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Muita gente da minha família ficou brava com meu artigo anterior. Acharam que foi uma indireta para eles, que ficaram me mandando a fotinho do nazista como se fosse um anjo contra o absurdo da guerra. "Que mal teria compartilhar a frase que realmente é boa e de um filósofo francês só porque a fotinho estava errada?", questionam. É provocação. Tentativa de que eu dê um cupom grátis do curso de Cidadania Digital para a família.
Explico aqui o que tem de errado com a postagem. A intenção de quem compartilha continua sendo a melhor possível. Ocorre que guerra sempre envolveu desinformação e isso agora atinge o mundo todo e com capilaridade. No momento em que Putin coloca na mesa o nazismo para se justificar, de repente no mundo inteiro tem gente compartilhando nazista como se fosse santo. A família não acha que a explicação é suficiente. Eu digo que só dou cupom grátis do curso para familiar que merece. Começa aqui nossa guerra particular.
Sei que falo muito do lado de manipulação e concentração de poder das Big Techs. Mas não podemos negar que o avanço tecnológico também, de certa forma, nos deu um poder que não tínhamos. O "gatekeeper" de que voz seria ouvida já foi a imprensa, agora é um bando de bilionários que monopolizam um mercado por agir de forma predatória. Todas as iniciativas de livre concorrência são compradas ou esmagadas por Big Techs. Não sei quem é melhor gatekeeper, só sei que mudou a lógica para decidir quem tem ou não tem voz numa sociedade.
Manipulado ou não, o cidadão comum acostumou-se a gritar com a televisão e ela ter de responder de volta. Tudo bem que só chegam aos ouvidos os gritos que interessam a quem faz a triagem da informação, Big Techs e grupos de pressão criados a partir delas. De qualquer forma, são gritos que antes eram abafados. Estamos diante de uma guerra, recebendo imagens de cortar o coração. Todos queremos fazer alguma coisa. Arrumei uma coisa que presta para a gente fazer.
Presenciamos esta guerra com a imprensa dizendo que é a primeira em que a desinformação é arma. A desinformação já foi arma quando espalharam que Marco Antonio colocou Cleópatra em seu testamento caso morresse. "Ah, mas nos moldes atuais é novidade", dizem colegas jornalistas. Não é, o primeiro teste de desinformação via redes sociais foi feito em 2014 pelo próprio Putin, na mesma região. Virou livro de David Patrikarakos, que eu imaginava ter sido lido por todo jornalista com instinto de sobrevivência.
Hoje eu vi jornalistas dos principais veículos nacionais de São Paulo tuitando links contra a Ucrânia de agências de propaganda russas. É o que eu chamo de jornalismo kamikaze, uma forma de justificar todas as reclamações do cidadão comum que desconfia da imprensa. Há dois anos, fiz um artigo mostrando como funciona a máquina de propaganda russa e como Putin faria um aumento de 40% na verba. Fez e funcionou. Tem até zumbi brasileiro apoiador da KGB na imprensa agora.
Nessa década de aprimoramento das técnicas de desinformação e ganho de poder no universo digital, o jornalismo brasileiro dormiu em berço esplêndido. O resto do mundo andou. Parece quase ficção científica que um único bilionário, Elon Musk, ao liberar do bolso internet por satélite na Ucrânia, tenha poder sobre este conflito. E nós, brasileiros? Temos ou não este poder? Temos. Nós podemos nos mobilizar pela concessão de vistos humanitários para os ucranianos.
Não estou dizendo que cada tuitada dá um visto, mas tentando aqui recuperar aquilo que eu já vi em mobilização social via internet e que realmente podemos fazer. Ano passado fiz um artigo sobre a diferença entre militância virtual e a deliriocracia que foi instalada no Brasil. Se houver uma organização de ação efetiva em torno de uma causa com impacto na realidade, todos nós podemos ajudar via internet. Esse é o caso dos vistos humanitários, já concedidos pelo Brasil em vários outros conflitos.
Talvez você tenha se metido em bate-boca de rede social sobre Rússia x Ucrânia. Com certeza conhece alguém que se meteu. Tem o pessoal que se meteu a fazer proselitismo político, mas é minoria. A maioria só quer ajudar de alguma forma e não interessa qual governo está certo. Eu, pelo menos, vejo muita gente com vontade de fazer algo pelos cidadãos comuns que a gente vê nas imagens. A professora Daniela Alves, diretora do Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI), decidiu liderar uma iniciativa positiva que pode ser apoiada via internet.
