Governo cubano proíbe acesso de jornalistas e artistas à internet.| Foto: Ernesto Mastrascusa/EFE
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Talvez você tenha visto hoje como novidade o corte de internet feito pelo governo de Cuba para calar seus cidadãos, no entanto é um método conhecido, debatido e publicamente condenado, com várias táticas diferentes que eu explico mais adiante. Este fato, o de ver a imprensa tratar como novidade algo que não é, dá a dimensão do poder das redes sociais.

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O debate das redes não mobiliza a atenção só dos cidadãos, das "tias do zap", hoje ele pauta a imprensa. Ao ver uma publicação com a qual veículos importantes ou jornalistas engajam, os demais jornalistas também precisam engajar. Outro dia vi alguém chamar isso de "ônibus da polêmica", acho que um cartoon. Todo mundo tranquilo postando foto de gato, bebê e comida até que vem o ônibus da polêmica.

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A Netblocks, monitor global da internet que é fonte de agências internacionais, publicou ontem um informe sobre os cortes de internet em 50 pontos de Cuba durante os protestos, que viralizaram. Agências internacionais publicam. O debate estava em alta e isso é inserido com o bonde andando, sem contextualizar. Muitas vezes, há ainda a informação equivocada de que os cortes foram após os protestos.

Daniel Boorstin cunha a expressão pseudofatos em "The Image", de 1962. Máquinas de relações públicas começavam a promover eventos e entrevistas coletivas que viravam notícia como se fato fossem. Agora este poder é exercido pelas Big Techs. Inseridos nas redes sociais, jornalistas passam a tratar tuíte e burburinho como se fatos fossem, o que é distópico.

Obviamente uma ditadura vai querer controlar uma máquina que tem este poder. A China, por exemplo, optou por um modelo em que não permite a entrada de plataformas estrangeiras. Há um Ministério do Cyberespaço que cuida especificamente desta área. Pelos motivos opostos, evitar manipulação, polarização e avanços contra liberdades, Taiwan tem seu Ministério Digital.

Aqui não se leva isso a sério. Não sei se por arrogância ou influência da cultura da gambiarra, boa parte das autoridades e formadores de opinião tratam internet como se eles soubessem mexer. Faz uma live, dois vídeos no TikTok, nem imagina até onde vai a brincadeira mas acha que já domina. O noticiário acaba contaminado por essa ode ao amadorismo e o público percebe.

Voltemos a Cuba. A 47a Assembleia do Conselho de Direitos Humanos da ONU teve como um de seus temas centrais o corte de internet como violação de liberdade. Foi apresentado um relatório só sobre o tema, que começou a ser feito em 2019. Já existem diversas técnicas para manipular pessoas controlando o acesso à internet sem esclarecer as regras. O documento mostra que Cuba vinha utilizando sistematicamente muitas delas.

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Não se trata de apenas uma denúncia, manifestação de um país específico ou desconfiança. Isso aconteceu em 2019. Agora há um relatório técnico, com dados do mundo todo mostrando os desligamentos da internet por vários governos e os fatos subsequentes. Houve um Relator Especial para a Liberdade de Associação e Manifestação encarregado disso durante dois anos. Vários governos foram chamados a se explicar, Cuba também.

No dia 6 de julho, como você pode ver nesse vídeo editado pelo portal Yucabite (principal fonte do relatório publicado hoje pela Netblocks e tratado como novidade), o governo cubano mentiu na ONU. O diplomata Jairo Rodrigues parece muito indignado ao rechaçar a referência a Cuba, com um adendo especial, no relatório sobre cortes arbitrários da internet.

É uma fala diplomática, um direito que o país tem. Não foi levada a sério no informe da ONU sobre o tema, que continuou acusando Cuba de várias formas de corte de internet. O diplomata também não nega os cortes, contesta a fonte, faz um ato político. Diz que não há credibilidade porque há informações vindas da OEA (Organização dos Estados Americanos), que não é reconhecida por Cuba.

O Conselho de Direitos Humanos da ONU já reconhece que os direitos digitais são imprescindíveis hoje para que os demais sejam exercidos. Há uma ideia de cientistas internacionais para incluir Direitos Neurais nessa pauta. O corte da internet é uma ferramenta a mais - e poderosíssima - à disposição de ditadores e manipuladores do mundo todo. Funciona em coordenação com outras ações.

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Em vários países do mundo, inclusive em democracias, têm sido registrados cortes manipulados da internet durante eleições e protestos. No caso de Cuba, é ainda mais complicado porque há também impedimentos direcionados a determinadas pessoas. Não falo aqui dessa perfumaria que move multidões, a coisa de derrubar post e derrubar perfil. Falo de impedir que uma pessoa tenha acesso a qualquer tipo de comunicação por internet.

O controle que um governo vai ter sobre a comunicação dos cidadãos pela internet depende de quem controla todas as empresas envolvidas nessa cadeia produtiva. No caso de Cuba, tanto os provedores quanto a empresa de celular pertencem ao governo, então trata-se de uma operação muito mais simples e efetiva do que em outros países.

