Todas as vezes em que um caso criminal comover a sociedade e um oportunista nos convencer da sua incrível ideia para "endurecer" as leis, tenha uma certeza: isso vai acabar com mais criminoso solto. Não existe fórmula mais certa do que o casuísmo para deixar bandido solto e prender quem nem tem culpa ou poderia pagar o que deve à sociedade de outra maneira. Fosse categoria olímpica, o Brasil certamente seria ouro na modalidade, com perigo até de ser hors concours.
Avião não cai sozinho. A história toda começa em 2009 com o maior vilão da história do sistema penal brasileiro, a boa intenção. Até aquela época, havia diversos tipos penais para violência sexual. Estupro era o nome dado tecnicamente à violência contra mulheres com conjunção carnal, que é a penetração vaginal. Outros atos eram enquadrados em "atentado violento ao pudor".
Já passa de todos os limites a lambança promovida pela mistura entre leis ideológicas e interpretação burocrática. Está se consolidando nos Tribunais de Justiça a ideia de que ato libidinoso com menor de 14 anos sem penetração vaginal com violência é "importunação sexual". Em vez de punir com prisão, se pune com prestação de serviços. A última decisão envolveu uma menina de 8 anos estuprada pelo tio em São Paulo.
Houve um movimento com base ideológica e emocional que argumentava pela unificação dos crimes, já que o trauma era o mesmo. Uma série de atos libidinosos forçados foi enquadrada em estupro. Por que uma seria vítima de estupro e a outra não? Por que um criminoso é estuprador e outro não? A lei foi "endurecida" e isso foi comemorado, afinal, estupro é crime hediondo. No caso de menores de 14 anos, como não são capazes de tomar decisões, todo ato libidinoso é automaticamente estupro.
Qual foi o resultado prático desse "endurecimento" da lei do estupro em 2009? A pena média dos estupradores caiu pela metade e hoje equivale, por exemplo, à aplicada por roubar um passe de ônibus e R$ 10. É um caso concreto.
Em 2014, Nohara Paschoal analisou 2200 julgamentos de estupro pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em sua tese de mestrado "O Estupro: Uma Perspectiva Vitimológica". Sempre você ouve na imprensa que, por cometer o crime tal a pena é de até tantos anos de prisão. Na vida real, a maioria dos casos recebe a pena mínima. Os criminosos geralmente recebiam 6 anos de prisão pelo estupro e outros 6 por atentado violento ao pudor. Agora, como o segundo crime deixou de existir, recebem só 6 anos.
"Um dos casos analisados, quando do estudo jurisprudencial, mostrou que o agressor que praticou contra uma mesma vítima conjunção carnal, coito anal e oral forçados foi punido com seis anos de reclusão. O que mais surpreendeu, contudo, foi que o agressor, após praticar todos os atos sexuais contra a vítima, roubou dela a quantia de R$ 10,00 (dez reais) e um bilhete múltiplo de passe de ônibus. A pena para o roubo praticado: 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses, de reclusão.", descreve Nohara Paschoal em sua tese de mestrado.
A segunda gambiarra legislativa
Depois deste maravilhoso resultado, o que o Brasil resolveu fazer? Obviamente repetir a dose. Três anos atrás, um criminoso que ejaculava em mulheres dentro de ônibus na avenida Paulista ganhou a atenção do Brasil. Primeiro graças à rápida intervenção dos passageiros e ao motorista, que desviou a linha e foi até a delegacia mais próxima. Depois, devido ao absoluto desleixo com que Polícia Civil e Ministério Público lidam com esses casos, já que ele foi solto na hora.
Tratava-se de um criminoso contumaz, com diversas passagens por ejacular em mulheres no transporte público de São Paulo, preferencialmente nas mesmas linhas. E como permanecia solto? Não dá para enquadrar em estupro, porque pressupõe violência ou grave ameaça e não pode ser a violência contra a dignidade da vítima, precisa ser física mesmo, bater na pessoa ou mostrar uma arma. Daí, sobravam duas opções para as autoridades: o crime do art. 215 do Código Penal ou o artigo 61 da Lei de Contravenções Penais.
