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Você já teve a impressão de que discussões muito quentes nas redes sociais e, ultimamente, até na mídia são completamente alienadas do que as pessoas estão discutindo? Provavelmente, nesses últimos anos, você já deve ter entrado em alguma confusão de rede social para depois pensar como se meteu naquela história.
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A Areo Magazine fez um exercício importante para explicar esse fenômeno por meio da matemática. Não é impressão sua que pequenos grupos com interesses muito específicos de uma bolha dominam o debate público. Vou confessar que sou da turma otimista, pensei que as redes sociais melhorariam esse fenômeno democratizando a informação. Infelizmente, depois da mudança dos algoritmos de 2010, acabou piorando.
"Fulano declarou tal coisa em sua conta no Twitter" vira notícia se o fulano for alguém importante ou famoso dizendo algo que renderá cliques para a publicação. Já fiz uma análise ontem sobre como a dinâmica das redes sociais influencia o jornalismo usando o caso Luis Miranda e as teorias do psicólogo Jay Van Bavel e da especialista em combate à desinformação Joan Donovan.
A abordagem da Areo Magazine é diferente e tem como base algo de que você muito provavelmente ouviu falar em outros contextos, o princípio de Pareto. Em 1906, o matemático Vilfredo Pareto notou a proporção 80/20 surgindo naturalmente em diversos cenários diferentes. Na Itália, havia uma consistência histórica de 20% das pessoas manterem 80% das terras. Mas também no jardim dele 20% dos pés de ervilha produziam 80% das ervilhas.
É algo que matemáticos em todo o mundo começaram a observar tanto na natureza quanto na organização da sociedade, sem que todos esses fenômenos tenham uma explicação clara. Por exemplo, 80% dos crimes são cometidos por 20% das pessoas, 20% dos filmes vendem 80% dos tickets. No mundo empresarial, essa ideia de proporção é muito usada para saber quais são os 20% de ações cruciais para entregar os 80% de um projeto, por exemplo.
O Twitter é feito de minorias, no sentido de que concentra uma fração pequena da população. Os assuntos que viralizam são postados por uma minoria dessa minoria de forma apaixonada. Há uma chance 67% maior de viralizar se for algo condenando o grupo oposto. Ocorre que só 2% dos usuários do Twitter conferem suas contas diariamente. Nem 5% da população está no Twitter. Ainda assim, tudo que é bate-boca dessa rede social vira tema da imprensa na hora.
É esse círculo vicioso que dá poder a minorias com interesses e hábitos muito específicos no mundo real. Vamos à matemática que, creio, salvará o Brasil. Estão no Twitter 4% da população do mundo e só 2% conferem suas contas diariamente. Estamos falando de 0,08% das pessoas. Entre esses, só uma minoria viraliza ou tem engajamento.
Como é possível que um ambiente em que apenas 8 a cada 100 mil pessoas debatem torne-se um divisor de águas na cobertura política, em eleições no mundo todo e até na forma como debatemos costumes? Vivemos o paraíso da minoria barulhenta. Agora, além de ajudada pela natureza e pela nossa organização social, ela conta com a mão amiga do algoritmo.
É um conceito que se chama de tecnocracia e se opõe à democracia. Em vez de emanar do povo, o poder emana dos que controlam os algoritmos. Para muitos, a medida de importância social e política passou a ser a repercussão nas redes sociais. Nós, jornalistas, estamos entre estes e levamos ao noticiário tradicional o que engaja nas redes. Ocorre que todas essas medidas podem ser manipuladas por quem domina a tecnologia. Tem funcionado.
Jornalistas não sabem diferenciar indignação genuína de um ataque em enxame, por exemplo. E estou falando da coisa mais artesanal possível, quando um bando de amigos se junta para chamar a atenção para uma causa ou tirar sarro de alguém que eles desprezam. É algo facilmente detectável porque muda o padrão de disseminação da informação completamente.
Ainda assim, você verá os dois casos amplificados de forma igual na grande mídia e jornalistas servindo de escada para ataques em enxame sem se dar conta. É diário. Não vou nem entrar nos meios profissionais e automatizados de burlar o algoritmo porque dá vontade de chorar. Ações que utilizam botfarms, impulsionamento e big data para burlar algoritmos são tratadas como fatos, polêmicas ou indignação verdadeira. Viram notícia.
A popularidade social e política está hoje condicionada não apenas a medidas manipuláveis e manipuladas, mas também submetidas a decisões empresariais das Big Techs. Tudo é mediado pelos algoritmos, que são uma caixa preta. Se os casos de sucesso nesse mundo super restrito e com regras obscura passam a ser tratados na grande imprensa como semelhantes à vida real, passamos à tecnocracia.
Nesta dinâmica, os mais radicais dobram os demais porque não adianta discutir com eles. A Areo Magazine cita um exemplo anedótico de Nassim Nicholas Taleb para ilustrar. Suponha que homens bebam cerveja e mulheres vinho nas suas festas. Quando você serve cerveja, elas não bebem nada. Quando você serve vinho, os homens tomam vinho. Se tiver de escolher uma bebida para o próximo evento, qual você serve? A preferida de quem não negocia.
O mesmo acontece nas redes. Há grupos radicais de todo tipo, mas os políticos vão nos chamar especial atenção neste ano pré-eleitoral. Quem quiser crescer até as eleições e, quem sabe, tornar-se importante neste cenário, precisa começar a arrumar rivais e bater neles incessantemente a partir de agora. Você verá os linchamentos aumentando porque dão certo, políticos viraram reféns dessa dinâmica.
Muita gente ainda tem a ingenuidade de fazer denúncias para as plataformas sobre esse conteúdo de assédio em massa. As Big Techs também ficam encurraladas. Imagine que você tenha um negócio que depende dos mais radicais entre 0,08% das pessoas para ser tão viciante quando você precisa para lucrar. É o caso deles. Já tem só 2% da plataforma entrando todos os dias, vai derrubar justo quem engaja mais?
Há uma expressão chinesa ancestral que traduz bem este ambiente que criamos, 紙老虎. Foi traduzida pela primeira vez no século XIX como o conceito de "tigres de papel". É aquele que tem o dom de parecer muito ameaçador mas, diante de desafios reais, colapsa. Mao gostava muito de usar essa expressão para referir-se a diversos governos ocidentais, comparando-os com a civilização chinesa, que antecede a romana.
As redes sociais são dominadas por "tigres de papel" porque foram desenhadas assim. Ocorre que os tigres de papel têm sido tratados pelos meios de comunicação tradicional como se fossem de verdade. Importa mais o que alguém fala, principalmente se for contra o grupo oposto, do que sua biografia, seu caráter e o que é capaz de fazer.
Não quero aqui tirar o direito de brilhar dos bravateiros e rancorosos. Que cada um tenha seus 15 minutos de fama. O problema é que, nesta simbiose de mídias sociais com imprensa tradicional, estamos dando poder sobre a vida das pessoas aos tigres de papel. E fazemos isso totalmente convencidos de que essas posições centrais foram preenchidas por tigres de verdade, capazes inclusive de defender os demais. Minorias barulhentas têm todo o direito de fazer o barulho que quiserem e merecem respeito. O problema é quando encontram a tempestade perfeita para concentrar poder.