Nos últimos anos, o PT ficou cada vez mais distante de sua base. A união de operários, sindicalistas e uma pitada de intelectuais virou partido sob o abrigo das Comunidades Eclesiais de Base na Igreja Católica. O próprio Lula é quem fala disso abertamente, conforme detalhei num artigo tempos atrás.
Com o tempo, os intelectuais viraram o carro-chefe do partido, que tem Lula como única liderança absoluta e incontestável. Na última campanha, durante uma entrevista, Ciro Gomes contou uma história que ilustra o ponto em que o PT está melhor do que qualquer explicação. Ele foi ministro do primeiro governo petista.
Segundo Ciro, logo nos primeiros meses do governo, encontrou em eventos sociais integrantes do PT que já conhecia. Eram pessoas sem frescura, ligadas ao sindicalismo, que costumavam pedir cerveja com um tapa no balcão do bar. No encontro, a surpresa com a mudança de comportamento. Já estavam deslumbrados falando sobre qual vinho era mais amadeirado ou tinha notas frutadas. Para Ciro Gomes, aquele era um sinal de alerta.
Houve uma gourmetização da militância petista nos últimos anos. O pequeno grupo de intelectuais que ornamentava o partido à época de sua fundação virou o centro gravitacional do pensamento. Teorias do identitarismo dos Estados Unidos foram importadas de maneira acrítica para a realidade brasileira. É ótimo para que o parque de areia antialérgica tenha a sensação de ser um Che Guevara. Mas afasta o povo, que tem problemas concretos.
Nas últimas semanas, a imprensa traz entrevistas com um tal de "pastor do PT", que teria um plano para aproximar Lula dos evangélicos tradicionais. A estratégia incluiria um podcast e grupos de WhatsApp. É suficiente para o pastor, que não conseguiu se eleger vereador em São Paulo, virar deputado. Mas só se ele for milagreiro para conseguir fechar o abismo entre o PT e os evangélicos. Pode ser que milagre venha de outro santo, o "Foro de São Paulo" do B.
É palavra corrente que o tal pastor, figurinha carimbada no ilustre website evangélico Fuxico Gospel, entregou a Lula um plano de conversão de evangélicos ao petismo. Chegou até a grande estrela do PT por meio de um amigo em comum, ligado ao sindicalismo do ABC. Um encontro de 15 minutos entre os dois teria virado conversa de mais de 2 horas. Como história de Cinderelo Petista está sensacional, como estratégia eu tenho minhas dúvidas.
"A pergunta é muito simples: o que na sua vida melhorou? Quanto na sua igreja tinha de receita, na época de Lula e Dilma, e quanto tem de receita hoje?", disse o tal do "pastor do PT" em entrevista à Folha de São Paulo. Difícil que alguma autoridade religiosa seja convencida por esse discurso. E não porque pastor não faz conta, mas exatamente pelo contrário, porque faz. É uma conta que todos têm na cabeça, não é argumento novo. Ainda por cima, é o mais puro suco de preconceito contra evangélico pentecostal, o tal do dinheirismo da Teologia da Prosperidade.
Talvez o "pastor do PT" e seu podcast sejam uma boa vitrine e emplaquem um mandato no legislativo. O tal do plano de conversão do evangélico ao petismo que ele deu a um amigo para entregar a Lula ninguém viu. Outro, no entanto, muita gente viu e é profissional. "Resistir com Fé: Evangélicos e Trabalho de Base" é uma cartilha de doutrinação política feita por uma espécie de "Foro de São Paulo" do B, o Tricontinental.
Muitos conhecidos já me perguntaram, com curiosidade genuína, por que eu nunca havia feito cobertura sobre o tal Foro de São Paulo. Eu havia, mas eu também conhecia profundamente as organizações do gênero. Ele não é e nunca foi a mais forte, mais tradicional nem mais longeva das organizações de união mundial das esquerdas. Há várias outras mais fortes, mais influentes e com mais capilaridade.
Se você ainda não conhece, apresento o Tricontinental, que hoje é o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Ele tem 56 anos de fundação e surge em Cuba em plena revolução socialista, em 1966. É fruto da união de movimentos ainda mais antigos.
O primeiro é o MNA, Movimento de Países Não-Alinhados, com 23 países asiáticos e 6 africanos que tentavam uma forma de ficar de fora dos conflitos da Guerra Fria. Foi instituído em 1955, na Indonésia. O outro é a AAPSO, Organização Solidária Afro-Asiática que, na época, unia países em guerras de libertação contra grandes potências e existe até hoje. Em 1966, numa conferência em Cuba, as duas organizações criaram uma terceira, integrada também por países latinoamericanos, a Tricontinental. Ela é quem fez a cartilha de conversão de evangélicos à esquerda.