Há basicamente 3 tipos de corte de internet em Cuba. Corte não explicado de todos os serviços de wi-fi e celular de artistas e jornalistas, como relata o portal Yucabite. Em alguns casos, a pessoa recebe uma ordem de prisão domiciliar sem processo e os serviços são cortados, ela fica incomunicável. Outro tipo de corte é a suspensão do acesso a determinados aplicativos de mensagens. E o terceiro é cortar toda a internet do país durante um evento específico.

Tirar a internet da jogada em um mundo que se conecta por internet e pensa que todos estão o tempo todos conectados muda tudo. Manifestantes têm menos capacidade de organização e vêem suas liberdades restringidas. Também há um impacto da história a ser contada pelo mundo. Acostumados a pescar informações nas redes sociais, os jornalistas não serão abastecidos pelos cubanos dessa vez. Na dinâmica rápida e polarizada do debate nas redes, isso muda opiniões.

Os cortes seletivos para calar pessoas específicas têm sido uma prática corrente, assim como prisões e prisões domiciliares arbitrárias em Cuba. Houve um protesto em novembro, menor que este, pedindo liberdade de artistas presos por questões políticas. Houve um corte generalizado de internet como reação. A seguir, o governo começou a atacar os que se organizavam pela internet, impedindo o acesso daquela pessoa específica.

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Você deve estar pensando que, se cortaram o celular ou o wi-fi da pessoa mas a deixaram em prisão domiciliar, ela pode muito bem usar o equipamento que está no nome de outra pessoa e entrar na internet. É a nossa realidade isso. Tudo quanto é influencer que se mete em encrenca com polícia e Justiça está bloqueado na rede mas faz live o tempo todo.

Só que lá é Cuba. Você emprestaria o seu celular para alguém que foi colocado arbitrariamente em prisão domiciliar e teve sua comunicação cortada na internet? Antes de bancar o valente em defesa da democracia, lembre que o governo detém controle total sobre a companhia de telefonia e os provedores de internet. Não é só o corte da internet, é o contexto em que ele se torna decisivo.

Os últimos protestos em Cuba foram mais graves, coisa de fazer Raúl Castro, que nem é mais presidente, reaparecer em público. O presidente Miguel Díaz-Canell fez um pronunciamento de televisão a todo o país contra os protestos. Durante o discurso, a internet de todo mundo foi cortada.

Nesses cortes gerais, os informes registram que a rede pública de wi-fi de Cuba, instalada em praças e equipamentos públicos, continua funcionando. Bom, então eles têm acesso à internet? Voltamos ao contexto, a pessoa que já está na mira do governo a ponto de ter sua internet cortada precisa sair de casa, no meio de um protesto para usar internet pública em outro lugar. Até pode ir, a gente só não sabe se volta.

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Então a iniciativa privada é a solução e as Big Techs vão nos libertar dos ditadores? Devagar com o andor. O exemplo mostra que a tirania se instala onde há excesso de poder e de controle. Liberdade é o direito de acesso ao cyberespaço sabendo as regras de funcionamento dele e controlando os próprios dados. Se alguém fizer isso por você, pode tomar sua liberdade, tanto faz quem seja.

É por isso que temos tantas discussões diferentes sobre o mercado de Big Techs, as empresas-Estado e a concentração de poder. Se uma empresa tiver a possibilidade real de controlar pessoas sem sofrer as consequências, como faz o governo cubano, por que ela não faria isso? As únicas razões são morais e, portanto, podem se dobrar ao dinheiro e se inebriar pelo poder.

Aqui no Brasil temos um exemplo de controle de poder pela iniciativa privada com impacto social muito grave. A associação de Big Techs com empresas de telefonia é decisiva para a montagem de esquemas de Fake News. Como assim? A maioria dos brasileiros têm pré-pago e muitos têm plano básico de dados. Só que agora se acessa de graça o WhatsApp, Facebook, Instagram, várias redes sociais.

Sensacional que as telefônicas estão dando essa colher de chá, tornando a internet mais acessível para o brasileiro, né? Também, mas é um dos principais fatores para criar a cultura da desinformação, em que nos damos satisfeitos pelas manchetes. Não é nem preguiça de ir atrás da notícia toda, é que não tem plano de dados para acessar isso, só que tem para ver o print no WhatsApp, vira hábito.

Não estamos numa história de mocinhos e vilões, estamos vendo a história ser escrita diante dos nossos olhos. Hoje, nós já aumentamos nossa capacidade usando máquinas que armazenam dados e nos interconectam. Como tudo o que é humano, tem o lado bom e o lado ruim. O uso da internet pode libertar uma pessoa, como é o caso dos manifestantes cubanos, ou aprisionar, como é o caso de quem se mete em grupos radicais. A culpa não é da internet. Até o amor pode nos libertar ou nos aprisionar.

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O desafio da regulamentação da internet é encontrar o equilíbrio onde há um poder com o qual ainda não sabemos lidar. Estamos acostumados à lógica de que poder não se dá, se toma. Ou o Estado controla na mão forte ou empresas com uma dinâmica de mercado onde só gigantes sobrevivem vão controlar. O equilíbrio está na Sociedade Civil, que precisa dar ao tema a importância que ele tem.