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor: Pena - multa.
Adivinhem em qual dos dois ele foi enquadrado? Claro que sempre no segundo e, por isso, continuava solto. Em um artigo brilhante para a Gazeta do Povo à época, o promotor Rodrigo Leite Ferreira Cabral, do Ministério Público do Paraná, explicou detalhadamente por que casos daquele tipo devem ser enquadrados como o crime do artigo 215, não como mera contravenção penal.
"Nesses casos, o crime resta configurado quando o autor emprega algum recurso ou meio que dificulte ou torne impossível a manifestação da vontade da vítima.", explicou, ressaltando que a vítima não conhecia o criminoso e estava num local público onde não iria nem imaginar que se iniciaria uma relação sexual. "Todo esse panorama deixa muitíssimo claro que a vítima teve impedida a sua livre manifestação sexual, de forma que restou caracterizado o crime do artigo 215 do Código Penal, cuja punição é de dois a seis anos de reclusão, cabendo, inclusive, a decretação da prisão preventiva do investigado.", defendia o promotor.
O departamento artístico do Ministério Público de São Paulo discordava e, como é rotineiro, tomou a imprensa e engajou a sociedade em uma campanha pelo "endurecimento" da lei penal para que fosse possível punir esses casos. A história colou, para variar. A então deputada Marta Suplicy encampou a luta no Congresso Nacional.
Na mesma época, a procuradora Ana Carolina Previtalli Nascimento, do Ministério Público Federal, mostrou que era possível sim punir tais casos com a lei vigente. O caso ocorreu em um vôo com conexão no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Durante a decolagem, justamente no momento em que as pessoas não podem sair de seus assentos, um passageiro começou a tocar os seios e as pernas da passageira da poltrona ao lado com a desculpa de que se dedicava à manipulação de pontos energéticos. Foi enquadrado pela procuradora no artigo 215 do Código Penal e teve a prisão preventiva pedida e decretada.
O caso foi tratado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal porque ocorreu em um avião, mas a lei e a lógica aplicadas são exatamente as mesmas que poderiam ser aplicadas nos ônibus e metrôs. Tratava-se de um figurão, homem rico e poderoso, que ficou na cadeia e enfrentou um processo duro e público. No entanto, a procuradora do caso tinha o grave defeito de dedicar seu tempo a trabalhar nos autos e obter resultados concretos, então não foi ouvida.
As consequências nefastas da gambiarra
A modificação legal advogada por militantes ideológicos e pela ala artística do Ministério Público, minoritária mas barulhenta, é o que resulta hoje em estupradores de crianças livres da cadeia. Não se trata de surpresa. Em 19 de setembro de 2017, a Gazeta do Povo já alertava que a ideia vendida como "endurecimento" da lei penal pela então deputada Marta Suplicy era um tiro pela culatra. O problema não está no texto da lei em si, mas na solidificação do desleixo no serviço público como método e nos puxadinhos legais como remédio.
A lei não era o problema, o que tinha de se atacar no momento eram as escolhas feitas por delegados e promotores no enquadramento dos criminosos. Problemas administrativos existem também no Poder Judiciário e são eles que iriam mais uma deixar vítimas sem justiça e criminosos na rua.
O projeto de lei da então deputada Marta Suplicy eliminou o artigo 61 da Lei de Contravenções Penais e criou um novo tipo penal no ano de 2018, um desdobramento do artigo 215 do Código Penal, crime de "Importunação Sexual": Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.
