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Se você nem entendeu mas já está com a paciência cheia dos derrubadores de estátua, fique tranquilo. Há pessoas, como eu, que sentiam isso e se perguntavam: será que eu vivo numa bolha e não estou entendendo a importância deste movimento mundial? Trago para você aqui a certeza de que não é por estar em bolha, ser de direita ou conservador que você tem essa impressão de que derrubar estátua é um belo de um serviço de inutilidade pública. Sua impressão confere com a realidade.
Não é por ideologia de direita ou conservadorismo que as pessoas são contra a derrubada de estátuas históricas como ativismo político. Nem a esquerda raiz aguenta mais esse teatro do absurdo.
Dirijo-me especificamente a quem trabalha e paga boletos: se derrubar estátua resolvesse alguma coisa no mundo, você já não teria derrubado uma meia dúzia? Pois é. Há algo que todos entendemos, os movimentos espontâneos de jovens mobilizados por uma causa, qualquer que seja, de política a ídolo pop. Esse fenômeno ocorreu nos Estados Unidos durante os protestos pelo assassinato de George Floyd e foi algo surgido ali, no meio do calor do debate, derrubar estátuas de racistas.
Nos anos 80 e 90, a Rádio 89 FM de São Paulo tinha um quadro de humor chamado "Sobrinhos do Ataíde" e um dos esquetes mais famosos era o da dupla Sêo Gilmar e Marquinho. Pai e filho tinham excelência tanto em arrogância quanto em ignorância e, em todo quadro, terminavam idealizando como seria aquela situação nos Estados Unidos ou dizendo que lá e melhor e que os norte-americanos são melhores. Xi, Marquinho - como diria Sêo Gilmar - será que a nossa militância derrubadora de estátuas não é dessas?
Antes que digam ser preconceito meu, já que sempre pensei isso mesmo da nossa esquerda goumet, informo que a hipótese não é minha, é de um esquerdista raiz, militante que vive da militância. Eduardo Vasco, jornalista especializado em política internacional e ligado ao Partido da Causa Operária (PCO). "A esquerda pequeno-burguesa brasileira, como sempre, tenta imitar os movimentos desorganizados e espontâneos dos outros países e absorver seus aspectos mais confusos – afinal, ela mesma é extremamente confusa. Logo, temos aqui defensores da destruição de monumentos aos nossos antigos 'opressores', como os descobridores portugueses ou os bandeirantes", defende no artigo "Derrubar monumentos, ação desesperada e uma política identitária", publicado no site do PCO.
A esquerda gourmet defende a derrubada de estátuas de "opressores", sejam colonizadores, imperialistas, machistas, homofóbicos, racistas ou escravocratas. O PCO pergunta por que então não se revolta contra, por exemplo, a Praça Roosevelt ou a avenida Presidente Wilson? E eu adiciono uma pergunta que explico melhor ao final do texto: por que não derrubam as estátuas do Che Guevara?
Eduardo Vasco, em seu texto, traz um questionamento prático: quem decide que estátuas derrubar nessa tentativa de revisionismo histórico? Desacostumados de lutas reais e de tomar "não" na cara, os militantes lacradores imaginam que só eles vão derrubar as estátuas dos outros. "Afinal, dirão os fascistas, se as estátuas de Borba Gato ou Cristóvão Colombo podem ser derrubadas, por que não as obras de Oscar Niemeyer homenageando Luiz Carlos Prestes e a união dos povos da América Latina? Ou pior, por que não proibir os símbolos comunistas, uma vez que Lênin era um comunista opressor comedor de criancinhas (como dizem os que derrubaram suas estátuas)? Logo, proibir os partidos comunistas!", diz o texto publicado no site do PCO.
Não imaginar consequências reais da defesa do revisionismo histórico faz parte da prática política de quem não tem grandes preocupações com a vida real no geral. É compreensível que, numa revolta genuína, de forma espontânea, uma multidão acabe destruindo uma estátua. Ainda que não se aprove, é da natureza humana. Se organizar para ir derrubar estátua no meio de uma pandemia e diante de tantas formas reais de enfrentar problemas parece ser uma forma de brincar de militância.
