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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Big Techs

Fake News como business: agências de checagem são financiadas pelas Big Techs

(Foto: Arquivo / Gazeta do Povo)

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Dia desses um colega jornalista bem mais experiente que eu veio perguntar o que, afinal, eram as tais agências de fact-checking, algumas funcionando dentro das mais prestigiosas redações do mundo. Eu expliquei com toda calma e, confesso, me achando. Falei do mundo digital, a nova dinâmica das relações, as campanhas de desinformação e daí quebrei a cara. Ele me pergunta: mas todo o jornalismo não é com fatos checados? Não dá a impressão de que não é mais assim?

A reflexão sobre fact-checking tem sido feita sob fortes emoções. O foco é sempre nas intenções dos envolvidos. As agências têm um viés político, beneficiam alguém, têm uma missão escondida? Especula-se muito, mas confesso não ter visto fatos que comprovem uma maquinação dos profissionais envolvidos. "Ah, mas você não acha que eles têm viés...". Eu não acho nada, ou sei ou não sei. Isso eu não sei. Sei outras coisas.

Há uma diferença entre nossas intenções e o que realmente fazemos. Nós, cristãos, sabemos que às vezes não fazemos o bem que queremos e acabamos fazendo o mal que não queremos. Todo mundo sabe onde é o lugar mais cheio de boas intenções. Deixo as intenções para lá e foco nos resultados. O fato é que os maiores interessados em agências de fact-checking são as Big Techs. Outro fato é que o aumento desse interesse não diminuiu a desinformação.

Aprendi com o pessoal do mundo corporativo a fazer uma observação bem específica sobre modelo de negócios. De que esse negócio depende para prosperar? Se o negócio morre caso resolva o problema que se propõe a resolver, significa que ele depende da manutenção do problema para sobreviver. Na maioria das vezes, isso não é intencional. Mudanças são rápidas e enxerga-se a oportunidade, não o impacto social dela.

Redes sociais são uma potência em inteligência artificial. Experimente postar um vídeo musical, um mamilo ou uma palavra proibida. Às vezes você não consegue nem fazer a postagem, ela é bloqueada na hora. Tem gente com conta derrubada porque postou algo sonorizado com música devido aos direitos autorais reivindicados de outra parte do mundo. O meu canal do YouTube já ficou vetado de fazer lives por 3 meses por violação de direitos autorais em um vídeo postado em privado. Imagine essa máquina contra a desinformação.

Nossa imprensa identifica operações de desinformação pelo conteúdo, daí tanta importância social dada às agências de fact-checking. Não é assim, no entanto, que as Big Techs detectam operações de desinformação. Pouco importa o conteúdo, mas a forma de interação, a participação de perfis falsos ou robôs, a quantidade de postagens orquestradas, o impulsionamento e a comparação da relevância na rede com a relevância no mundo real. Dou um exemplo.

Dia desses, estive em um congresso da Cyberscoop vendo uma apresentação sobre a detecção de uma operação de desinformação no Sudão do Sul vinda da Ucrânia. Todas as informações compartilhadas eram verdadeiras. Como assim? Era uma campanha de auxílio a pessoas em dificuldade promovida por entidades ucranianas. O Facebook recorreu a uma empresa especializada em peritagem forense porque desconfiou de operação organizada de desinformação.

E por que o Facebook desconfiaria de desinformação se todas as postagens eram verdadeiras? Porque uma pequeníssima campanha ucraniana de ajuda humanitária no Sudão do Sul tinha um volume impressionante de postagens, conexão entre perfis, sincronicidade, participação de robôs e disparos automatizados. O tema dominou a imprensa nacional com rasgados elogios à Ucrânia e aos ucranianos. Descobriu-se que era uma campanha para criar clima político para um acordo econômico sobre portos entre os dois países. O Congresso do Sudão do Sul, que estava reticente, aprovou.

Havia um interesse comercial dos ucranianos em negócios com o Sudão do Sul que precisava de aprovação do Congresso. A sociedade local e a mídia estavam reticentes, temiam as intenções e interferência da Ucrânia, ex-república da URSS e envolvida em conflitos com a Rússia. Uma operação simultânea em 230 plataformas diferentes, incluindo o Facebook, fez com que uma pequena ação humanitária de ucranianos fosse percebida pela imprensa como algo muito maior.

