossível. Natural, a gente mede o mundo pelo que imagina ser a capacidade humana, não pela capacidade infinita da chama da vida que temos em nós. Nos 43 anos em que ficou internada, ela não ficou fechada num quarto, ganhou o mundo. Escreveu livro, deu entrevista no Jô, fez amigos, tem peça de teatro sobre ela, pinta quadros, fez exposição, tem uma letra melhor que a minha e escreve com a boca. Ainda por cima é piadista.
Poucos anos atrás, soube que Eliana conseguiu realizar seu grande sonho, ter uma casa de verdade. Ela não queria passar toda a vida num quarto branco com vista para a copa de uma árvore, queria uma casa, viu o mundo pelas janelas do computador. Não pense que uma alma caridosa a socorreu. A vida é muito mais bonita do que isso.
Eliana Zagui meteu-se a ajudar os outros. Como assim? A deficiência dela a gente vê, de muitas pessoas a gente não vê, são as chagas da alma. Isso ela sabe bem como curar. Há uns 20 anos, virou voluntária em um serviço de apoio emocional por telefone. Ela é danada de boa em relacionamentos humanos, consegue mostrar a Graça do dom da vida a quem não enxerga mais essa bênção.
Foi nesse trabalho voluntário que Eliana Zagui conheceu Lucas Negrini, morador de Sumaré, interior de São Paulo.“Teve um ano que enfrentei uma grande crise. Tinha duas empresas do ramo de informática que faliram. Pensei que não havia saída. Eu pensava em dar fim a minha vida. Eliana me ajudou via Skype todas as noites. Esperava eu dormir, para eu não fazer bobagem e orava para Deus dar uma solução. Assim ela me salvou.”, ele conta. Não é só você. Lendo isso, também tenho vergonha dos dramas que crio e das presepadas que faço.
A família de Eliana é muito carente. Em mais de 40 anos de internação no HC de São Paulo, recebeu poucas visitas de familiares. Ela adotou Paulinho como irmão e montou uma família de médicos, socorristas, enfermeiros e voluntários que passaram pelo hospital. Move só a cabeça, mas ama arte. Aprendeu a pintar, escrever e usar o celular com a boca. Quer passar raiva comigo? Compare suas pinturas e sua letra com o que ela faz nesse vídeo. Como é possível, Senhor?
Ainda tem mais coisa nessa história, algo completamente improvável num mundo regido por cinismo e levar vantagem em tudo. Lucas resolveu realizar o sonho da amiga Eliana. Abriu mão de tudo, parou a vida. Tem gente que não faz isso por filho, mas o rapaz fez. Parou tudo para cuidar da amiga, fez até curso de socorrista porque não são cuidados simples. O plano dos dois foi tão sofisticado que o Hospital das Clínicas de São Paulo aprovou a mudança em 2019.
Veio a pandemia. Lucas faz bicos como cabeleireiro. Avalie como as coisas andaram. Sabe quanto nós pagamos de pensão a Eliana Zagui, última sobrevivente da pólio no Brasil? Um salário mínimo. UM SALÁRIO MÍNIMO. Eles vivem disso. Eu queria comentar, mas leio diariamente a coluna do Lucio Vaz aqui na Gazeta do Povo. Somente este mês, nós gastamos mais com compra de Toyota Corolla para o Judiciário do Piauí do que com toda a pensão que Eliana Zagui receberá em vida. Não consigo comentar.
Ela já conseguiu o mais difícil, que é tocar corações humanos e convencer pessoas a fazer o que deve ser feito, não o que é conveniente. Falta o que a maioria de nós tem em casa, um pouco de dinheiro para contribuir com este sonho. A casa em que Eliana vive tem amor e todos os cuidados, mas infelizmente ainda não é adaptada para ela. Tem uma casa adaptada custa R$ 350 mil.
Uma multidão de brasileiros já contribuiu com mais de R$ 55 mil, muitos em doações anônimas. Num tempo em que desconfiamos da bondade e da natureza do ser humano, ganhamos provas de que o bem não é oposto ao mal, é superior. Se você puder e quiser, há como ajudar a Eliana a continuar sendo uma inspiração. Por este link, as doações chegam a ela.
Eliana Zagui não precisa só de tintas e telas para nos inspirar, infelizmente. A vida dela também depende de sondas de aspiração, luvas, cânulas metálicas, remédios e aluguel de ambulância para consulta. Se você é empresário ou político e tem ideias de como resolver essa situação de maneira mais rápida e efetiva, sou toda ouvidos (mande uma mensagem no Fale Conosco e peça para encaminhar a mim). Caso sinta que deve fazer uma doação, o pix dela está na imagem abaixo.
Sei que este tipo de artigo não é o que engaja nem faz sucesso na era da Apoteose da Superficialidade e do Tretismo. Não viveremos eternamente neste pesadelo da briga de adolescentes más. Agradeço à Gazeta do Povo por concordar com a publicação deste artigo. Se puder tocar um único coração, já me considero vitoriosa. O exemplo de Eliana Zagui é sólido, que possa nos guiar a caminhos mais generosos.