Isso era para resolver os casos de abuso sexual no transporte público, mas no meio jurídico o grande medo era que acabasse sendo passe livre para estupradores de criança. Qualquer ato libidinoso com alguém menor de 14 anos é considerado estupro porque se presume violência, já que a pessoa ainda não tem capacidade de tomar decisões. Só que não é o estupro do artigo 213, é um outro artigo especial, o "Estupro de Vulnerável", também criado em 2009, Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
A lei é cristalina: qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos é estupro de vulnerável. Mas há vários Tribunais de Justiça considerando que casos sem penetração vaginal ou violência física se enquadram no crime mais leve, o de importunação sexual, criado para lidar com assédio no transporte público. Continuam livrando criminosos mesmo depois que o STJ e o STF já estipularam que isso não pode ser feito.
Você já deve ter ouvido que "a lei não retroage, salvo em benefício do réu". Muitos desembargadores brasileiros consideram que, como a pena de importunação sexual é mais benéfica ao réu e o crime foi criado depois, este é o que deve ser aplicado. A lei retroagiu em benefício do réu. No caso específico do estupro de vulnerável, o STF já decidiu que isso não se aplica. O STJ, preocupado com a possibilidade de que o entendimento começasse a ser aplicado, chegou a editar uma súmula de 166 páginas explicando em detalhes como esses casos devem ser tratados.
"Em razão do princípio da especialidade, é descabida a desclassificação do crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal - CP) para o crime de importunação sexual (art. 215-A do CP), uma vez que este é praticado sem violência ou grave ameaça, e aquele traz ínsito ao seu tipo penal a presunção absoluta de violência ou de grave ameaça.", diz o STJ. Mesmo assim, na semana passada, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, fez a desclassificação e libertou um homem condenado em primeira instância por estuprar a sobrinha de 8 anos de idade.
"Parece claro que, ao aludir a outros atos libidinosos alternativamente à conjunção carnal, o legislador não visou qualquer conduta movida pela concupiscência, mas apenas aquelas equiparáveis ao sexo vaginal. E os atos praticados pelo apelante — fazer a vítima se sentar em seu colo e movimentá-la para cima a fim de se esfregar nela e apertar os seus seios — por óbvio, não possuem tal gravidade", diz o desembargador João Morenghi, relator do caso, na decisão que libertou da cadeia o tio da vítima.
Na primeira instância, o homem havia sido condenado a 18 anos de detenção. Não passaria esse tempo todo preso, a pena vai progredindo do regime fechado até o aberto, dependendo da evolução do preso. Com a reforma da sentença pela 12a Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o homem foi condenado a 1 ano e 4 meses de prisão, pena convertida em prestação de serviços à comunidade.
Aqui estamos falando de condenações em Segunda Instância que, contrariando entendimento dos Tribunais Superiores - STF e STJ - colocam na rua estupradores de crianças que já cumpriam pena. É um bom momento para avaliar se você deve dedicar sua energia a campanhas sensacionalistas promovidas pelo departamento artístico do regiamente pago funcionalismo público brasileiro.
Segundo o site Consultor Jurídico, há decisões semelhantes em outros Tribunais de Justiça do Brasil, novamente, Segunda Instância. A publicação especializada pesquisou casos semelhantes em Santa Catarina, Rondônia, Goiás e outra do ano passado também em São Paulo. Todas as decisões foram tomadas depois da emissão da súmula 563 do Superior Tribunal de Justiça, que tem efeito vinculante, ou seja, abrange todos os casos semelhantes em tramitação no Brasil.
No ano passado, o TJ-SP tirou da cadeia um homem que estuprou 3 meninas de 13 anos de idade, a filha da namorada dele e duas coleguinhas de escola. As meninas foram dormir na casa da colega para jogar um videogame que ele havia instalado. Então, ele começou a abusar das meninas, mas elas reagiram e ligaram para as mães. Todo mundo foi parar na polícia e o homem acabou condenado a 9 anos e 4 meses de reclusão, ou seja, regime fechado.
