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Está programada para a semana que vem uma greve de funcionários da Netflix pedindo a derrubada do último especial de Dave Chapelle por ser ofensivo à comunidade trans. Se vocês me conhecem, sabem que sou contra e não tem justificativa capaz de me comover.
O Natal está chegando e teremos mais uma briga para derrubar na Netflix o Especial de Natal do Porta dos Fundos. Também serei contra. Para não perder tempo, deixo o posicionamento de alguns Natais atrás, que continua o mesmo.
Ah, mas você não é cristã? Sou sim. E não te ofende fazer toda essa pataquada com Jesus? Sinceramente, eu tenho dó de adultos com uma compreensão tão limitada sobre religiosidade e sagrado. Às vezes tenho inveja dessas análises feitas com a profundidade intelectual do Dollynho. Absoluta certeza de que minha vida seria muito mais feliz caso Deus me desse o dom da ignorância ousada.
Ainda não entendemos a sociedade em que o poder é organizado de acordo com a lógica dos algoritmos. Quem ganha poder e dinheiro? Quem engaja mais, atrai mais atenção, boa ou ruim. É o caso. Os especiais de Natal do Porta dos Fundos viraram garantia de faturamento e atenção da mídia. O de Dave Chapelle é, sem dúvida outro sucesso garantido. Aliás, ele é o comediante de standup com o show mais visto, que mais retém público e mais premiado. É outro, o Sticks and Stones.
Ah, mas então vai deixar um ofender Jesus e o outro ser transfóbico? Eu não vejo nos dois especiais nem uma coisa nem outra. Jesus foi crucificado e, pelo menos na minha Bíblia, pediu ao pai que perdoasse os algozes porque não sabiam o que faziam. Ele vai virar no Jiraya pela Netflix? Duvido. Quem diz que Dave Chapelle é transfóbico faz a militância de universo simbólico. Ele jamais disse que odeia pessoas trans, não acredita que elas existam, devem ser eliminadas, ter menos direitos, nada disso.
Ontem um leitor fez um comentário que me botou para pensar, em outro artigo, aquele em que o pai foi preso como transfóbico e difamado como terrorista doméstico ao reclamar do estupro da filha no banheiro do colégio. Ativistas podem sentir uma vitória transitória em casos como esses. Gritaram mais e calaram alguém. Mas quais serão as consequências? Não importa, pessoas trans não interessam a quem age assim, só importa ganhar poder no grupo.
As pessoas que agridem para defender a comunidade trans muitas vezes não importam-se com o resultado. Aliás, pessoas trans só são ouvidas pelo Justiceiro Social se concordarem 100% com ele. Antonio Augusto, meu leitor, brindou meu dia com um raciocínio sofisticado. Episódios absurdos são criados em nome da defesa das pessoas trans por pessoas que não são trans. Gente que não tinha ódio passa a odiar pessoas trans, infelizmente, e nem é por algo que essas pessoas tenham feito ou falado.
"Ah, mas precisa ser trans para falar de trans, mulher para falar de mulher, negro para falar de negro?" Para falar, opinar, expressar e defender a dignidade não. Para agir como representante de um grupo sem ter sido eleito, o mínimo que se espera é fazer parte do grupo. Dave Chapelle brinca com isso no último especial. "Sabe do que o movimento feminista precisa? De uma liderança masculina". Ele se apresenta como voluntário para a tarefa.
E isso não seria ofensivo porque diminui as mulheres, dá a impressão de que são incapazes de liderar, legitima um homem dizendo às mulheres o que fazer? Não é ofensivo, é uma PIADA. Eu, que sou mulher, rio demais dela porque lembra exatamente o raciocínio com o qual sou brindada diariamente por esquerdomachos nas redes sociais. Basta eu abrir a boca para receber deles uma lição de feminismo. Aliás, tem esquerdomacho brasileiro metido a dar lição de feminismo até para a Camille Paglia.
