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O debate sobre parto é um daqueles que saiu do mundo real para virar medida de virtude nas redes sociais. Parto normal significa anjo e cesárea significa demônio. Embora não tenha nenhuma relação com os problemas do mundo real, essa simplificação é muito boa para o marketing, principalmente daquelas pessoas que não estão muito dispostas a trabalhar.

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Há algumas pautas que a esquerda brasileira reivindica para si como se tivessem relação com orientação ideológica, como a igualdade de direitos das mulheres. Embora bradem muito e realmente apresentem muitos projetos sobre o assunto, comemoram vitórias alheias na área como se fossem suas. A tática tem funcionado. O debate atual em São Paulo gira em torno do monopólio da pauta dos direitos das mulheres no parto, em que a esquerda não conseguiu nenhum resultado efetivo, mas tenta levar os louros políticos comemorando vitórias alheias.

O caso atual, em que feministas do PSOL comemoram uma suposta vitória contra Janaína Paschoal em um projeto falando sobre cesárea é uma aula sobre como não precisa de mentira para fazer uma narrativa. Basta desviar um pouco do foco, omitir detalhes, exagerar na energia e fazer juízo de valor sobre o caráter de qualquer pessoa que questione. Funciona.

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Muitas pessoas crêem que a pauta do parto humanizado é de esquerda mas, em São Paulo, os projetos que realmente implementaram práticas de humanização não vieram da esquerda. O que veio dessa militância é a politização do vocabulário científico. A bióloga e doutora em genética Luciana Feliciano, me ajuda a esclarecer. Parto normal é aquele feito por via vaginal. Parto natural é aquele feito sem anestesia. Parto humanizado não tem nada a ver com práticas cirandeiras, é aquele feito de acordo com "procedimentos que promovem o parto e o nascimento saudáveis, sem condutas desnecessárias ou violência obstétrica", explica Luciana Feliciano.

Meu filho nasceu em 2011, eu vinha do exterior, o plano de saúde não cobria o nascimento na minha cidade, São Paulo. Resolvi procurar a rede pública, onde fui bem atendida em dois hospitais modelo, mas descobri algo que me chocou: não havia anestesistas disponíveis para parto normal. Em um deles, perguntei o que aconteceria caso eu tivesse dificuldades, sentisse muita dor ou realmente precisasse de anestesia. A profissional que me conduzia na visita ao hospital sorriu e me devolveu uma pergunta: "na hora de fazer não pensou nisso, né?". E eu estava recebendo um tratamento VIP, uma amiga médica me levou lá. Tudo o que eu pensava sobre parto mudou, eu percebi que não imaginava a realidade da maioria das mulheres nessa hora.

O Brasil tem um problema com a cultura da cesárea há décadas e todo o sistema de saúde, público e privado, é estruturado de forma a acentuar a distorção. Não se trata apenas de lucro ou conveniência, mas de uma cultura que se sedimentou e precisa ser adequada aos avanços da ciência. A questão da cesárea é parecida com a do leite em pó: são úteis para salvar vidas que perderíamos caso não existissem, mas podem ser um problema quando viram a regra. A solução vem de dar mais informação e poder de decisão às mulheres, não menos.

Em 2013, foi sancionado na capital paulista um projeto pioneiro, a Lei do Parto Humanizado, da então vereadora Patricia Bezerra, que deu às mulheres o direito a um plano de parto, resolveu o problema da anestesia e inúmeros outros. A militância lacradora não fala nesse projeto, replicado no Brasil todo. Claro que não tem relação com a autora ser evangélica, mãe e do PSDB.

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Esse bate-boca sobre cesárea versus parto normal não tem nenhum cabimento. Trata-se de ciência e há diretrizes que levam em conta tanto o aspecto físico quando psicológico, emocional e social da mãe e da criança. Um amigo obstetra costumava repetir o que dizia um professor dele: "Quando está tudo bem, a criança nasce com médico, sem médico ou apesar do médico. Médico bom serve para quando tudo vai mal". Uma das maiores evoluções da humanidade desde o início do século XX é a redução da mortalidade infantil, saber como evitar mortes em partos complicados é uma conquista. O problema está em mexer onde não se deve e complicar o que era simples.

O projeto da deputada Janaína Paschoal que foi derrubado judicialmente pelo deputado Campos Machado, do PTB, bolsonarista que se considera "irmão" de Roberto Jefferson, está inserido neste contexto, convenientemente ignorado pela militância de esquerda.

Na Lei do Parto Humanizado criada por Patrícia Bezerra, que é válida em todo o Estado de São Paulo porque foi apresentada na Assembleia Legislativa pelo deputado Carlos Bezzerra Jr., ginecologista obstetra, fica claro que a gestante recebe todas as informações médicas e a indicação da melhor opção para o parto. E é dela, da gestante, a palavra final sobre qual será o procedimento escolhido, entre as hipóteses consideradas seguras pela equipe médica.

