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Madeleine Lacsko

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Reflexões sobre princípios e cidadania

“Eu confio na Rússia”: terraplanismo Sputnik está na moda na esquerda brasileira

A foice e o mortelo, símbolo inconfundíveis do comunismo: peso equivalente à suástica nazista? | NATALIA KOLESNIKOVA/AFP

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Sempre fui favorável a mudar o "Ordem e Progresso" da bandeira nacional. Por mim, a frase mais acertada seria "Acredito em Tudo". Antes de qualquer coisa, o brasileiro é um acreditador profissional, daí chegarmos onde estamos.

Esses dias, a ex-BBB Mayra Cardi, preparadora física e nutricionista autodidata, fez uma live para 2 milhões de pessoas falando dos benefícios do jejum de 7 dias. Colocou os links dos estudos "científicos" em que se baseava. Um deles era um panfleto de propaganda. Apenas um era um estudo, mas de uma clínica de estética, com alguns pacientes da própria clínica, sem registro científico.

Muitos debocham de quem acreditou na tese da Mayra Cardi. É realmente bem improvável que jejum de 7 dias cure câncer. Mas nossos inteligentinhos já fizeram torcida de remédio. E a moda agora na fina flor da intelligentsia tupiniquim é ser sommelier de vacina. Ontem, o terraplanismo Sputnik subiu a hashtag #EuConfioNaRússia. Quase paguei a passagem para conferir.

Tudo começou porque a Anvisa não liberou a vacina russa Sputnik para uso no Brasil. Numa entrevista, os técnicos explicaram que faltam documentos, explicações e comprovações científicas. O governador da Bahia, que já havia encomendado a vacina, recorreu ao Supremo Tribunal Federal.

O ministro Ricardo Lewandowski, que também se formou em virologia secretamente, interrogou o tal do adenovírus vivo da vacina Sputnik no laboratório montado em seu gabinete do STF. Liberou o uso da vacina mesmo sem aprovação da Anvisa. Os governadores acharam melhor não meter o doido e, em vez de sair usando a vacina, foram primeiro perguntar à Anvisa o que tem de errado.

A Anvisa já disse que não vetou a Sputnik, apenas não pôde liberar porque faltam respostas objetivas sobre a vacina. A fábrica, em vez de responder, fica lacrando no Twitter. Os russos têm a maior e mais eficiente máquina de desinformação via internet do mundo e a verba desse ano aumentou 40%. Há vários lotes diferentes da vacina Sputnik e alguns já foram devolvidos por problemas em outros países. E eu não entendi até agora por que razão a vacina precisa ter perfil de rede social para xingar os outros.

Ainda não sabemos se o lote brasileiro tem ou não problemas. A fábrica pode simplesmente mandar as informações necessárias e comprovar que esse lote está no nível de segurança aceitável. A Eslováquia já devolveu um lote que tinha um problema semelhante ao temido pela Anvisa. A República Tcheca já está no quarto ministro da Saúde porque nenhum quer aprovar o lote de lá e eles querem se aproximar da Rússia.

Millôr Fernandes disse que quando uma ideologia está velhinha vem se aposentar aqui no Brasil. Os nossos intelectuais de esquerda passaram a defender a vacina da Rússia como se ainda existisse a União Soviética. Argumentam com paixão que a Anvisa foi aparelhada politicamente pela extrema-direita e por isso boicota a Sputnik. Já a vacina chinesa do Doria só foi aprovada porque algum bolsonarista bebeu e assinou errado aquele dia.

Ser burro é um direito, ter orgulho da própria burrice também. O sensacional é que o Brasil continue tratando como intelectuais senhores bravateiros e autorreferentes que não conseguem juntar lé com cré numa argumentação. Estivesse aparelhada, a Anvisa jamais teria cedido diante de João Doria numa queda de braço real. Agora, precisaram até inventar a queda de braço.

De onde tiraram que o governo Jair Bolsonaro tem algum problema com o governo Vladimir Putin? O brasileiro é, antes de tudo, um acreditador. Há os que acreditam ainda viver na União Soviética e vêem o ocidente como uma ameaça. Outros moram aqui no Brasil mesmo mas vivem como se a União Soviética existisse. Vamos à realidade, quer dizer, ao Twitter:

“O senhor expressou as melhores qualidades masculinas e de determinação. O senhor foi buscar a solução de todas as questões, antes de tudo na base dos interesses do seu povo, seu País, deixando para depois as soluções ligadas ao problemas de sua saúde pessoal. Isso é para todos nós um exemplo de relacionamento corajoso com o cumprimento de seu dever e a execução de suas obrigações na qualidade de chefe de Estado”, disse Putin a Bolsonaro na Cúpula do BRICS, em 17 de novembro do ano passado. A vacina Sputnik já existia.

Os sommeliers de vacina que se orgulham de confiar na Rússia têm vários argumentos a favor da vacina Sputnik. Entre eles, pérolas como a corrida espacial e a derrota dos nazistas. Se os russos são capazes de atos tão importantes para a humanidade, quer dizer que este lote específico da vacina presta. Desconfio que este pessoal esteja atrás de atestado de insanidade mental e a gente é que não sabe.

Tive o cuidado de visitar, uma por uma, as páginas de cientistas de esquerda. Os de verdade mesmo, formados em pesquisa, com reconhecimento acadêmico e trabalhos importantes, não os doutores em virologia da universidade do Facebook. Os cientistas de verdade concordam com a Anvisa nessa. Todos eles, mesmo os que odeiam Bolsonaro, o governo dele e toda a família. Aliás, os cientistas de direita e os de centro também concordam com a Anvisa nessa.

As divergências vieram de quem não entende nada de vírus, de vacina, de controle de pandemia nem de política. Alguns se dizem melhores que a Anvisa, que teria critérios políticos na decisão. Eles não, só aceitam critérios científicos. Não sabem diferenciar um pacu de uma arara, mas dão aulas de variedades de adenovírus em vacina. No final das contas, até entendo que confiem na Rússia.

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