A greve pelo cancelamento de Dave Chapelle é autoritária. Já fui alvo. O Escola sem Partido fez uma ampla campanha de desassinaturas e ataques à Gazeta do Povo até que me demitissem. No ano seguinte, o Sleeping Giants meteu-se a pedir a cabeça de um dos diversos colegas que calaram diante do pedido da minha cabeça. Fiz questão de tomar posição pública contra o cancelamento. Sou contra e ponto final. Não vai haver justificativa moral que me coloque na posição covarde de apoiar isso ou calar diante de justiçamento.
Sobre a greve na Netflix contra o último especial de Dave Chapelle, eu demitiria todo mundo. Não pela greve ou pelo autoritarismo, mas por incompetência. Na plataforma tem coisa muitíssimo pior para justificar moralmente o cancelamento do comediante. Esse pessoal não sabe? As duas temporadas do "Chapelle Show", de 20 anos atrás, fazem "The Closer" parecer uma versão infantil. O material completo está na Netflix.
Tenho visto muitos amigos conservadores compartilhando Dave Chapelle por gostarem da coragem dele diante da militância identitária. Chama-se polarização emocional isso, é uma tendência humana normal e a gente sempre quebra a cara no final. Polarização não é problema, polarização emocional sim. A polarização tradicional é aquela em que aderimos a um grupo por identificação. A polarização emocional é quando aderimos a um grupo porque ele é contra algo, sem nem verificar direito o que mais ele defende.
Fiquei tentada a avisar alguns que na Netflix tem especial do Dave Chapelle em que ele fuma maconha no palco. Quase deixei escapar quem são os políticos amigos do comediante e as pautas que ele defende. Resisti. Quem tem pressa come cru e quente. Sei que a galera vai maratonar Dave Chapelle no final de semana e vai ver ele pegando pesado em temas sensíveis para os conservadores. Ainda gostarão? Espero que sim. Rir de si mesmo é uma das melhores coisas da vida.
O final desse especial do Dave Chapelle foi um clima meio "Nanette", standup da australiana Hannah Gadsby na Netflix. Você começa a assistir pensando que é comédia e ela realmente é engraçada, mas a história é tão triste que a gente chora. Pesquise a história de Daphne Dorman, amiga do comediante, que cometeu suicídio em 2019. A reação ao conteúdo do especial repete a saga.
Eu não vou contar a história de como eles ficaram amigos porque, além de engraçadíssima (estamos precisando rir), é uma história de amor fraterno, respeito, compreensão e aceitação da condição humana. Somos únicos, essa é a beleza da Criação. Cada um de nós é uma combinação única de qualidades e defeitos, necessariamente imperfeita. Compreensão e amor avançam a humanidade.
Dave Chapelle é cancelado a cada respiração. Perdeu o programa de televisão assim e reinventou-se, encontrou no streaming um negócio milionário aliado aos shows e é uma das grandes referências no universo do stand up. Em um desses cancelamentos, feito pelos anjos que se autointitularam representantes de todas as pessoas trans do universo, Daphne Dorman o defendeu.
Antes de traduzir, explico o conceito de "punching down". É uma prática condenada e classificada pelo movimento identitário como opressão ou reforço de racismo, misoginia, homofobia e transfobia estruturais. A ideia inicial de evitar "punching down" não é ruim. Como diz meu amigo Raphael Tsavkko Garcia, o problema é deixar ideias que fazem sentido na mão de gente sequelada.
Realmente há casos em que as pessoas simplesmente humilham outras e dizem que é humor. Na quase totalidade das vezes, nem graça tem. É só uma desculpa cínica para exercer perversidade. Um exemplo bem comum na época em que esse termo foi criado era tirar sarro de morador de rua. Outro exemplo é a prática de ouvir pessoas que estudaram pouco para rir delas, como se fossem burras porque não tiveram oportunidade de estudar. E isso sem combinar antes, fingir que era entrevista e ridicularizar alguém.