O público mudou a percepção sobre os ucranianos e o Congresso teve clima político para votar. Trata-se de uma operação de desinformação para favorecer interesses econômicos e manipular as forças políticas. Funcionou bem, como ocorre no mundo todo há anos. De que formas agências de fact-checking poderiam ter impedido que essa operação tivesse sucesso se todas as informações compartilhadas eram verdadeiras? Não poderiam.

Em outro artigo há algum tempo, relatei uma operação de desinformação que rendeu uma virada na eleição para primeiro-ministro em Trinidad e Tobago. Era uma operação complexa de desinformação para manipulação da democracia. Também não envolvia nenhuma mentira, nenhuma informação falsa. Tratava-se de um movimento de pessoas indignadas contra a corrupção feito sob medida para favorecer um candidato. De que forma isso poderia ser contido por fact-checking? Não poderia.

Tudo o que já estudei sobre operações de desinformação via redes sociais é viabilizado pela imprensa. A estratégia é sempre montada prevendo as reações mais comuns dos jornalistas e órgãos de imprensa. Em cima dessas reações, sejam certas ou erradas, que a campanha pode ser viabilizada chegando a um público exponencialmente maior e chancelada por quem já tem credibilidade na opinião pública. As redes sociais lucram com esse esquema. Por isso, aliás, ele prossegue até que seja regulamentado por governos. E as agências de fact-checking nisso?

Esta semana, um evento europeu discutiu o "Combate às Fake News como modelo de negócio". A organização foi da Aliança Europeia de Agências de Notícias e da CEPIC, organização da indústria fotográfica. Por enquanto o modelo de negócio das agências de fact checking é sustentado quase exclusivamente por patrocínios das Big Techs Facebook, Google, Twitter e Tik Tok. Significa?

Aqui no Brasil não há dados consolidados como os da Europa. Lá, as agências independentes de checagem não são predominantes como aqui, há uma mistura entre este modelo e agências de checagem funcionando dentro de agências tradicionais de notícias. Elas têm há anos uma associação que reúne-se para discutir o mercado e as perspectivas de futuro. É neste contexto que ficamos sabendo que as Big Techs são financiadoras quase exclusivas do fact-checking.

O Facebook trabalha com mais de 80 agências de checagem em todo o mundo, eram 52 em 2019. Nada disso melhorou a situação da desinformação na plataforma. Desde a semana passada, o Wall Street Journal tem divulgado documentos internos da empresa mostrando que não há combate à desinformação, existe a proteção dos usuários que dão mais lucro.

O lucro das redes sociais com desinformação é infinitamente superior ao que pagam por fact-checking. Em 2019, o Facebook gastou US$ 2 milhões financiando agências de checagem. Muito? Pois bem, em 2020 os 12 grandes produtores de desinformação antivacina ganharam juntos, com redes sociais, US$ 36 milhões. E quanto as redes lucraram com este conteúdo antivacina? US$ 1,1 BILHÃO. Pagar US$ 2 milhões para combater a desinformação é um investimento muito inteligente em marketing e limpeza de imagem.

Tudo o que o Facebook gasta para combater desinformação em um ano é um valor menor que o lucro de um único produtor de desinformação do segmento de vacina, por exemplo. E vamos lembrar que as redes sociais são quase exclusivamente os únicos financiadores de agências de fact-checking. Criou-se um mercado que vive das migalhas das Big Techs limpando a sujeira que elas produzem e decidem não evitar.

A AFP, agência francesa, tinha apenas um checador de fatos em 2018, hoje tem 120 em 80 países falando 24 idiomas. O diretor da agência, Yacine Le Forestier, foi enfático ao dizer que não dá para confiar que o negócio seja sustentável. Atualmente, quem paga por ele são só as Big Techs. Ainda não se convenceu o público a financiar fact-checking. A experiência de todos os outros participantes da conferência é exatamente a mesma.

A existência de um mercado de "fact-checking" fragiliza o jornalismo, dá a entender que há uma instância mais confiável e reforça a desconfiança sobre o papel da imprensa. Mas há um outro problema de ordem prática. "Um problema enorme para nós - e para todas as organizações de fact-checking - é como sair da bolha porque, no final das contas, as pessoas que perderam a confiança na mídia mainstream não vão nem ler nem usar nosso fact-checking. Essa é a realidade", declarou Yacine Le Forestier, diretor da AFP. Quando o Brasil começará essa discussão?