Para a esquerda-raiz, quem não tem problemas na vida real nem quer se envolver em lutas da vida real opta pelo simbólico: "Monumentos são símbolos. Símbolos pertencem ao mundo subjetivo. A esquerda pequeno-burguesa, por ser idealista por sua própria natureza de classe, apega-se mais à simbologia do que à realidade material. Para ela, cuja vida material é relativamente confortável, criar ou destruir um símbolo é algo importante, pois pode se preocupar com isso. Para a maioria da população, no entanto, que precisa se preocupar a cada instante com sua sobrevivência material, a simbologia vem em segundo plano, para dizer o mínimo". - argumenta Eduardo Vasco.
"Sob a tela de um reformismo barato, o identitarismo não passa de uma nociva ideologia reacionária. Essa é a mesma esquerda que não move uma palha por reivindicações realmente necessárias e concretas, que atendam aos interesses das amplas parcelas da população", argumenta o texto publicado pelo PCO. Sei que muitos estão pensando agora: chegou o dia em que eu concordei com o PCO. Pois é.
O texto defende que a esquerda deveria esquecer monumentos que simbolizam opressão e se concentrar em monumentos que, além de simbolizar, materializam opressão. Segundo a visão do autor, esquerda raiz, a luta seria para derrubar a polícia, a Justiça, o patrão e Jair Bolsonaro. Quem é de centro ou de direita pode discordar de quem ele quer derrubar. Quem é da esquerda gourmet já deve estar imaginando o trabalho que isso deve dar e voltando a defender a lacradinha em rede social e a derrubada de estátuas como forma de luta política.
Trata-se de um grupo político que, "por estar em uma posição social relativamente confortável e estável, permite-se se preocupar com assuntos supérfluos e distracionistas, buscando levar o resto da sociedade na esteira de suas ideias. Assim, o mais importante seria o jeito de se comportar, o modo de falar, de se expressar. São preocupações morais particulares de sua classe, mas que em sua cabeça deveriam ser preocupações de toda a sociedade. Enquanto isso, a maioria da população, oprimida e desesperada, preocupa-se em sobreviver.", diz o PCO.
Eu vou um passinho além: nem com as preocupações morais particulares de sua classe a esquerda gourmet faz um trabalho que preste. Qual é o critério que defendem para derrubar uma estátua? Ser opressor. Estamos na América Latina, quem é o rosto opressor mais estampado em tudo quanto é canto? Che Guevara.
Há alguns anos, o vice-presidente da Fundación Bases, think tank liberal da Argentina, Federico N. Fernández, lançou a campanha "Removam todos os tributos a Che Guevara", que ganhou espaço até nas revistas Economist e Newsweek. No caso, não eram estátuas antigas ou históricas, mas algumas feitas por novos mandatários argentinos, pátria de origem do revolucionário. Um exemplo é a estátua de 4 metros de altura colocada na cidade onde ele nasceu, Rosario.
O movimento dava diversos argumentos contrários às homenagens. Primeiro, a conhecida história da crueldade contra opositores, que incluiu o episódio em que falou nas Nações Unidas que continuaria matando tanto quanto "necessário". Também foi o criador do primeiro campo de concentração cubano, que tinha "terapia de reversão" para gays e cristãos, utilizando um método chamado tortura. Há ainda um argumento a mais para o pedido de remoção da estátua em Rosário: Che Guevara morou na cidade até completar 1 ano de idade, foi embora e nunca mais voltou.
Quando a Fundación Bases, liberal, fez sua campanha contra os novos monumentos de Che Guevara na Argentina, a esquerda começou dizendo que era uma atitude neoliberal e, no calor das redes sociais, chegou a dizer que são neonazistas. Este ano, o Black Lives Matter marchou em Miami pedindo a derrubada da estátua de Cristóvão Colombo e o fim da polícia usando bandeiras de Che Guevara.
O que Cristóvão Colombo fez no país dos outros que poderia ser considerado muito diferente do que Che Guevara fez no país dos outros dentro do quesito opressão? Qual é o sentido de pedir para remover da vida pública qualquer imagem de um e impor, de forma pueril e fantasiosa, a imagem do outro? Não precisa de sentido. Não é uma luta política, por democracia ou levando em conta liberdades individuais e respeito humano. O movimento de derrubar estátuas é apenas bater o pé e tentar levar no grito.