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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Funerária chega à Suprema Corte após proibir diretor de se vestir como mulher

Se uma obra de ficção centrada no dress code de um atendente de funerária mobilizasse as altas esferas do Poder Judiciário e afetasse conquistas históricas das mulheres, obviamente a gente diria que é inverossímil. O caso "Harris Funeral Homes", que tramita atualmente na Suprema Corte dos Estados Unidos, supera a criatividade dos grandes romancistas. Não sei que tipo de ficção competirá com a nossa realidade.

Comecemos com a Harris Funeral Homes, uma empresa funerária tradicional, dessas que a gente vê em filme e seriado nos Estados Unidos. É uma empresa familiar que está na 5a geração, com mais de 100 anos de tradição e excelência reconhecida pela comunidade e imprensa local como a melhor de sua região, no Estado do Michigan. No Brasil, funerais e enterros são feitos geralmente nas primeiras 24 horas após a morte, mas o costume norte-americano é diferente. Os corpos são embalsamados e é feita uma recepção mais ou menos uma semana após a morte. Há cursos certificados para atender esse momento e essas famílias.

"A Harris Funeral Homes reconhece que sua maior prioridade é honrar a Deus em tudo o que fazemos como empresa e como indivíduos. Com respeito, dignidade e atenção pessoal, nosso time de profissionais cuidadosos empenha-se para superar as expectativas, oferecendo opções e assistência concebidas para facilitar o processo de cura e plenitude ao servir as necessidades pessoais da família e amigos quando eles passam por uma perda em suas vidas." - diz o estatuto de missão da empresa.

Há diversos detalhes envolvidos no processo de colocar a cura e o bem-estar do cliente à frente das necessidades do staff, um deles é o dress code. E foi exatamente por ele que a Harris Funeral Home foi parar na Suprema Corte dos Estados Unidos.

A explicação por trás do dress code é psicológica: o staff não deve ser foco das atenções no momento do luto, o cliente enlutado sim. Por isso, quando mais parecidas forem as roupas e mais adequadas ao tipo de conversa que se tem ali, melhor. Não se trata de nada complicado, uma espécie de esporte fino evitando coisas que distraiam o cliente, já que os negócios de uma funerária são feitos nos momentos mais dramáticos das vidas das pessoas.

Havia um manual completo de dress code para homens e outro para mulheres. E foi justamente aí o problema. Um funcionário que assinou contrato concordando com o dress code para homens, anos depois anunciou que passaria a usar o dress code de mulheres. A funerária não aceitou e foi processada.

O funcionário tinha o cargo de diretor de funerais e assinou o contrato concordando com o uso do dress code do sexo masculino. Seis anos depois, em 2013, ele pediu ao dono da funerária, Tom Rost, para se vestir e se apresentar como mulher ao receber as famílias enlutadas para discutir detalhes do velório, enterro ou cremação e apoio emocional para o luto. O que você faria diante de um pedido desses?

Tom Rost resolveu colocar na balança as necessidades de todas as partes envolvidas: as do diretor de funeral, dos outros funcionários e dos clientes da casa funerária. Decidiu não acatar o pedido para a mudança do dress code feminino para o masculino. Legalmente, se sentia seguro: havia um contrato assinado concordando com o dress code masculino e leis que garantem às empresas o direito de estipular códigos de vestimentas de acordo com o sexo.

Mas, no meio do caminho, tinha uma expressão: identidade de gênero. E, vejam bem, aqui não se trata dessa pataquada histérica e catártica de "ideologia de gênero" que domina as redes sociais com pouco conteúdo e muita bile. Trata-se de uma tecnicalidade que pode ter consequências devastadoras em conquistas históricas de direitos das mulheres. Uma agência governamental dos Estados Unidos processou a casa funerária porque o dress code não deve ser de acordo com o sexo, mas com a identidade de gênero.

A Harris Funeral Home foi processada pela Equal Employment Opportunity - Commission (EEOC) - Comissão pela Igualdade de Oportunidades de Emprego - por discriminação sexual. O argumento é que o dress code da empresa não pode ser feito por sexo, como manda a lei, mas tem de atender a identidade de gênero do funcionário.

A discussão, creio, não é sobre o direito das pessoas trans. Eu considero correto que a Riachuelo, por exemplo, adote nome social e dress code feminino para as pessoas trans já contratadas nessa condição. Flavio Rocha é um dos pioneiros na adoção do nome social na empresa e conheço diversos empresários que fazem o mesmo, uma atitude positiva, inclusiva e, sobretudo, humana. Conheço também alguns casos de pessoas que passaram em concurso na rede pública de ensino e, embora se identifiquem como mulheres e até se apresentem artisticamente como drag queens, preferem manter a identidade masculina em sala de aula.

A questão é como equacionar interesses e necessidades quando as mudanças são feitas durante o curso de um contrato de trabalho. No caso, não houve dúvida: optou-se pela via judicial. Uma empresa familiar enfrenta há 6 anos um processo que foi à Suprema Corte para decidir se o diretor de funeral pode passar a se vestir como mulher para receber os clientes.

Não há lei nos Estados Unidos que estipule a extensão de direitos femininos a homens que se identificam como mulheres. Mas a EEOC entende que, no caso do dress code, embora a lei diga "sexo feminino", tem de ser automaticamente adequado a "identidade de gênero feminino". E se, como é possível ocorrer dada a complexidade da alma humana, o funcionário resolver transicionar novamente para a identidade masculina? Vamos ter mais um baile jurídico até a Suprema Corte?

Os advogados da Harris Funeral Homes se apegam em um conceito jurídico específico: como uma agência governamental sem poder legislativo resolve redefinir legalmente o conceito de "sexo" para "identidade de gênero". Caso isso seja considerado válido pela Justiça, não se decidirá apenas o caso do diretor de funerais que quer se vestir de mulher, mas uma infinidade de outras situações. Nós, mulheres, conquistamos historicamente uma série de direitos que têm como base a desigualdade histórica e a necessidade de reparação. Homens que passam a se identificar como mulheres devem desfrutar desses mesmos direitos?

Abrigos públicos para mulheres devem acolher homens que se identificam como mulheres? E banheiros femininos? E vestiários? Bolsas de estudo direcionadas especificamente a mulheres devem ser disputadas também por homens que se identificam como mulheres? Pessoas trans têm direito a apoio e respeito e precisamos debater se a melhor forma é equiparação judicial com mulheres. Não é algo para burocratas definirem na canetada.

No caso em questão, o diretor de funerais se demitiu da empresa e entrou com a reclamação na agência governamental em 2013. Em 2016, a Justiça deu ganho de causa à Harris Funeral Home. A EEOC recorreu e obteve revisão da sentença, com ganho de causa no ano passado. A casa funerária pediu à Suprema Corte que ouvisse o caso e ela concordou - nos Estados Unidos, é algo dificílimo de acontecer. A sustentação oral foi apresentada na semana passada. Ainda não há previsão para a finalização do julgamento.

Para a Suprema Corte dos Estados Unidos, o caso não é de pauta identitária, é sobre algo técnico que afeta a vida de milhões de pessoas em todo o mundo: agências governamentais compostas por pessoas que não foram eleitas podem reescrever leis feitas por gente escolhida pelo povo para legislar? Um caso e tanto.

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