Art. 4º Diagnosticada a gravidez, a gestante terá direito à elaboração de um Plano Individual de Parto, no qual deverão ser indicados:

I - o estabelecimento onde será prestada a assistência pré-natal, nos termos da lei;

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II - a equipe responsável pela assistência pré-natal;

III - o estabelecimento hospitalar onde o parto será preferencialmente efetuado;

IV - a equipe responsável, no plantão, pelo parto;

V - as rotinas e procedimentos eletivos de assistência ao parto pelos quais a gestante fizer opção.

O projeto da deputada Janaína Paschoal apenas deixa bem explícito algo que já está neste projeto, mas tem sido interpretado de forma diferente no dia-a-dia dos hospitais públicos: nos casos específicos em que, após 39 semanas de gravidez, depois de informada sobre os benefícios do parto normal, a mulher solicitar uma cesárea e a equipe médica considerar que o procedimento é seguro, ele pode ser feito mesmo sem a indicação de emergência. O Cremesp, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, é favorável ao projeto com base na autonomia da paciente. O conceito de autonomia só vinha sendo aplicado quando era sugerida uma cesárea e a gestante exercia seu direito de tentar um parto normal. Não há autonomia seletiva, ou a mulher é autônoma ou não é.

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A disputa judicial em torno do projeto, que gerou a comemoração efusiva nas redes sociais das feministas do PSOL, nada tem a ver com parto ou direitos das mulheres, mas com a renovação do poder na Assembleia Legislativa de São Paulo. As velhas raposas engoliram os deslumbrados da nova era.

Na legislatura anterior na Alesp, os antigos caciques do poder no interior paulista, Campos Machado e Barros Munhoz, ficaram incomodados com o campeão de votos de 2014, que virou presidente da casa tendo como principal argumento sua votação espetacular: 306 mil 268 votos. Janaína Paschoal teve 2 milhões 60 mil 786 votos. Foi eleita a maior bancada feminina da história da Alesp, 20% dos deputados, o dobro da legislatura anterior. Nunca houve um abalo tão grande ao poder dos grandes caciques da política paulista e é claro que eles vão dar o troco. A surpresa é que a esquerda ajude.

Campos Machado é presidente do PTB paulista, bolsonarista de quatro costados e diz que se considera "irmão" de Roberto Jefferson. Foi ele quem, por meio do diretório do partido, contratou o prestigioso escritório Del Nero, Favaretto & Vieira Advogados para atacar judicialmente o projeto de uma nova liderança, a mulher mais votada na história do legislativo brasileiro. A sabedoria milenar do Rei Salomão adverte de forma hiperbólica em Provérbios 1, versículo 32: " a inconstância dos inexperientes os matará, e a falsa segurança dos tolos os destruirá". É disso que se trata.

Se os antigos caciques da política paulista não conseguem mais os votos de antes e nem têm força para fazer valer sua vontade na Alesp, ainda têm muita influência no gigantesco Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A alegação de Campos Machado é sustentada em um tripé: a política pública colocaria mulher e gestante em risco, não se explica de onde viriam os recursos para cesáreas extras e o tema é federal. Por que o deputado não levantou a questão dos custos e da competência federal no outro projeto, que virou lei e trata exatamente do mesmo tema? Decididamente o fato de ter sido apresentado pelo líder do PSDB na época em que Campos Machado era fiel escudeiro de Geraldo Alckmin não tem nada a ver com isso, devem ser razões técnicas que ele, advogado formado pela USP, sabe bem melhor que eu.

Hoje, militantes feministas do PSOL e de outros partidos de esquerda comemoram que um bolsonarista lançou mão dos artifícios da velha política para dar a elas algo que não conseguiram sozinhas, derrotando uma mulher no tapetão. Até onde eu lembro, isso chama machismo.

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No reducionismo necessário para capitalizar em cima da vitória dos velhos caciques da política paulista, o projeto de Janaína Paschoal foi descrito como "autorização da cesárea sem recomendação médica" ou até "cesárea sem autorização médica". Curioso entender como isso funcionaria na prática. Se a equipe médica não recomenda nem autoriza a cesárea, quem é que faz a cesárea? A gestante?

Há inúmeros problemas nos partos brasileiros. As experiências mais traumáticas são as das mulheres que precisam do SUS, seguramente. Mas todos nós também conhecemos mulheres com histórias de cortar o coração ocorridas nos hospitais mais caros e sofisticados do país. Fosse apenas técnico, o problema já teria sido resolvido. A solução emperra e demora porque é cultural e reside na dificuldade de respeitar e levar a sério decisões das mulheres.

O conceito de igualdade é muito recente no nosso processo civilizatório. Até muito recentemente, as mulheres tinham o mesmo CPF do marido, eram retratadas como frágeis, fúteis, incapazes. "Entrei num avião e o comandante era mulher" já foi uma piada da qual todos riam. Quando o Brasil conseguir encarar este problema e resolver com sensatez e olhar humano, a questão do parto terá uma mudança mais acelerada devido à importância psicológica e na história pessoal da mulher.

Pouco importa o discurso que se faça, nenhuma ação que apóie o poder dos caciques da velha política contra mulheres que os intimidam terá o condão de resolver questões femininas. Serve para lacrar nas redes sociais e também para consolidar estruturas que deveriam ter sido derrubadas há muito tempo.