A cartilha do Tricontinental não é um improviso. Ela tem bases acadêmicas e é elaborada dentro da lógica da experiência de mais de 50 anos de militância que se denomina antiimperialista em 3 continentes. Fala especialmente do Brasil. "A mudança da paisagem religiosa brasileira tem impactos na política e na luta de classes: se não conseguimos nos comunicar mais com o povo, mover corações e mentes para a luta, não avançamos no projeto popular para o Brasil. Temos como objetivo compreender as bases dessa nova configuração de classe que passa a ser essencial para a Batalha de Ideias", prega o Tricontinental.
A cartilha é composta de 8 partes:
1. Quem são os evangélicos?
Uma ampla contextualização histórica do protestantismo, sua vinda para o Brasil, o início do movimento pentecostal brasileiro, o florescimento das igrejas neopentecostais e o crescimento do movimento evangélico brasileiro como um todo.
Não podemos generalizar os evangélicos
Essa parte fala da pluralidade do movimento evangélico com um recurso ideológico ardiloso. A esquerda que xinga evangélico o dia inteiro nas redes sociais é o identitarismo, o parque de areia antialérgica das elites urbanas, que hoje domina o debate nesse campo ideológico. Mas aqui há uma explicação genial. A direita teria criado uma armadilha para a esquerda achar que o evangélico é branco e reacionário e assim afastar os progressistas do povo.
2. Por que o movimento evangélico cresceu tanto?
Aqui se explora, com entrevistas reais e trabalhos acadêmicos, o que as pessoas buscam nas igrejas evangélicas e o que encontram lá. Há relatos até de integrantes do MST que são evangélicos e dizem que fé é prioridade sobre qualquer ideologia.
3. O que a esquerda pensa dos evangélicos?
Este tópico explora os estereótipos feitos dos evangélicos, a crença de que o movimento seja monolítico e traz uma espécie de 10 passos dos Alcoólicos Anônimos para reconhecer as falhas, reparar os danos que causou e aprender a agir de maneira diferente com quem foi ferido.
4. O que os evangélicos pensam sobre a esquerda?
É um levantamento bastante cuidadoso e objetivo sobre opiniões de evangélicos de diferentes segmentos ideológicos e sociais sobre a esquerda brasileira. Tem uma visão estratégica sobre quais dessas opiniões poderiam ser vistas como "mistificações" e então enfrentadas pela militância nas bases.
5. O que é fundamentalismo religioso?
O conceito de fundamentalismo religioso aqui não é o clássico, é sempre visto sob o prisma de quem poderia ou não se aproximar de movimentos políticos de esquerda. A cartilha considera que "nem todos os evangélicos são fundamentalistas" porque mostra que há efetivamente grupos mais progressistas e até de esquerda. O que é classificado como fundamentalismo vem detalhado em conceitos objetivos e com análise de práticas discursivas.
6. Quem disputa a fé a partir de dentro?
Para pessoas religiosas, pode parecer uma pergunta sem pé nem cabeça. Entender o tópico pressupõe pensar que o centro da vida da pessoa não é Deus, é a ideologia da esquerda antiimperialista. Evangélicos de ideologia política de esquerda ou progressistas são vistos como agentes que poderiam "disputar a fé", ou seja, disputar aliados ideológicos agindo dentro das igrejas.
7. O diálogo espinhoso entre religião e gênero
A pauta de costumes é inegociável até para os evangélicos mais progressistas. São absolutamente minoritárias as exceções que toleram o identitarismo dominante sobre o pensamento atual da esquerda, principalmente o patrulhamento de linguagem e a imposição forçada de questões importadas dos Estados Unidos. Cito uma que dá polêmica, banheiro unissex em escola. O enunciado diz que a cartilha encontra uma forma de desconstruir o fundamentalismo em torno do tema. Na realidade, instrui a ocultar a real agenda sobre o tema para criar pontes.
8. Batalha de Ideias: como falar e o que falar?
Segure a língua antes de ridicularizar ou de lançar a máxima de que "comunista não sabe falar com cristão", como já ouvir por aí. Sabe sim. Quem já vivenciou as Comunidades Eclesiais de Base pode contar melhor a história. A ideia é muito semelhante, a de aprender a fazer uma leitura bíblica da nossa realidade e provocar entre os evangélicos "ações proféticas". Na prática, seria uma espécie de denúncia das injustiças dos tempos atuais nos mesmos moldes que os profetas bíblicos faziam, mas mediada pela ideologia de esquerda. É um método que leva em conta a espiritualidade das pessoas para fazer com que elas sejam convertidas a um projeto político.
