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Já passamos da era de identificar este ou aquele pensador do passado como supremacia branca. Desconfio que tenha perdido a graça porque praticamente todos os pensadores de mais de 100 anos atrás pensavam dessa forma. A humanidade aceitava que a dignidade humana fosse fatiada de acordo com classificações das sociedades. A divisão por cor da pele foi uma delas e gerou distorções e barbárie por séculos. Felizmente descobriram onde pendurar a culpa para além da lama da alma humana, na matemática.
O braço educacional da Igreja Identitária acaba de lançar, nos Estados Unidos, um manual para um ensino de matemática antirracista. Eu devo ser muito ignorante porque li, reli e continuo achando um dos documentos mais racistas que eu já vi. Todos os estudantes negros são considerados burros ou menos aptos e professores são orientados a cobrar menos deles em termos de acerto dos exercícios.
O documento tem um nome pomposo: "Um caminho para o Ensino Igualitário da Matemática - Desconstrução do Racismo no Ensino de Matemática". Fosse no ensino de história, geografia ou outras ciências humanas, entendo perfeitamente. Uma coisa é, por exemplo, ler Monteiro Lobato como se fosse normal falar de negros do jeito que ele, racista e eugenista, falava. Ou, sei lá, reescrever toda a obra dele para fingir que ele não era racista e nem tinha tolerância com racismo no Brasil nessa época. Outra coisa completamente diferente é ensinar, com o mesmo grau de importância, conteúdo e contexto. Eu só não sei como fazer isso com matemática.
Fiquei curiosa porque já começa a se tornar política oficial nos Estados Unidos. E, vocês sabem, daqui a pouco já tem gente achando legal porque está bombando por lá. Fui fuçar o documento para ver quais as dicas para os professores. Vão falar, por exemplo, do racismo de alguns matemáticos importantes? Talvez também devessem explicar que usamos até hoje fórmulas feitas por gregos misóginos que tinham relações sexuais com meninos adolescentes mas não se consideravam homossexuais. Talvez ajudasse bastante a decorar a tabuada, atividade das mais penosas.
Fui ler o tal guia para descobrir como a matemática pode ser um instrumento de supremacia branca. Isso vale para negros e latinos. Duas formas de colocar a supremacia branca na matemática seriam: foco na resposta certa e fazer o aluno mostrar sua lição. Eu não perguntei a pessoas negras nem a movimentos negros o que pensam a respeito. Latinos são mesmo impulsivos. Eu achei que me chamou de burra no contexto mais desumanizador: todo latino é burro. Alguém precisa avisar na igreja identitária que talvez seja racista tratar as pessoas como menos capacitadas de acordo com a etnia.
"A cultura da supremacia branca se infiltra nas salas de aula de matemática nas ações cotidianas dos professores. Juntamente com as crenças que fundamentam essas ações, perpetuam os danos educacionais em estudantes negrxs, latinxs e multilíngues, negando-lhes acesso total a o mundo da matemática", diz o manual. Há uma piada antiga que diz: pessoas que falam 4 idiomas são poliglotas, 3 idiomas são trilíngues, 2 idiomas são bilíngues e um idioma são norte-americanos. Qual a relação entre falar mais de um idioma e ser incapaz para matemática? Senti um recalque aí.
Há um guia completo para identificar práticas de supremacia branca nas aulas de matemática e combater isso. "Educadores matemáticos antirracistas desconstroem as maneiras como têm sido ensinada a matemática para aprender e ensinar matemática de forma diferente", ensina o guia de 82 páginas. O enunciado parece bem intencionado, o problema vem nas sugestões práticas, como:
- Adapte as políticas de lição de casa para atender às necessidades dos alunos negros.
- Reconheça os erros como conhecimento mal comunicado.
- Honre e reconheça o conhecimento matemático dos alunos de cor, mesmo que ele apareça de maneira não convencional.
Impossível conferir, dado que já morreram todos, mas desconfio que o pessoal da associação eugenista do Monteiro Lobato concordaria com a abordagem.
O acompanhamento da evolução dos alunos, segundo o manual, deve ser mudado para se tornar antirracista. "Muitas vezes, os alunos são acompanhados com base na noção de que os adultos sabem o que é a coisa certa para eles, o que significa não permitir espaço para a ação estudantil, reforçando o paternalismo e o acúmulo de poder". A sugestão é que os professores passem a pedir aos alunos nota pela própria performance. Também têm de rever isso de acompanhar o progresso, já que pode interferir na autoestima. E não podem dar a noção de que, se o aluno bombou na matéria, a etapa seguinte será mais difícil. Sendo sobre matemática, é um "se vira nos 30" considerável. Só que eu não entendi como isso combateria o racismo.
