| Foto: Josh Edelson / AFP
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Lembra quando, no ano passado, o Facebook tirou do ar milhares de perfis, inclusive brasileiros, dizendo que eles estavam fazendo atividade ilegal na plataforma? Pois bem, faltou contar o resto da história. Agora apareceu quem conte, uma ex-funcionária da plataforma e a equipe de jornalismo investigativo do jornal britânico Guardian.

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A delatora é Sophie Zang, cientista de dados que trabalhava justamente no departamento que o Facebook criou para investigar internamente manipulação política. Eles investigavam? Sim. O problema é que deixaram muita coisa seguir como estava, inclusive no Brasil. Se você pensa que foi por ideologia, aposto que é do time que está no cheque especial. É por dinheiro mesmo. Não se dá a país pobre atenção igual à dada a país rico, simples assim.

"Nos três anos que passei no Facebook, descobri várias tentativas flagrantes de governos estrangeiros de abusar de nossa plataforma em grande escala para enganar seus próprios cidadãos", confessou Sophia Zang num texto gigantesco após a demissão. Ela disse ter consciência de que tem "sangue nas mãos". O Facebook não comentou o assunto, mas o Guardian foi atrás das denúncias específicas. E, surpresa, conferem com a realidade.

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Vamos começar do começo. Quais são os tais "comportamentos ilegais" que o departamento interno do Facebook monitorava? Não tem nada a ver com legalidade, é o que obedecia ou não um critério específico, o de falso engajamento. É algo largamente conhecido a criação de perfis falsos, que podem ser operados por pessoas ou robôs, para dar a impressão de que há maioria contra ou a favor de um produto, uma pessoa, uma ideia.

Um perfil robô pode ser aquela coisa mal e porcamente feita, sem foto e com o nome cheio de números. Aqui, aliás, esse mesmo já funciona na maior parte dos casos. Mas tem quem não seja tão esculhambado e faça perfis falsos robotizados que realmente simulam o comportamento humano. É uma pessoa que vai falar dos filhos, das férias, postar fotos, interagir com você. Só que ela não existe, é uma programação de postagens por inteligência artificial.

Como você manipula a opinião pública usando Facebook? Funciona melhor em ditaduras do que em democracias. Redes sociais são a única forma de receber informações não filtradas pelo governo em ditaduras. Então é aí mesmo que a manipulação acontece. Saiu algo contra o ditador? Comentários em massa xingando a pessoa, ameaçando a família, enfim, o combo-chiqueiro-moral. Saiu algo a favor do ditador? Aparece uma tonelada de elogio. Para quem sabe das falcatruas, normal. Quem não sabe acha que isso é realidade.

Além de criar uma falsa realidade para quem já tem relevância, a atividade dos robôs ou das redes de fake se destina a dar a impressão de relevância para quem não tem. É o movimento dos sem-biografia ou a escadinha de fazer jabuti subir em árvore. Se algo tem muita interação, passa a ser mais exposto pelo algoritmo do Facebook, entra no mapa. Algo que seria dito só para meia dúzia de malucos, com essas ferramentas, ganha alcance global.

Realmente, em 2018, foram tomadas providências para impedir a criação de falsas realidades, monitorando a rede e desativando as operações. "Acabamos removendo 10,5 milhões de reações e fãs falso de políticos de destaque no Brasil e nos Estados Unidos nas eleições de 2018 - políticos importantes de todas as convicções no Brasil e uma série de políticos de baixo escalão nos Estados Unidos", disse Sophie Zang no memorando.

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Mas qual é o "sangue nas mãos" que a ex-funcionária do Facebook diz ter? A inversão de prioridades. A plataforma sabia quais casos de manipulação teriam os efeitos mais graves e urgentes. Escolhia agir em quais? Naqueles que davam problema na mídia dos países de primeiro mundo. O caso mais gritante é o do Azerbaijão, que foi levantado ponto a ponto pela reportagem do Guardian. Demora para agir: 426 dias.

Países ricos que estão de olho na regulamentação das plataformas, como Estados Unidos, tigres asiáticos e Europa, são atendidos na hora. América Latina e ex-repúblicas soviéticas são atendidas rapidamente se a atividade de manipulação tiver reação com os países ricos. Se não tiver? Aparentemente, se deixa rolar. Ou também pode ser maldade minha e esses gráficos abaixo, feitos pelo Guardian com base na denúncia da ex-funcionária, são a mais pura coincidência.

Todo político diz que só o outro usa manipulação de internet. O golpe está aí, cai quem quer. Tem gente que sai xingando até parente para defender político. Ser trouxa é um direito universal do ser humano que muitos exercem com o maior orgulho. O fato é que todos, em algum grau, usam manipulação das redes. Teve, no entanto, um recordista. Apresento a vocês o presidente de Honduras.