"Punching down", socar para baixo, é uma expressão que surgiu para discutir escolhas de entretenimento, não de humor. Humor necessariamente tem graça. Não é porque um grupo ri que é humor. Exemplo prático: Cesare Battisti tem fama de rir às gargalhadas enquanto assassinava suas vítimas. É humor isso? Não, é "punching down", tirar sarro do sofrimento de outra pessoa. Devemos validar como entretenimento? Se não for em escola de terrorismo, não vejo vantagem. Nem mesmo quanto é vantagem tem graça, não é humor.
Na mão de gente sequelada, esse conceito vira desculpa para censurar todo e qualquer tipo de conteúdo. Passa a ser obrigatório inviabilizar a vida de toda e qualquer pessoa que faça humor que supostamente seja ofensivo a grupos oprimidos pela sociedade. Digo supostamente porque os tais grupos sequer são ouvidos. Aliás, esses grupos que se danem. É assim que agem esses anjos.
Algumas personalidades agressivas passam a acreditar ser donas das pessoas trans, mulheres, homossexuais, negros, indígenas, todos os grupos oprimidos. Essas pessoas - que, na maioria das vezes, nem são parte do grupo - decidem que alguma fala, erro no uso de pronome ou piada é letal porque ofende grupos oprimidos. Os grupos foram ofendidos? Não importa. Se as paquitas do bullying decidiram, é lei. E se alguma pessoa do grupo oprimido disser que não foi ofendida? Cancelada também.
"Punching down" (socar para baixo) exige que você se considere superior a outro grupo. @DaveChappelle não se considera melhor do que eu de forma alguma. Ele não está dando um soco para cima ou para baixo. Ele está "punching lines" (arrematando piadas). Esse é o seu trabalho e ele é um mestre em seu ofício. #SticksAndStones #imthatdaphne", publicou Daphne Dorman. Evidentemente foi cancelada.
Confira as respostas ao tweet dela. São autoritárias e cruéis. Se ela, trans, diz que não se sente ofendida com uma piada sobre trans, talvez fosse o caso de ouvir ou nem ouvir mas pelo menos respeitar. Ela é quem deveria saber o que a ofender ou não. Mas, na lógica dos sequelados, a dignidade dela depende de concordar 100% com os anjos que se autodenominam defensores das pessoas trans.
Daphne Dorman foi atacada por semanas no Twitter. A plataforma, para variar, não fez nada. Todo tipo de transfobia está dentro das regras da rede social se vier dos lacradores de plantão. Uma semana depois ela cometeu suicídio. Seria um erro dizer que foi causado pelo cancelamento, a mente humana não é a mente do Dollynho. Detalho este raciocínio em OUTRO ARTIGO. Como diz Dave Chapelle, sabemos apenas que o cancelamento não ajudou nada no drama psicológico que ela vivia em silêncio.
Após o suicídio, quais foram as ações dos supostos defensores universais das pessoas trans? Espero que você tenha mais sorte na sua pesquisa porque eu não achei nada. Dave Chapelle fez uma homenagem interessante, abriu um fundo fiduciário para a filha de Daphne Dorman. Disse no especial saber que a única preocupação real da amiga era a filha. Ao completar 21 anos, a menina receberá os recursos para garantir seu sustento e desenvolvimento mesmo com o falecimento do pai.
Dave Chapelle não é nem nunca pretendeu ser um exemplo de bom comportamento. É um transgressor por excelência, um provocador, um questionador de todas as regras sociais. Até ele sabe o que é um gesto de amor e consideração humana, o que contribui para melhorar o mundo em que vivemos. E é capaz de colocar isso em prática. Não surpreende, o ser humano é complexo.
O surpreendente está em outro lugar, na militância que se permite ser agressiva e canceladora por dizer defender as pessoas trans. O que essa "militância" fez pela órfã de Daphne Dorman? Além de perseguir e enxovalhar o nome do pai dela, nada consta. Aliás, agora querem fazer uma greve para censurar o stand-up que conta essa história. Desisti de tentar entender. Há coisas no mundo que a gente sabe que existem, mas não compreende.