Não precisamos começar a discussão porque aqui o meu negacionismo científico pode ser chamado de racionalidade caso sirva para fazer oposição ao negacionismo científico do meu adversário. Explico. Já há uma tonelada de experimentos científicos atestando que agências de fact-checking não são consumidas por quem já perdeu a confiança na imprensa. Mais que isso, compartilhar produtos de fact-checking com quem espalha fake news faz com que a pessoa espalhe ainda mais esse tipo de conteúdo.

Criamos uma tendência em que os fatos ficam a cargo do fact-checking financiado pelas Big Techs. Enquanto isso, o jornalismo tende a ser cada vez mais declaratório e distanciado da realidade, também subordinado aos algoritmos de distribuição das Big Techs. Repare que, de alguns anos para cá, "fulano disse isso" ou "fulano tuitou isso" já passaram a ser consideradas reportagens completas, sem qualquer cotejamento com os fatos ou apuração jornalística. Não me parece que é o jornalismo quem está ganhando este jogo.

Entre as agências europeias de fact-checking, é consenso que o modelo de negócio de recolher migalhas das Big Techs para correr atrás de desinformação que elas próprias espalham não tem futuro. Seria pior ainda se tivesse. As agências europeias já vêem que o novo modelo, num futuro próximo, será treinar jornalistas para não caírem em pegadinhas do mundo digital e treinar cidadãos para checar fatos. Por enquanto, só o Google pagou por isso. Mas é algo que interessa a toda a sociedade.

Este ano, a alemã FaktenCheck21 treinou 600 jornalistas de 100 diferentes veículos de comunicação no uso de ferramentas como WayBackMachine ou pesquisa reversa de imagens e vídeos. Precisa? Muito. Dia desses fiz um artigo contando o curioso caso da multidão de jornalistas que reproduziu como verdadeiro um tanque do Exército tombando no desfile para o presidente Bolsonaro. A postagem foi publicada por uma conta que usava a foto do G1, mas não era verificada e o nome é @cotore. Político nenhum corrói a credibilidade da imprensa mais do que isso.

Segundo a FaktenCheck21, a experiência do treinamento foi interessante e esse pode passar a ser um produto incluído no modelo de negócios. A AFP já pensa em uma expansão maior, treinar o público em geral para fazer fact-checking no universo digital. Há ferramentas gratuitas que todo cidadão pode utilizar e a agência crê que tanto a criação de ferramentas quanto de tutoriais seriam atrativos para o público. Mudar os interlocutores da checagem de fatos pode fazer com que ela torne-se popular na bolha que perdeu a confiança na imprensa tradicional.

As agências europeias de checagem de fatos já repensam sua forma de atuar e o modelo de negócios. Experimente falar disso aqui no Brasil, vai tomar um carimbo de negacionista na testa. O negacionismo dos jornalistas passou a ser visto como fato. Checagem de fatos não funciona com grupos que desconfiam dos checadores. As Big Techs comprovadamente controlam conteúdo de acordo com seus interesses comerciais, não com a proteção dos usuários nem as leis. Mas isso não importa porque a galera do fact-checking é hype.

As Big Techs nos mantém nesse ciclo interminável de difundir desinformação e depois pegar um pequeno percentual do lucro para fingir que combatem desinformação. Os jornalistas estão relegados às migalhas desse mercado e presos na dinâmica da convivência entre grupos radicais, que vivem de justiçamento, silenciamento e decidir o que pode ou não ser dito. Mas, aqui no Brasil, o pessoal apóia sempre o carrasco.

O jornalismo brasileiro ainda acredita que proibir derrubada de conteúdo por plataformas aumenta a desinformação. Pouco importa que a ONU diga que é violação de Direitos Humanos. Pouco importam os documentos mostrando que as plataformas deliberadamente promovem conteúdo de desinformação, lucram muito com ele e protegem os produtores mais rentáveis. Elogiar fact-checking dá like e prestígio dentro da panelinha, então o pessoal faz. O problema é que esse mesmo pessoal também quer ser encarregado de checar fatos. Aí complica.

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