"O exemplo mais flagrante foi Juan Orlando Hernández, o presidente de Honduras, que em agosto de 2018 estava recebendo 90% de todo o engajamento cívico falso conhecido no pequeno país centro-americano. Em agosto de 2018, Zhang descobriu evidências de que a equipe de Hernández estava diretamente envolvida na campanha para impulsionar o conteúdo de sua página com centenas de milhares de curtidas falsas. Um dos administradores da página oficial de Hernández no Facebook também administrava centenas de outras páginas que foram configuradas para se parecerem com perfis de usuário. O funcionário usou as páginas fictícias para entregar curtidas falsas nas postagens de Hernández, o equivalente digital de se reunir com uma multidão falsa para um discurso", diz a reportagem do Guardian.

Estão curiosos para saber o que foi feito com o político que usava 90% dos fakes políticos do seu país, fazia isso de dentro do gabinete e até o assessor que comandava o esquema foi identificado? Ficou mais de um ano fazendo isso impunemente. Aparentemente, depois que derrubaram a rede, fez outra. Repare que você não achará comentários sobre a condenação do irmão dele à prisão perpétua nos Estados Unidos por tráfico de drogas, agora em março. Honduras é hoje uma narco-ditadura.

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Há um outro caso sensacional que foi delatado, sobre a Índia. A plataforma do Facebook começou a derrubar o que considera discurso de ódio e xenofobia. Isso inclui, na prática, charges, piadas, fotos de mamilos e culinária local. Dependendo da sua paixão por sarapatel, por exemplo, desconfio que pode ser taxado até de terrorismo. Se você for um cidadão comum, claro.

Um político aliado ao primeiro-ministro Nahendra Modi começou a fazer campanha com postagens contra muçulmanos. Modi é craque em mídias sociais e queridinho do Facebook. Como já teve muito linchamento público na Índia por causa dessas tretas, a equipe de segurança resolveu fazer com os posts do político o mesmo que fazia com os demais: banir. O Wall Street Journal publicou depois que o time local foi obrigado a abrir uma exceção para aquele político específico.

O caso do Azerbaijão, investigado pelo Guardian, é sem dúvida o mais complexo. O país vive uma ditadura cruel, no estilo de todas as ex-repúblicas soviéticas e é uma potência do petróleo. Já vive no meio de todo o jogo de manipulação russa e está em guerra com a Armênia. Nesse contexto, o Facebook virou a única saída da cidadania e também o inferno na terra para quem vira alvo da ditadura. A tática é criar perfis falsos para denunciar quem falar mal do ditador. Já teve jornalista preso com base nisso.

Por um lado, é pela internet que a resistência contra a ditadura se organiza, usando o Facebook. Somente pelo Facebook é possível trocar informações, organizar manifestações, falar com as pessoas sobre o tema livremente. Houve, num primeiro momento, uma espécie de libertação dos povos que tinham a imprensa aprisionada por governos autoritários. Só que o governo autoritário é sempre muito eficiente em achar jeitos de controlar as pessoas. O Azerbaijão achou o Facebook.

Com uma "fazenda" de perfis falsos, a tática é a tradicional russa de separar a ovelha do rebanho. Mira-se em um inimigo do governo de cada vez, assim evita a solidariedade de grupo, como acontece quando você cria uma lista de desafetos. A pessoa é incessantemente difamada, xingada, ameçada e denunciada ao Facebook. São milhares de contas falsas contra uma única pessoa. Não adianta denunciar, nada é feito. O jeito é bloquear. Às vezes, a movimentação termina em prisão ou morte do alvo.

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Mas vamos aqui ao que interessa: você conhece o Azerbaijão? Sinceramente, se uma Big Tech fizer algo muito terrível em Baku, você vai levantar hashtag? Vai compartilhar a notícia? Não é como se fizessem no nosso país ou em um país rico. Então, dane-se o Azerbaijão, concluiu o Facebook. Depois de detectado em detalhes o esquema, ele continuou funcionando livremente por mais de um ano.

O ex-chefe de segurança do Facebook, Alex Stamos, que hoje chefia um centro de combate à desinformação em Stanford, sempre diz que autorregulação de Big Tech não tem como dar certo. O argumento é simples: quem faz a regra é a mesma empresa que precisa agradar governos locais para funcionar. Aqui nem tem problema de ovo e galinha, já que para aplicar suas próprias regras a Big Tech precisa funcionar no país. Ainda bem que a gente não mora no Azerbaijão.