Trechos da cartilha
Para conhecer alguns desses movimentos evangélicos progressistas: Frente Evangélica Pelo Estado Democrático de Direito, Evangélicas pela Igualdade de Gênero, Feministas Cristãs, Movimento Negro Evangélico, Frente Evangélica Pela Legalização do Aborto, Rede Fale, Evangélicxs, Coalização de Evangélicos pelo Clima, Rede de Negras Evangélicas, Cristãos Contra o Fascismo, Coletivo Vozes Marias, Movimento Social de Mulheres Evangélicas do Brasil, Coalização de Evangélicos Contra o Bolsonaro. Além de evangélicos e evangélicas que estão e são lideranças nos movimentos populares, como MST, MTD, Levante Popular da Juventude, movimentos urbanos de moradia; pessoas que trazem as vivências e identidades, entre elas evangélica, para o trabalho de base, dialogando e atuando com o povo diariamente, e construindo a luta e o movimento sem que por vezes os companheiros e companheiras saibam sua identidade de fé. Essas pessoas preferem não se expor, muitas vezes, por não se sentirem acolhidos em sua espiritualidade por grande parte dos militantes não religiosos que reproduzem o senso comum, conectando a fé evangélica diretamente ao fundamentalismo.
Essa narrativa contra a “ideologia de gênero” foi a bandeira da direita cristã, surgida no catolicismo, que o campo popular tem se debruçado para desconstruir e que, ao não reconhecer a profundidade da fé das mulheres evangélicas e tudo a mais que vem com essa fé, deixamos o adversário de frente para o gol.
Uma outra desconfiança no diálogo: quando apresentado novas ideias, os crentes irão querer verificar na Bíblia e com o seu pastor ou pastora para ver se isso é ou não é de Deus. É muito importante adentrarmos no universo bíblico, dado que ele é hoje o principal, quando não único, livro que a classe trabalhadora acessa.
Setores conservadores e fundamentalistas nunca largaram de mão, e continuam a dizer que detêm o poder e controle sobre ele, que há apenas uma única visão acerca da Bíblia. Na tradição latino-americana, temos a preciosidade do método da Leitura Popular da Bíblia (LPB), que surgiu a partir dos encontros populares e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) na tentativa de encontrar correlações bíblicas para a história do povo sofrido. A LPB possui método de leitura que consiste na tríade: Realidade – conviver com o povo, aprender o que eles sabem, ser povo; Bíblia – trazer a Bíblia para o diálogo com o cotidiano, para a realidade, e buscar respostas; Comunidade – partilhar o pão, a vida, através da transformação comunitária da realidade .
Nesse contexto, nesse livro, as ideias também podem ser, para o evangélico, pecaminosas! Por isso, a linguagem adequada é necessária para conseguirmos nos comunicar com os setores evangélicos. Mas, cuidado, não adianta falar de Deus se você não acredita em Deus, adequar a linguagem não é falar a partir da voz do outro, mas ter uma linguagem comum, que comunica, entender a filosofia do outro que dialogue com a nossa filosofia, transformando esse diálogo no novo. Não é, de forma alguma, imitar um trejeito crente, o povo não é tonto.
Os evangélicos são muito bons na oratória, no convencimento da Palavra, no conhecimento e, além de tudo, as práticas litúrgicas do pentecostalismo e neopentecostalismo utilizam instrumentos que fortalecem a Palavra, a partir de construções estéticas que se constituem para esse convencimento. São formados para isso e são leitores vorazes da Bíblia, além de excelentes músicos. Aline, militante do MST, que é católica, em seu trabalho de base em Maceió diz: “Nossa missa é muito maçante, quase fomos convertidas quando fomos para o culto!”
A gente não vai conversar com os evangélicos querendo falar da religião dele, para isso ele tem a comunidade de fé, a gente não quer e nem vai substituir a igreja. Mas, dificilmente um evangélico não falará da fé, e quando isso acontecer, precisamos estar atentos e atentas, com os ouvidos abertos, para aprendermos e, quando for necessário, fazer algumas conexões a partir desse diálogo. Trazer, onde conseguimos, o concreto das nossas pautas, onde conseguimos somar na comunidade, dessa rede, com o trabalho de base e batalha de ideias.
