A linguagem de gênero neutro é defendida por diversos grupos ligados à pauta identitária na internet. O principal argumento é que eliminar a diferença de gênero nas línguas latinas nos levaria a eliminar o machismo, já que o plural é masculino mesmo que sejam mil mulheres e um homem. O governo da França colocou um ponto final na moda e proibiu a inovação em todos estabelecimentos de ensino.
Muita gente implica com os justiceiros sociais, mas a tese da linguagem de gênero neutro combate o machismo. Nos anos 1970, o Paquistão reconheceu o Inglês como língua oficial, gênero neutro. Naquela época, a vida no país era muito semelhante à ocidental, mulheres livres mas muito machismo. Vinte anos depois, a Sharia, lei islâmica de costumes, se tornou a lei oficial do Paquistão e as mulheres... Não, espera.
Defensores da linguagem de gênero neutro tentam fazer parecer que estão falando de fatos ou opiniões quando falam de fantasias. Nunca se provou nenhuma relação entre gênero neutro na linguagem e qualquer alteração na sociedade. Aliás, nunca nem se tentou provar porque a realidade pouco interessa.
Aqui não falamos de militância, falamos de auto-ajuda disfarçada de militância. Se não causasse prejuízo a ninguém, talvez fosse só ridículo. O governo francês proibiu linguagem gênero neutro porque causa danos. Prejudica o aprendizado e exclui principalmente estudantes com deficiências.
Adotar o gênero neutro depende de malabarismos linguísticos feitos de forma descoordenada e aleatória via internet. Há quem defenda que quanto mais melhor, então diria "amigAs, amigOs e amiguEs". Já outros defendem simplificar em um único conceito abrindo mão do gênero e dizer apenas "amigXs" ou "amig@s". Alias, se você souber a pronúncia, por favor me informe.
Em francês, a proposta mais popular entre defensores do gênero neutro incluía colocar um ponto no meio das palavras, tanto no singular quanto no plural. Os ativistas deles não são tão esculhambados quanto os nossos. Enquanto a gente fica decidindo em guerrinha de vídeo no Instagram qual é o gênero, os franceses produziam um manual para ser usado em todas as escolas primárias.
Masculino e feminino em francês são indicados de forma diferente do português. Em vez da diferença entre "o" e "a" ao final, os substantivos femininos têm um "e" a mais no final da palavra, às vezes dobrando a última consoante. Seguindo a lista da foto, o masculino é "chef" e o feminino é "cheffe". A nova palavra separaria com um ponto as duas versões e o plural, seria chef.fe e, no plural, chef.fe.s.
Façamos um exercício em português da proposta francesa de gênero neutro. Seria como se descartássemos nossas propostas de amiguEs, amigXs ou amig@s. Abraçaríamos então uma versão mais inclusiva, amigo.a e, no plural, amigo.a.s. Presidente, por exemplo, ficaria presidenta.o. Não, espera. De repente deixa presidente mesmo. Não sei, estou perdida aqui imaginando a alegria das professoras alfabetizadoras diante da novidade.
Prevendo que sempre aparece um doido com uma ideia mirabolante, em 1635 o Cardeal Richelieu oficializou a Académie française, instituição encarregada de proteger e regrar a língua francesa. Pela primeira vez na história uma mulher está à frente da instituição, no cargo de secretária perpétua. Trata-se de uma das maiores intelectuais da França, a historiadora Hélène Carrère d'Encausse.
Nós tratamos cultura e educação como algo menor, menos importante que economia, política ou defesa, por exemplo. Países mais antigos não. O que forma uma nação é o povo, não seu governo. Pessoas são unidas por laços que não estão escritos em lei nem fazem parte do jogo do poder. Esses laços, entre os quais estão a língua e a cultura, podem não ter peso imediato nas mudanças, mas determinam como será o futuro.