A outra sugestão, pelo que eu entendi, é parar de fazer conta. Segundo o manual, que se diz antirracista, cobrar resultados de matemática literal é algo que não deve ser feito com negros e latinos. "Isso reforça a quantidade sobre a qualidade quando os professores reduzem o ensino de matemática a coisas que são mais facilmente mensuráveis, como matemática literal. Isso não apenas nega oportunidades para um maior envolvimento com matemática mais rigorosa, mas também cria uma dinâmica de paternalismo em que os professores decidem pelos alunos com que matemática eles deve interagir, sem verdadeira consideração da experiência do aluno". Eu não sei qual é a outra matemática que existe, fora essa matemática que a gente conhece.
O conceito de monopólio da virtude do grupo que escreveu o tal guia antirracista parece mais sedimentado que a matemática em si. A linguagem condescendente com negros e latinos beira a crueldade e a eugenia. Sem falar na parte que chama a matemática indiana e egípcia de ocidental. Ainda assim, racistas são os outros. Se alguém discordar dessa aberração que considerar como incapazes todos os que não são brancos, certamente será xingado de supremacista branco. Felizmente, alguns educadores cansaram da palhaçada e botaram a boca no mundo.
Ignorando a história da humanidade, o documento propõe que o ensino de Álgebra e Aritmética é ocidental. Segundo o manual, o antirracismo "permite que a defensividade da matemática ocidental prevaleça, sem abordar causas subjacentes de por que certos grupos de alunos estão "com baixo desempenho", uma caracterização que também deve ser interrogado. Também pressupõe que o "bom" ensino de matemática é sobre um tipo eurocêntrico de matemática, desprovido de modos culturais de ser". Álgebra e Aritmética nascem da colaboração de árabes com indianos. Das duas, uma: ou esse povo todo passou a ser ocidental ou a igreja identitária se apropriou culturalmente do trabalho deles.
Eu sou de humanas. Isso significa que fiz todo o possível para fugir da matemática na vida. Sou capaz de preencher duas vezes uma mesma planilha de Excel e sair com dois resultados diferentes. Ao ler as 82 páginas que desconsideram a origem oriental da matemática contemporânea e chamam negros e latinos de incapazes, fiquei na dúvida se estavam certos. Talvez eu seja mesmo tão burra que não veja a vantagem de ser chamada de burra pela igreja identitária. Ocorre que talvez eu não seja tão burra assim pelo menos nessa história. Diversos professores de universidades importantes nos EUA consideram o documento racista, principalmente os que não são brancos.
"É o racismo proposto como antirracismo. Não se deve esperar que as crianças negras dominem a precisão da matemática e devam ser celebradas por falar disso (...)? Isso é intolerância saídas da Reconstrução após a guerra Civil, de Tulsa, Selma e Charlottesville", diz John McWhorter, professor da Universidade de Columbia, que é negro. Ele, aliás, também chama a igreja identitária do que é, uma espécie de fé religiosa. Lembram da história da minha avó espírita que alegava comprovação científica do kardecismo? É a mesma coisa, mas agora tem quem leve a sério.
O documento tem o mesmo truque utilizado pela igreja identitária no mundo todo. Inicia com um enunciado que parece bem intencionado, o do antirracismo ou a história de que a matemática é mais complexa do que aquilo ensinado nas escolas. Muito da opinião pública, especialmente a intelligentsia, ficará aí. Este é o suficiente para se atribuir virtude, que se danem as crianças sem aprender matemática. E daí vem o resultado da boa intenção, jamais testada empiricamente antes de ser recomendada em série, que o professor de Columbia divide em 7 pontos:
1. o foco em obter a resposta "certa" é "perfeccionismo" ou "pensamento excludente";
2. a ideia de que os professores são professores e os alunos são alunos está errada; 3. pensar que é problema problema que as expectativas que você tem dos alunos não são atendidas é racista;
4. ensinar matemática de forma linear com as habilidades ensinadas em sequência é racista;
5. valorizar "fluência procedimental" - ou seja, saber como fazer as frações, divisão longa ... - em vez de "conhecimento conceitual" é racista. Ou seja, as crianças negras são brilhantes para saber o que a matemática está tentando fazer, para saber "do que se trata", em vez de realmente fazer a matemática, assim como muitos de nós lemos sobre o que a física ou a astrofísica realiza sem nunca a intenção de dominar a matemática que levou às conclusões;
6. exigir que os alunos “mostrem seu trabalho” é racista;
7. exigir que os alunos levantem a mão antes de falar "pode reforçar o paternalismo e o poder de amarração, além de interromper o processo de pensamento, aprendizagem e comunicação".
