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Da maior festa pagã da humanidade ao livro sagrado mais lido e vendido em todo o mundo, nada escapa à patrulha progressista. As intenções, num primeiro momento, podem até parecer boas. Acredito que muita gente pense que a linguagem politicamente correta é uma forma de evitar magoar as pessoas de maneira desnecessária. E, verdade seja dita, evoluímos bastante neste sentido nas últimas décadas.
Basta recorrer a qualquer clássico da literatura brasileira ou jornal antigo para verificar que a linguagem do dia-a-dia não tinha como base uma sociedade formada por indivíduos, seres humanos únicos, mas por blocos monolíticos definidos por raça, cor e posição social.
Os livros de Monteiro Lobato oferecem uma fartura de exemplos. "Pois saci, Pedrinho, é uma coisa que branco da cidade nega, diz que não há - mas há. Não existe negro velho por aí, desses que nascem e morrem no meio do mato, que não jure ter visto saci. Nunca vi nenhum, mas sei quem viu. - Quem ? - O tio Barnabé. Fale com ele . Negro sabido está ali ! Entende de todas as feitiçarias , e de saci , de mula-sem cabeça, de lobisomen - de tudo" - diz trecho do livro "O Saci". Os jornais seguiam o modelo:
Evidentemente que precisávamos evoluir no sentido de respeitar todo ser humano como indivíduo único. Estranhamente, quando conseguimos engatar esse processo, a militância identitária quer novamente voltar à era da representação por bando, não por pessoa.
Aqui no Brasil, a mais recente polêmica é a história da moça indígena que chorou ao ver um homem com um cocar pataxó no carnaval. Eu já imagino que tipo de manchetes lacradoras teremos quando essa turma descobrir os inferninhos com prostituição e masoquismo. No Brasil, a patrulha quer botar ordem até na maior festa pagã do mundo.
Se, por aqui, a patrulha está de olho do que há de mais mundano, nos Estados Unidos o problema é o sagrado. De carnaval a Bíblia, nada escapa ao olho atento dos progressistas.
A Evangelical Lutheran Church in America foi alvo de uma patrulha progressista que incluía membros da própria igreja. O motivo dos ataques revoltados e ameaças de cancelamento na internet era um trecho do Evangelho de João. Isso mesmo: a igreja postou um trecho do Evangelho e os progressistas ficaram revoltados.
Na Nova Versão Internacional em Português, o versículo é "A luz brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram." - João 1:5. Se a gente traduzir diretamente do inglês encontra um prato cheio para a patrulha identitária. "Deus é luz e NEle não existe escuridão". Adivinha o que acontece quando se fala em escuridão? Uma ginástica retórica: escuridão quer dizer negro e negro é visto como ruim.
Os fiéis da igreja começaram a questionar o versículo do evangelho com comentários como:
"Por favor, considerem as implicações raciais do que vocês estão dizendo aqui. Não há escuridão nele - sério??? Eu entendo que exclusão (de Deus) não é sua intenção, mas é o efeito. Por favor, peçam desculpas e removam o post".
"Por favor, nunca mais finjam não saber por que nossa igreja é 97% branca. Esse post diz muito sobre como é a relação da minha igreja com a minha pele negra".
Um dos pastores da igreja resolveu responder: "Só porque é um versículo não quer dizer que não possa ser usado para causar sofrimento a nossos irmãos de cor e perpetuar o racismo sistêmico em uma igreja que é 98% branca A bíblia tem sido utilizada para silenciar mulheres, oprimir as pessoas LGBTQIA+ e justificar a escravidão. Nós temos de escolher com cuidado nossas imagens. Nós precisamos fazer melhor e não (intencionalmente ou não) excluir nossos irmãos do corpo de Cristo".
Sim, chegamos ao ponto em que uma igreja luterana, ao ser pressionada pela patrulha identitária, começa a condenar o Evangelho. Bem, poderia ser apenas um posicionamento individual do pastor. Não era. A igreja resolveu mudar o texto que acompanhava a foto no Facebook e se desculpar por ter postado uma imagem com um versículo do Evangelho de João.
"Caros irmãos em Cristo,
Nós prestamos muita atenção nos comentários gerados por este post. Muito obrigado a todos que compartilharam suas experiências e preocupações com a linguagem utilizada.
O versículo compartilhado aqui vem das leituras bíblicas da última semana. Como temas sobre escuridão e luz vão aparecer de novo nas leituras da Quaresma, nós resolvemos deixar este post e a discussão aqui para que inspire conversas e reflexões mais profundas enquanto nos preparamos para esta época.
Nós nos desculpamos se a linguagem desse post foi ofensiva e nós reconhecemos que essa imagem pode ser um lembrete doloroso das dinâmicas de poder, racismo e desigualdade que existem nessa igreja. É nossa responsabilidade ter intencionalidade no uso de imagens e linguagem. Nós estamos comprometidos com esse trabalho e nõs estamos comprometidos em aprender com nossos erros." (grifo meu) - diz a postagem da Evangelical Lutheran Church in America.
Por aqui, já tentaram censurar Monteiro Lobato e o carnaval. Não conseguiram. Quando cede ao domínio das questões políticas, a arte passa a ser algo de segunda categoria, incapaz de cumprir seu papel de tocar a alma humana e de provocar a sociedade. Já no carnaval, podem gritar à vontade: a esbórnia humana jamais será controlada.
Os progressistas não têm vergonha nenhuma de espalhar pelas redes seus preconceitos contra os evangélicos mas, no Brasil, ainda não tentaram censurar a Bíblia. Estariam os americanos um passo adiante ou um passo atrás de nós nessa história? Só o tempo dirá.