Queremos mesmo entender os fenômenos e tudo o que está envolto nele? Vá ao culto, entenda a liturgia, escute o que o pastor, a pastora está falando, os olhares, o sentimento ali presente, não para olhar o “outro”, aquilo que não sou eu, mas para enxergar também em si o que move e comove a nossa classe;
Uma coisa básica que vale a pena saber: o transe não é necessariamente charlatanismo, há muitos elementos espirituais e da psicanálise que compreendem o fenômeno como genuinamente verdadeiros. Respeitar a experiência religiosa e espiritual é essencial, não apenas para com os evangélicos!
Vale considerar também: evangélicos (maioria) se identificam como conservadores, ou seja, o termo não é um problema para eles, é uma identidade
Os crentes têm um papel ativo em suas comunidades. Fazer uma célula progressista na periferia sem disputar a narrativa fundamentalista das igrejas é um risco muito grande, dado que estamos convencidas que o povo não vai sair da igreja e que a igreja pode ser um espaço de acolhida, espiritualidade, lazer e tudo mais. Ela não precisa ser o único espaço, mas que tudo bem ela continuar sendo, contanto que as tantas formas de opressão sejam disputadas e desconstruídas
O campo popular ainda precisa compreender que a Bíblia é um elemento de fé importante para a classe trabalhadora, e que esse fiel é também interseccionado pelas múltiplas opressões que o neoliberalismo submete a todos e todas. Vale lembrar que a Bíblia foi e é instrumento de resistência e luta em nossa América Latina.
As igrejas evangélicas adentraram nas comunidades, realizaram trabalhos concretos, dando respostas muitas vezes imediatas para a população mais empobrecida. Não apenas distribuindo terminologias crentes abstratas, mas SENDO ÚTEIS, criando legitimidade a partir de uma aproximação constante e concreta, dialogando com as demandas mais profundas de nosso povo. Podemos falar da lógica salvadorenha – método absorvido dos vietnamitas – que tinha um caminho muito similar ao que tem acontecido nos territórios dominados pelas igrejas evangélicas atualmente: você tem que entrar nas comunidades, fazer um trabalho ali, conquistar as mentes e os corações das pessoas para nosso projeto. Como os vietnamitas fizeram isso? Eles diziam: você não vai ganhar nenhum coração espalhando e distribuindo terminologias marxistas, você tem que ser útil, ajudá-los a resolver as necessidades fundamentais; quando você prova para o povo que você é útil, se torna legítimo naqueles espaços, então você pode falar de outras coisas. Essa tática atualmente orquestrada pelas igrejas nas periferias, tão semelhante às nossas experiências históricas de luta nos territórios, é fundamental no trabalho das igrejas, ou seja, se fala de Deus, da Bíblia, claro! Mas não só!
Diversos estudiosos apontam que essas metodologias transformadas em discursos mais individualistas a partir da Teologia da Prosperidade foram fruto de um projeto de poder imperialista muito bem orquestrado contra a Teologia da Libertação, que àquela época era vista pela direita cristã estadunidense como uma ameaça aos domínios dos Estados Unidos no continente latino americano.
Vimos como as falácias da “ideologia de gênero” são trabalhadas com a classe trabalhadora, e que palavras como feminismo e gênero foram deturpadas, com a ameaça que destruiriam as famílias. Por isso precisamos pensar como criar e manter a Batalha de Ideias, pensando estrategicamente quais as melhores palavras, momentos e pautas para iniciar esse diálogo. Tendo como premissa que eles acontecerão a partir de relações e laços de confiança com os evangélicos a partir do trabalho de base nos territórios.
O que nos une é a concretude da vida cotidiana. Não queremos substituir a fé ou a igreja, mas, antes, criarmos um relacionamento e entendimento que ambos trabalham em prol da dignidade humana, da vida abundante que os evangélicos tanto acreditam, para o alimento, o trabalho, a saúde, a moradia e educação que tanto precisamos. Mas devemos estar preparados para compreender a linguagem religiosa, e como trabalhar nas multiplicidades de interpretações que existem, interpretações libertárias e não fundamentalistas.
Militante profissional x militante tabajara
A cartilha feita pelo Tricontinental é de uma qualidade profissional impressionante. Traz ponto a ponto os desafios e instrui militantes de esquerda sobre a coexistência com igrejas fazendo trabalho de base nas comunidades. Além disso, propõe a leitura "crítica" da Bíblia, mais conhecida como a lenda de que Jesus também era socialista. Consiste em encontrar no Evangelho elementos que possam ser categorizados de acordo com as teorias políticas do nosso tempo.