Ele recorreu à Segunda Instância, no TJ-SP, pedindo para ser enquadrado no crime de importunação sexual e não estupro de vulnerável. Conseguiu e saiu da cadeia. Já tinha cumprido 1 ano e 10 meses de prisão e a condenação foi revertida para 1 ano e 4 meses. "Enquanto o estupro exige a ciência e discordância da vítima, coagida pela efetiva violência ou grave ameaça, bem como a prática de ato libidinoso quando o caso com aquela, a importunação sexual deve ser observada em casos em que o ofendido, sem sequer a chance de se manifestar, é mero instrumento do ato do infrator, que pratica o ato contra aquele", diz a sentença.
"Afirmaram a vítimas terem sido surpreendidas pelas condutas do réu, quais sejam, passar as mãos nos seios, segurar a ofendida por trás com a intenção de “encoxá-las” e, ainda, se deitar sobre a vítima, sem sua anuência, a se depreender que praticou o réu atos libidinosos contra as ofendidas. Não se está aqui a ignorar que o estupro de vulnerável, crime pelo qual foi denunciado e condenado em 1ª instância, é delito praticado mediante violência presumida, o que, a priori, poderia impossibilitar o reconhecimento do crime de importunação sexual. Todavia, repise-se, não houve na hipótese ora debatida a participação ativa da vítima, surpreendida que foi pela atos praticados sem sua anuência, não se podendo afirmar tenha sido ela forçada a nada." (grifo meu), diz o desembargador Newton Neves.
Como as meninas de 13 anos foram surpreendidas no meio da noite, inclusive quando dormiam, então NÃO foram forçadas a nada e não é estupro de vulnerável, raciocinou o nobre Tribunal de Justiça do meu glorioso Estado, São Paulo, locomotiva da nação brasileira. Isso depois que o STJ e o STF explicaram oficialmente que sexo com criança é estupro e ponto final.
Difícil saber qual a face mais nefasta da injustiça, a que propicia distorções tão gritantes ou a que vende ilusões de "endurecimento da lei penal" à população para fazer marketing pessoal. A ala artística da Justiça e do parlamento, essa que vive de dar entrevista e fazer live em vez de trabalhar, sabe muito bem como terminam essas gambiarras jurídicas mas não se importa. No Brasil, a lei não é igual para todos. As decisões são assim com as coitadinhas das meninas da periferia, anônimas, desprotegidas, não com as famílias de quem tem dinheiro, prestígio, poder e outras formas de resolver as coisas.
Nós, cidadãos, descobrimos a participação política há pouco tempo e isso é excelente. Até o estouro do escândalo do Mensalão, lá pelos idos de 2007, em raríssimos casos se discutia política em família, era assunto chato. Natural cometer erros de principiante e mais ainda corrigir rumos para uma atuação mais madura. Tendemos a confiar nas pessoas quando elas dizem o que queremos simplesmente porque é muito bom confirmar nossas sensações. No caso de leis e políticas públicas, o luxo dessa indulgência é caríssimo, temos de ficar de olho é nos resultados e racionalidade.
Falar em "endurecer" leis penais, criar novas regras por casuísmo e fazer campanhas ruidosas tem servido para alavancar as carreiras de muita gente, mas ao povo só tem servido para trazer injustiça e impunidade.
É um conforto pensar que exista uma pílula mágica como as gambiarras da lei do estupro, prisão em segunda instância, fim do foro privilegiado ou qualquer outra hashtag que justifique a aparição em diversos programas de entrevistas e a fabricação de milhares de horas de lives. Infelizmente, a vida real é chata, feita do mesmo jeito que você constrói a sua vida, com trabalho duro e seriedade, muitas vezes sem o devido reconhecimento.
Leis e processos judiciais são trabalhos árduos, complicados, cheios de detalhes ínfimos que podem comprometer o resultado final, dependentes de negociações com pessoas que pensam de formas muito diferentes. Nossa alegria em descobrir que podemos participar da política voltou nossos olhos primeiro aos que fazem barulho, mas precisamos refletir se esse pessoal realmente trabalha e entrega o que queremos. Chegou a hora de valorizar mais e tentar compreender os milhares que trabalham em silêncio e entregam resultados efetivos que temos subestimado.
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