John McWhorter classifica as sugestões como um mix de racismo com crendice. "Os humanos podem sacrificar uma criança de 9 anos, a virgem ou a viúva na pira em adoração a um Deus. Os humanos podem também podem sacrificar a criança negra no domínio do dom da matemática, em favor de mostrar que são iluminados o suficiente para entender que sua vida pode ser afetada pelo racismo e que, portanto, ela deve ser protegida de qualquer coisa que seja um desafio genuíno", desabafou em seu blog o professor da Universidade de Columbia sobre a proposta da matemática antirracista.
O documento da igreja identitária, celebrado como antirracista, é a mais fina flor do racismo eugênico. Não só negros e latinos são incapazes como também devem ser impedidos de progredir. E em nome de quê? Para a igreja identitária poder dizer que é feita de gente muito boa, maravilhosa, que já consegue enxergar os reflexos do racismo no mundo. O professor recomenda que pais fiquem contra essas tentativas e não as minimizem. Uma hora é inevitável que alguém acabe implantando se não houver claro rechaço. Depois de um ano de pandemia, já nem culpo mais esse pessoal. Entendo que caprichem na desculpa para não precisar dar aula de matemática, é puxado mesmo.
Em mais uma pérola de racismo no tal manual, fala-se da tal "matemática Yorubá", como se existissem várias matemáticas. Não há várias matemáticas. O sistema métrico tradicional Yorubá não é por dezenas, faz as medidas a cada 20. Isso em nada muda a forma como a matemática é usada para entender o mundo e o fato de que precisa ser ensinada às crianças para que elas herdem o conhecimento da geração anterior. Os árabes até hoje escrevem os números com algarismos diferentes dos ocidentais, mas isso não muda o resultado das contas. O uso da matemática é universal. É delirante classificar conta com resultado errado como uma visão mais complexa ou menos tradicional da matemática.
A proposta racista de deseducação não é fruto de incompetência nem de delírio coletivo. A igreja identitária tem uma pauta de crenças não vinculadas ao mundo material, como a maioria das religiões, embora não se assuma ainda como tal. "As tentativas de "desconstruir" a matemática, negar sua objetividade, acusá-la de preconceito racial e infundi-la com ideologia política se tornaram cada vez mais comuns - talvez, até mesmo, na escola primária de seu filho. Este fenômeno é parte do que foi apelidado de “The Great Awakening - O Grande Despertar”. Como outros explicaram poderosamente, a ideologia incubou na academia, onde doutrinou muitas mentes brilhantes. Em seguida, migrou, por meio desses verdadeiros crentes, para nossas importantes instituições culturais, religiosas e políticas. Agora está afetando algumas das empresas mais importantes do país", explica Sergiu Klaineman, professor de matemática da Universidade de Princeton.
O professor de Princeton credita seu sucesso pessoal à paixão pela matemática, uma linguagem que se tornou universal na humanidade. "A capacidade da matemática de fornecer respostas corretas a problemas bem formulados não é algo específico de uma cultura ou outra; é realmente a essência da matemática. Afirmar o contrário é argumentar que de alguma forma a matemática ensinada em lugares como Irã, China, Índia ou Nigéria não é genuinamente deles, mas emprestada ou forjada da "cultura da supremacia branca". É difícil imaginar uma declaração mais ignorante e ofensiva", argumenta.
"Não existe matemática 'branca'. Não há razão para supor, como fazem os ativistas, que as crianças de minorias não sejam capazes de matemática ou de encontrar as "respostas certas". E não pode haver nenhuma justificativa para, em nome da “equidade” ou qualquer outra coisa, privar os alunos da educação rigorosa de que precisam para ter sucesso. Os verdadeiros antirracistas se levantarão e se oporão a esse absurdo.", declara Sergiu Klaineman, professor de matemática de Princeton.
O treinamento, apesar de racista e desconectado de qualquer experiência educacional do mundo real, conseguiu aliados importantes. Foi financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates e tem entre os parceiros o Lawrence Hall of Science na UC Berkeley, o projeto California Math, a Associação dos Aministratores de Escolas, a Secretaria de Educação de Los Angeles e foi recentemente enviado aos professores de todo o Estado do Oregon pelo Departamento de Educação. A igreja antirracista, ao contrário da minha avó, conseguiu convencer muita gente de que suas crenças pessoais são científicas e devem ser impostas aos demais.
Durante muito tempo, quando a igreja identitária começava a se tornar parte da academia, a maioria calou. Eram argumentos tão absurdos que parecia não haver necessidade de contrapor. Agora não temos mais este luxo. Radicais e autoritários entendem como apoio e aprovação a passividade diante de seus arroubos. A igreja identitária tem todo o direito de enxergar racismo, patriarcado e homofobia até na matemática. Não tem, no entanto, o direito de alegar que seja uma crendice diferente, por exemplo, de ver Nossa Senhora no queimado da torrada. A diferença é que a Nossa Senhora da torrada não faz mal a ninguém nem se julga melhor que os outros.