Falando assim, parece patético. Mas é um plano que envolve confiança, sentimento e solidariedade. O convencimento vem depois de criados os laços. Foram assim que se desenvolveram as Comunidades Eclesiais de Base nas décadas de 1970 e 1980. O PT surge dali e se fortalece como partido. Já o vínculo religioso com a Igreja Católica começa a ser rompido. A leitura da Bíblia surgida dali parte do conceito de fé com obras para apenas obras, desprezando a fé e a mística, transformando a experiência religiosa quase numa ONG. Entre ONG e partido político, o segundo é mais efetivo.
A minha dúvida é só uma: quem executaria este plano? A cartilha cita diversas organizações e nomes do MST, por exemplo, que não são conhecidos na grande mídia e fazem trabalho de base. Já a esquerda que defende Lula nas redes e tem voz na grande mídia não vai ler a cartilha porque dá trabalho nem vai fazer trabalho de base porque tem nojo de pobre. É vista como arrogante na periferia. Será que essa repulsa poderia ser vencida por trabalho de base? Esta é a questão.
Os Che Guevara de apartamento imaginam o que seja a vida real na periferia, já viram Cidade de Deus, o filme da Petra Costa e uns livros do Sebastião Salgado. Quando falam disso, soam pior que funkeiro mandrake fingindo ser crente para sair com a filha do pastor. Na era das Comunidades Eclesiais de Base, não era diferente. Muda agora o impacto da comunicação. Falarão mais alto os que ocupam a mídia e as redes sociais ou os que estão na base, no mesmo lugar que as igrejas?
Poucas vezes você vai ver pobre rindo mais do que em palestra do parque de areia antialérgica na periferia. Geralmente, eles explicam como vão salvar a periferia do que eles querem salvar. Uma vez estive em uma de parto em casa na água e direito ao aborto. Na época, a reivindicação das mulheres daquela localidade específica era a presença de um anestesista de plantão que também pudesse atender partos naturais. Só era possível anestesia em cesária.
Apesar das risadas durante e ao final, das perguntas incômodas da plateia, da insistência para mudar de assunto e falar de algo realmente necessário, o pessoal saiu achando que salvou a mulher periférica mundial. E postou isso nas redes com muita alegria. Afinal, dane-se a mulher periférica. O importante é a amiga da Vila Madalena botar um crochê na árvore em homenagem à heroína que salvou toda a periferia da galáxia. Nunca mais teve palestra desse pessoal no mesmo lugar.
Lula já falou abertamente que mira nos evangélicos. A cartilha do Tricontinental está aí, de graça, para o militante que quiser. No entanto, a militância gourmet do Lulismo continua trabalhando para Jair Bolsonaro. Só nos últimos dias já tivemos:
- defesa de "aborto" com 24 semanas - SEIS MESES - de gravidez
- elogio à invasão da Ucrânia por Putin
- defesa de invasão de igreja durante a missa para xingar padre
Nem progressista defende isso. Essa estratégia de ser sempre o do contra para esfregar na cara de bolsomínion uma opinião já deu errado. Vão repetir?
O ponto final é a obsessão de Lula em cada eleição. Na primeira dele, era aquele repeteco da história de não ter diploma universitário. Ninguém mais aguentava ouvir aquela lenga lenga - e ficava parecendo que ele estava desestimulando os jovens a estudar. Estudar e ter sucesso não são necessariamente relações de causa e consequência. Estudo é importante para o desenvolvimento humano e para criar oportunidades, não é uma razão de quantos anos estuda para quanto ganha. Chegou uma hora em que até o Ricardo Kotscho pediu para o Lula parar de falar nisso.
A nova obsessão é a tal da "regulação" da mídia que nem a Dilma aceitou. Quanto mais falar nisso, menos chance de simpatia do meio evangélico. A regulação é vista como uma forma de calar conservadores para impor a visão de mundo que o parque de areia antialérgica importou do progressismo elitista dos Estados Unidos. Muita gente diz que não, que seria tal como na Alemanha e Inglaterra. Eu li as 500 páginas do projeto e não é nem um pouco parecido.
Encerro com algo que me saltou aos olhos na cartilha e nos materiais que ela recomenda. São inúmeras as citações de que os evangélicos da periferia dizem ser conservadores e vêem a esquerda e os progressistas como arrogantes. A cartilha confirma. A forma condescendente como fala da experiência de fé e o passo a passo para manipular a fé em adesão ideológica me parece uma cartilha de manejo de espécies selvagens. Já li algumas. O problema é que elas funcionam.
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