"Nós estamos sendo bombardeados com muitas informações sobre o conflito entre a Rússia e a Ucrânia e acaba existindo uma ânsia das pessoas para opinar sobre quem tem razão. Só que, no meio de tudo isso, estão esquecendo que há pessoas sofrendo consequências diretas neste conflito. Para você ter uma noção, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados divulgou esta semana que mais de 120 mil pessoas já atravessaram as fronteiras da Ucrânia e o número continua aumentando. E, se essa situação continuar se agravando, nós poderemos ver mais de 4 milhões de refugiados.", explica a professora de Relações Internacionais Daniela Alves, especialista em combate ao tráfico de seres humanos.
Em momentos de crise e bombardeamento de informações, como encontrar as respostas certas? Fazendo as perguntas certas. "O que efetivamente nós podemos fazer? Qual é o papel do Brasil no cenário internacional e qual é a sua vocação diplomática?", provoca a professora Daniela Alves. A vocação brasileira sempre foi de paz e acolhimento das vítimas de conflito. Temos instrumentos legais para isso e, com a ação técnica correta, cada um de nós pode sim contribuir pelas redes sociais.
A indústria mais próspera do Brasil é o meme. Eu já recebi aquele em que a gente ia mandar soldado para pintar meio-fio daqui até a Ucrânia. Também vi o outro em que a gente mandou até o MBL salvar a Ucrânia, mas depois eu vi que era verdade. A gente parece que está virando um meme. O fato é que o cidadão brasileiro nunca foi o da treta ridícula, sempre foi o que pressionou o próprio governo a aliviar o sofrimento daqueles cidadãos vitimados por conflitos.
Temos uma figura jurídica chamada "visto humanitário", diferente do asilo político. Segundo a professora Daniela Alves, ainda há muito para avançar institucionalmente. Hoje, não temos uma política definitiva de como lidar com as vítimas civis de conflitos internacionais. Mas os diversos governos sabem qual é o posicionamento do brasileiro, o da solidariedade.
É devido às pressões da sociedade civil que o governo brasileiro, em diferentes gestões políticas, concedeu visto humanitário a vítimas civis de conflitos. Recentemente, este tipo de visto já foi concedido a haitianos, venezuelanos, sírios e afegãos. É um visto temporário, durante o conflito, com duração de 180 dias e residência máxima de dois anos. Neste período, a pessoa acolhida tem a possibilidade de entrar com a documentação para residência fixa ou para asilo político, se desejar e for o caso.
Se você também cansou do ridículo campeonato de desgraça que se instalou nas redes, acredito que temos uma boa causa na qual empenhar energia, a concessão de visto humanitário para ucranianos. Tenho visto defesas apaixonadas de Putin ou a comparação entre este e outros conflitos no mundo. Invariavelmente são feitas por quem nunca precisou manejar nem estilingue. Na ânsia de ajudar, talvez alguns se empolguem com os oportunistas, mas o Brasil é bem mais que isso.
Quem me acompanha sabe que fui a primeira Diretora de Comunicações para a América Latina da Change.org, plataforma em que está este abaixo-assinado. Foi lá que aprendi a diferenciar o que é uma ação de marketing nas redes daquilo que realmente pode engajar pessoas para promover mudanças. Este abaixo-assinado específico pode promover mudanças e serve para todo tipo de orientação político-ideológica aqui no Brasil.
A ação não é apenas na internet, envolve especialistas no tema que já atuaram em outros casos de refúgio humanitário e asilo político, em conjuto com o Itamaraty e o Ministério das Relações Exteriores. O caso mais conhecido ultimamente é a "Operação Acolhida", voltada à população da Venezuela.
Em todos esses casos houve falhas e problemas pontuais, obviamente. Ainda assim, o Brasil faz um trabalho humanitário de excelência e reconhecido em todo o mundo. Essa é a nossa vocação diplomática, sempre foi e, de certa forma, é assim que se construiu a nossa identidade de país. Se as redes sociais nos trouxeram à realidade da polarização que beira o ridículo e dos revolucionários de ar condicionado, talvez seja exatamente pelas redes que a gente consiga sair e evoluir.
Todos os dias nós fazemos a escolha, nem sempre consciente, de usar redes sociais ou nos deixar usar por elas. Meu amigo Anderson Godz criou um conceito muito interessante, o de que agora temos 6 poderes, não mais 3. Temos Executivo, Legislativo e Judiciário. Depois ganhamos a mídia. E agora temos as Big Techs e os grupos de pressão formados nas plataformas das redes sociais. Grupos organizados com interesses políticos e econômicos já aprenderam como usar essa nova dinâmica para efetivamente exercer poder. Falta o cidadão comum entrar nessa equação.