O ministro francês da Educação Jean-Michel Blanquer já havia dito que ia cuidar para que houvesse uma só gramática, do mesmo jeito que há uma só língua e uma só República. No último dia 5, enviou uma circular a todas as instituições de ensino do país proibindo gênero neutro e exigindo o correto ensino da língua francesa. O cabeçalho, duríssimo, foi escrito pela secretária perpétua da Academia Francesa, Hélène Carrère d'Encausse.
“Num momento em que a luta contra a discriminação sexista envolve combates relacionados em particular à violência doméstica, disparidades salariais e os fenômenos do assédio, a escrita inclusiva, se parece fazer parte deste movimento, não é apenas contraproducente para este movimento, mas prejudicial à prática e inteligibilidade da língua francesa.
Uma linguagem procede de uma combinação secular de história e prática, que Lévi-Strauss e Dumézil definiram como "um equilíbrio sutil nascido do uso". Ao defender uma reforma imediata e abrangente da grafia, os promotores da escrita inclusiva violam os ritmos do desenvolvimento da linguagem de acordo com uma injunção brutal, arbitrária e descoordenada, que ignora a ecologia do verbo."
Hélène Carrère d'Encausse, secretária perpétua da Academia Francesa e Marc Lambron, atual diretor da Academia Francesa, 5 de maio de 2021.
O documento reconhece que a linguagem não muda apenas naturalmente, ela também pode ser reformada por inúmeras razões com o avanço da sociedade. Só que isso é feito de maneira organizada e pensada. Em 2017, por exemplo, o governo já fez uma regra sobre feminização de funções públicas em todo o serviço oficial francês.
São regras simples. Funções que não tinham nome feminino como, numa referência aleatória, capitão, passaram a ter um capitã. Além disso, o governo determinou que, ao se citar uma função, sempre se coloca o feminino e o masculino. Num concurso, por exemplo, se substitui o plural natural "os candidatos", que já engloba masculino e feminino por "os candidatos e as candidatas". Desconfio que isso tenha o dedo de José Sarney, que inaugurou por aqui o "brasileiras e brasileiros".
"A igualdade entre meninas e meninos, prelúdio da igualdade entre mulheres e homens, deve ser construída, promovida e garantida pela Escola da República. Constituinte da igualdade real de oportunidades, é de fato inseparável da promessa republicana de emancipação de cada indivíduo. A ação da Escola nesta área insere-se num vasto plano que inclui, a formação de todos os colaboradores, a transmissão de uma cultura de igualdade, o combate à violência de gênero e sexualidade e uma política de orientação a favor de mais diversidade nos setores e profissões. Também envolve a promoção e o uso da feminização de certos termos, em funções particulares, respeitando as regras gramaticais.
Estes objetivos não devem ser penalizados pelo recurso à escrita dita “inclusiva”, cuja complexidade e instabilidade constituem tantos obstáculos à aquisição da linguagem como da leitura. Essas armadilhas artificiais são tanto mais inoportunas quanto atrapalham os esforços dos alunos com deficiência mental admitidos no âmbito do serviço público da escola inclusiva.", diz o comunicado do Ministério da Educação da França.
Aos defensores da linguagem de gênero neutro, o ministro da Educação francês lembra: "Nossa língua é um tesouro precioso que queremos compartilhar com todos os nossos alunos, em sua beleza e fluidez, sem brigas e sem instrumentalização".
Há um mercado gigantesco para a militância gourmet, o mesmo filão da autoajuda mas com dividendos de imagem ainda melhores. Na autoajuda, o consumidor admite fragilidade. Na autoajuda disfarçada de militância, o consumidor é uma pessoa fantástica e guerreira que luta bravamente pelos menos favorecidos. A "luta" consiste em levantar hashtag, falar mal dos outros pelas costas, apontar defeito e corrigir vocabulário.
As meninas maldosas de colégio particular dos anos 80 estão de volta, mas não terão mais a condenação social. Agora podem humilhar todo mundo em público tendo uma desculpa moral. Mais que isso, não estão humilhando, estão
"educando" quando corrigem o vocabulário dos outros em público e só fazem isso para educar o máximo possível de pessoas. Esse é o mercado da linguagem de gênero neutro. Na França, a molecada foi parar na diretoria.
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